Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

terça-feira, dezembro 16, 2008

Mátria n º 7: Poeta universal, poeta radical, poeta clássico...
























Gilberto de Mello Kujawski inicia o seu Fernando Pessoa, o Outro, que ele intitula de ensaio de hermenêutica cultural, situando o fenômeno Pessoa no epicentro da renovação da cultura portuguesa, após a morte de Eça e com a extinção do realismo.
Pessoa, segundo Kujawski, herda a disposição crítica do realismo para laborá-la em um nível mais profundo, instaurando a “crítica das próprias condições da consciência, do exercício mesmo da inteligência, no mais intenso esforço de lucidez em sua geração”.

Pessoa estava, portanto, no centro de convergência das germinações e daqueles impulsos que promovem o destino de uma Cultura. Com sua obra atemporal, dialogava com a poesia desde sua gênese, tornando-se, ao mesmo tempo em que era o intérprete da sua problemática individual, o poeta cuja poesia reverbera nas vastidões de uma consciência universal.

E o que se entende por universalidade de um poeta?
Responde o autor: Universal é o poeta que fornece uma interpretação, ao mesmo tempo múltipla e unitária da vida, sendo, por isso, “portador de um universo, de uma cosmovisão”. O poeta universal mergulha nas raízes de sua província, mas traz a fronde no mundo inteiro.
Entre nós, Carlos Drummond de Andrade, recentemente, foi esse poeta.

Mas não basta de dizer de Pessoa que ele é um poeta universal. Além disso, sobreleva-se como um poeta radical. Radical é o poeta que se alimenta de certa protopoesia, como diria Vicente Ferreira da Silva, ou seja, desse “núcleo da poesia anterior e subjacente a todas as interpretações, escolas e estilos preexistentes”.
Esse é o poeta que subverte os gêneros meramente didáticos da literatura e liberta a poesia das suas obsessivas fixações, provocando-lhe uma catarse libertadora.

Por fim, Kujawski define o poeta clássico.
Para ele, o poeta que se faz fundador de uma poética que, além de radical é também universal, deve ser chamado de Poeta Clássico. No entanto, não se tome, aqui, clássico, no sentido de uma cristalização de valores estéticos, fora da História viva. O poeta clássico, ao mesmo tempo em que renova esses valores, repudia os cânones mumificados por uma "imobilização quase hierática".
“O espírito clássico é aquele que está à altura do seu tempo”.
Mais: não é apenas o representante de uma atualidade, porém remete “à antecipação do que está por ser atual”.

Eis aí a função do poeta clássico: permitir que enxerguemos onde estamos situados, “que nos localizemos na crista de nosso itinerário histórico”.

**********************************************

Na crista da (terceira) onda histórica, radical, renovadora, e até mesmo, perturbadora, está a poética com que abaixo vos inquietarei.
Não há mesmo mais tempo para a poética dos saraus, das serenatas à lua e outros afins. Embora, creio eu, tudo isso deve estar contido numa poesia que instaure a voz do seu tempo.
Que diga das angústias, com arte;
Que fale de nossa fragmentada existência
e de nossa virtual desesperança, com lirismo reflexivo;
Que, até mesmo, possa revisitar o discurso agostiniano,
ou de outro pensador, também angustiado,
expondo nossos descaminhos em públicas confissões.

Mas é vital que esse Poeta, esteja, como estava Pessoa, no centro de convergência das germinações e daqueles impulsos que promovem o destino de uma cultura.
Imprescindível, também, que diga tudo na linguagem desse tempo:
Na apresentação calidoscópica das imagens;
Nos versos em síncopes, de ritmo quase à Hermeto Paschoal;
Fazendo ainda, pessoanamente, a crítica das próprias condições da consciência, do exercício mesmo da inteligência, no mais intenso esforço de lucidez de sua geração.

Essa poética que vos apresento, em nossa língua-mátria mais pura, é difícil de encaixilhar-se num rótulo.
Pós-moderna, neobarroca, neomoderna.
Melhor dizer: radical, universal e clássica, como acima Kujawski definia a poesia pessoana.

Esse poética é brasileira, lusófona, e seu poeta se chama Dauri Batisti:


, confesso, ainda, digo, deitei-me.
É. Deitei-me. Tu também hás de confessar-te?
andas confuso em seus ares.
Subterrei-me. Submeti-me ao solo,
à morte, em posturas deitadas. Reneguei
minha ressurrecta e leve corporeidade erecta.

