Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

JOGOS DE ARTIFÍCIO (em obras)

JOGOS DE ARTIFÍCIO
(enarrativas curtas ou arranjos fictícios)



Editora do Autor
Recife - 2006


Luiz Eurico de Melo Neto




JOGOS DE ARTIFÍCIO
(enarrativas curtas ou arranjos fictícios)




Sopro de vida quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida, engravidada por si mesma, por partenogênese;
Tinha sonhos esquizóides nos quais apareciam gigantescos animais antediluvianos como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas desta terra sangrenta.




“Já que sou, o jeito é ser”.
Clarice Lispector in: A HORA DA ESTRELA


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BROAS
ou Mauritztad revisitada



Chamam-se, vulgarmente, déjà vu, a certas lembranças súbitas de algo que não temos plena certeza de termos vivido; ou mesmo a essas percepções de estarmos em um lugar onde já estivemos um dia, de já conhecermos aquela pessoa de algum lugar, pensado como uma impressão de já ter visto ou experimentado algo antes, que aparentemente está a ser experimentado pela primeira vez.

Um certo Robert Todd Carrol, em seu Dicionário Cético (The Skeptic’s Dictionary), assim define a expressão Déjà vu (transcrevo aqui download de seu site):
Déjà vu é usualmente pensado como uma impressão de já ter visto ou experimentado algo antes, que aparentemente está a ser experimentado pela primeira vez. Se assumimos que a experiência é na verdade uma recordação, então o déjà vu ocorre provavelmente porque uma experiência original não foi completamente codificada. Nesse caso parece provável que a situação presente dispare a recordação de um fragmento do passado que se baseia numa experiência real mas de que temos apenas uma memória vaga. A experiência pode ser perturbadora, principalmente se a memória está tão fragmentada que não há conexões fortes entre esse fragmento e outras memórias ou nenhuma conexão consciente pode ser feita entre a situação actual e a memória implicita.
Ou seja, a sensação de já ter estado lá é muitas vezes devida ao facto de já lá ter estado, mas ter esquecido a experiência original porque não prestou atenção na experiência original. A experiência original pode ter ocorrido apenas alguns minutos ou segundos antes. Por outro lado, a experiência de déjà vu pode ser devida a ter visto imagens ou ouvido relatos vivos muitos anos antes, como no caso de Virginia Tighe. Essas experiências podem ser parte de uma fraca recordação de infância, erradamente acreditada como tendo ocorrido numa vida passada só porque "sabe" que não ocorreu nesta vida.
Finalmente, é possivel que a sensação que tem seja disparada por acção neuroquimica no cérebro que não está ligada a nenhuma experiência do passado. Sente-se estranho e associa a sensação com já ter experimentado isso antes, mesmo se a experiência é completamente nova. Ou seja, déjà vu (já visto em francês) pode não envolver um falso reconhecimento de algo que já se viu antes.
O termo foi aplicado pela primeira vez por Emile Boirac (1851-1917), um homem com forte interesse em fenómenos psiquicos. O termo de Boirac dirige a nossa atenção para o passado. Contudo, uma pequena reflexão revela que o que é unico no déjà vu não é algo no passado, mas, algo no presente, nomeadamente, a estranha sensação que temos quando experimentamos o déjà vu. Temos muitas vezes experiências em que a novidade não é clara que nos levam a levantar questões como, Já li este livro? Isto é um episódio que já vi o mês passado? Este lugar é-me familiar, será que já cá estive? Mas isto não é acompanhado de sensações estranhas. Podemos sentir-nos confundidos, mas a sensação associada a déjà vu não é de confusão, mas, de estranheza. Não há nada de estranho acerca de não nos lembrarmos se já leu um livro antes se tem cinquenta anos e já leu milhares de livros. Quando isso acontece não se sente estranho. Mas com o déjà vu sentimo-nos estranhos porque não pensamos que devamos sentir-nos familiares a essa percepção.
Portanto, é possível que a tentativa de explicar o déjà vu em termos de memória perdida, inatenção, vidas passadas, clarividência, etc, possa ser completamente errada. Deviamos falar da sensação de déjà vu. Essa sensação pode ser causada por um estado do cérebro, por factores neuroquimicos durante a percepção. A sensação de déjà vu é comum entre pacientes psiquiátricos. Tambem precede ataques de epilepsia do lóbulo temporal. E, em 1955, quando Wilder Penfield fez a sua famosa experiência na qual estimulava electricamente lóbulos temporais, encontrou um bom numero de experiências de déjà vu.