, discriminei também.
Sim, achei-me em condição de separar cabrito de ovelha.
Discriminei minhas mãos, uma para a prosa,
outra para os versos. Esquizofrenizei
a língua. Ah, por isso confesso aos pedaços.

, desprezei os pequenos, arrependo-me,
os invisíveis, os bytes. Hoje estou
com o coração megabytizado.
Emprazeiro-me quando me ponho on,
antes eu delirava ficando na minha, off.

, desprezei também a mim mesmo
quando me ensurdeci à missão de subverter
e celestiei-me em oníricas fugas.
Hoje quero sobrelevar a sola dos meus sapatos
e sentir o densidade dos meus ossos
enquanto miro as pectas janelas de Salvador Dali.


Dauri Batisti
da série de poemas
CONFESSIO SPONTANEA

*********************************************

Mais de Dauri, no sítio
Essa Palavra, onde elabora as "séries" que apontam para a contemporaneidade da poesia e antecipam a forma e o conteúdo do que de belo pode estar se enformando/informando nessa era virtual.

*********************************************

16 comentários:

Canto da Boca disse...

E eu aqui a inaugurar esses poemas, ensaios, ou o nababesco banquete fonético proporcionado por vc(s)...
E quando a sensatez decide administrar-me, o melhor é observar, observar atentamente e apenas sentir. É o que estou agora fazendo... Por outro lado,
um embate titânico se dá ao nível do desejo, do desejo de escancarar o sentimento de certo modo controlado pela sensatez...
E como uma das infinitas funções de uma Boca é falar, fá-lo-ei agora, ainda que eu profere toda sorte de orpóbiro, dado à minha ignorância...
É como sou quando aporto em seu Eu tão profundamente lírico... Não terei a ousadia de falar sobre o Pessoa e as suas pessoas, não sou capaz, está muito
além de mim, além de todos os além- mares, oceanos e continentes.... Mas posso humildemente pegar umas palavras, poucas (?) palavras, do poema do Dauri:
"Não há mesmo mais tempo para a poética dos saraus, das serenatas à lua e outros afins." Queixamo-nos imenso da nossa falta de tempo, então saímos do plano do
discurso e fomos à ação: reunimo-nos, várias nacionalidades (brasileiras, congoleses, moçambicanos, caboverdianos, peruanos, chilenas, portugueses), e
fomos poetar e emocionar: João Cabral (meu mestre dos mestres), Vinícius, Chico Buarque (meu deus acima do bem e do mal), Mia Couto e Pessoa, cada um ao seu modo,
com os seus sentires, a escolha era aleatória, o que calhasse, calhava, e tudo regado a vinho maduro portugûes, porque somos também Baudelaireano,
e nos embriagamos sempre que podemos, de vinho, virtude e poesias.
Chero friorento, meu amigo Eurilírico, e grata por sua existência. Um dia inefável para ti e os teus e as tuas.

lula eurico disse...

Grato, Boca linda e amiga. E vamos todos ao vinho, embriagados por essa lusofonia, que está cá e em outras bocas.

Um chêro.

Canto da Boca disse...

Eurico, onde tem 'orpóbiro', leia-se opróbrio!!!!!!!!!!!
Que computador chatooooo!
chêro!

Dauri Batisti disse...

Poxa Eurico, me deu um frio na barriga ler estas coisas todas que você escreveu e ver meu poema depois desta tua "aula".

Por outro lado é bom ter a visão de uma pessoa que entende analisando o que a gente escreve. Nunca tive pretensão de publicar livros - não tenho nenhum - e talvez esta liberdade me possibilite fazer alguns caminhos.

Bem... Obrigado. Adorei os três referenciais para se analisar a poesia: radical, universal, clássica.

Obrigado. Você é um caração.

Dauri

lula eurico disse...

Mantenha essa liberdade, Poeta; já que é a ela e não ao talento que você atribui os teus poemas. Mantenha essa liberdade e seja assim como aconselha o Ricardo Reis: inteiro. Mão no sentido de perfeição e de totalidade, em um mundo que nos arrasta para a fragmentação.
Mas, inteiro, apesar de todo o demasiado humano, apesar das vilezas e das virtudes. Livre e inteiro, no sentido de ser genuíno, autêntico.
O resto faz a tua alma de artista da Palavra.
Abraçamigo e fraterno.

Carla disse...

um belo ensaio que adorei ler
beijos

lula eurico disse...

Grato, Carla. O ensaio, do qual alinhavei uma resenha, é do G. M. Kujawski: "Fernando Pessoa, O Outro", de 1965, um dos bons ensaios sobre Pessoa que tenho em casa. Ele vai além do indivíduo Pessoa e busca outras vias de compreensão da cultura em que estava inserida a obra pessoana.
Abraço fraterno.

Cecília disse...

Nossa... É sempre uma aula vir por aqui... Você me inspira...

Beijão!!!!

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá querido Amigo, belíssimo adorei ler!... Beijinhos de muito carinho,
Fernandinha

Dauri Batisti disse...

Eurico,

fiz um singelo agradecimento a você lá no ESSAPALAVRA. Aproveitei para dirigir umas poucas palavras aos leitores do essapalavra. Tomei esprestada sua apresentação dos meus escritos.
Mais uma vez obrigado.

Elcio disse...

Eurico, chego aqui vindo do "Essas Palavras". Confesso q foi um achado Essas Palavras e agora, fecho c chave de ouro encontrar esse seu blog.
Nas palavras de minha avó materna, certa vez ela me disse:
"Élcio vc é um metido a besta".
E creio ser mesmo, c minha teima em ser poeta, mas, n perco as esperanças, quem sabe em outra "encadernação" eu alcance algo proximo disso....rssss
Ando na fase de sonetos, n sei até qdo...rss
E n poderia terminar sem agradecer a vc por essa aula literária.
Estarei sempre aqui, na busca do saber.
Obg mesmo.

Em tempo, o google vai direcionar p um blog q esta off.
O q esta valendo é esse:
http://www.instantes.blogger.com.br

[ ]´s

Cecília disse...

Olá Querido Rubro-Negro! ;)

Tem mais Brincantes lá no sítio, viu??
Espero que goste!

Beijosssssss

Cecília disse...

Oi Eurico!
Que bom que está gostando dos posts.
Fico muito feliz.

Você já ouviu falar da ‘Conexão Cavalo Marinho’? É um evento que começa hoje e vai até o dia 21 e terá apresentações de 8 grupos de Cavalo Marinho, entre eles um de Olinda, inclui a informação lá no post, agorinha mesmo, pois só agora vi... (tem a propaganda no ‘Caderno C’ do JC de hoje).

Beijão!
Tenha um ótimo dia!

Ester disse...

Querido Eu-lindo!


Quero lhe desejar um Natal Diferente, não como os outros,
mas que neste o significado verdadeiro esteja no seu coração,
nas suas ações, nas suas amizades e refletida na sua caminhada.

Que 2009 seja um sopro de coisas boas em sua vida! E tenho
certeza que será! Que venha a realização dos sonhos desejados
e batalhados. Este é o meus mais sinceros votos não só para
você, mas também para toda a sua família.

Foi muito especial conhecê-lo virtualmente em 2008. Tenho aprendido muito com sua escrita.
Que venha 2009 com ainda mais novidades e alegrias para todos nós!!

receba meu carinho,

Sueli Maia (Mai) disse...

Oi, Amigo.

Não poderia deixar de fazer o meu registro, após a perplexidade em ler, teus pergaminhos, esta bibliioteca de emoção.
Reler Dauri e reconhecer a Magia da LIBERDADE do POEMAR, com alma, peito, veias, corações.
Porque é tanta e imensa, a emoção que quase pondero, de tão absurdamente intensa...

Eurico, Dauri, certamente há desafios inerentes ao viver. Mas a delícia em VIVER, está na justa medida do "OURO" que encontramos nisto que nada, fará ver. Apenas sentir.

xiiiiii ...baixinho, assim...
É puro amor!


Feliz Natal!

Márcio Ahimsa disse...

Olá, Eurico,

venho acompanhando timidamente um certo movimento literário aqui no Brasil que aponta para novos horizontes. Creio que a totalidade está mesmo nessa dispersão de várias idéias em vários lugares ao mesmo tempo. Tenho dado um nome, sem querer rotular, e que estamos vivenciando um jeito de ser e estar no mundo. Somos lobisomens pós-modernos pairando como plumas e pousando na beleza em poesia do dia-a-dia. Nosso Dauri é um desses poetas que apontam para um horizonte...

Abraços.