Mas, e quanto a um gesto maquinal, um gesto muitas vezes repetido como o de se vestir, ou de saudar alguém? O que diriam os leitores, se eu lhes contasse a história de um gesto que me trouxe uma memória ancestral? E me permitam esclarecer que sou um cético, um agnóstico. Só acredito que existe o chão depois que piso nele. Bem, é claro que exagero, creio que existe Deus, mas sou um São Tomé e não vou lhes tecer uma história espiritualista qualquer. Mas algo insólito aconteceu comigo naquele dia.
Tudo começou em certa tarde de julho. Minha mãe havia comprado as broas que eu lhe pedira. Ao comê-las senti em meu gesto algo antiqüíssimo e ancestral. Parti a broa em um gesto ritual e remotíssimo. Veio-me à mente trecho de um romance osmaniano. A palavra broa ecoou em minha alma como algo familiar, arquetípico. Broa vem de brote, “biscoito militar, pago nas viagens marítimas e distribuído aos soldados nas diligências”. Provém do holandês brood, grafado no século XVII, broot. Segundo Osman Lins, em um de seus romances, passaria por transformações em seu sabor e em sua grafia incorporando-se à tradição alimentar do nordeste.
Pois, ao alçar um dos braços, levando a mão à boca, a broa, o brote, um mote, abre-se-me a mente, como em estado cataléptico, ou epilético, santo daime, sei lá eu dessas cousas, mastigo a bolacha seca e velha, massa bolorenta, com a fome dos náufragos a roer-me as vísceras. Olho em volta e a copa foge-me dos pés, um soalho estranho e movediço me baloiça as imagens. Surto epilético, visagem, sei lá! Olho pela rótula e diviso um mastro, uma escuna ancorada em um porto de pedras calcárias. Tento reconhecer a paisagem, que me parece familiar. Os marujos descarregam pequenos fardos da escuna. Homens vestidos com fardas de marinheiros, calças curtas, meiões pretos, tamancos...
A broa amarga entre meus dentes. O brote. E uma caneca de vinho.
Batavos. São batavos. Entro em pânico. Daí em diante percebo a transversalidade em que meu corpo, devir-inumano, organização que perpassa fluxos de textos e de acontecimentos, universal devir-animal, deleuziano, minhas entranhas já não são minhas. Meus braços antes lisos, agora são peludos. Já não me possuo. Não sou só eu, sou eu e meus múltiplos eus, atirado numa dimensão que corta e metamorfoseia os fluxos de tempo e de espaços...
Saio à rua. Caminho pelo cais e os homens me saudam com gestos largos, continências e levantar de chapéus. Cruzo a pequena lingueta de terra onde fica o cais. Atravesso a ponte, longa ponte de madeira sobre um rio largo e de águas límpidas. Capivaras se escondem nos desvãos do manguezal. Adentro a Cidade Nova. Caminho a esmo, pátios floridos, pomares tropicais, igrejas...em frente de uma dessas, uma matriz cheia de homens negros, um pobre diabo falava só, aluado:
― Já que sou, o jeito é ser...
Parece que era isso que dizia essa frase tão densa o velho esmoler sentado no frontispício da Igreja de Santelmo. Preta era a sua pele, um preto quase azulado, azul marinho fulvo e macerado. Erguia, em uma das mãos, o chapéu de massa, gesto desesperançado e maquinal. Alguns passantes jogavam moedas sem valor, ou que já não lhes serviam, quase sem olhar a figura vetusta do ancião. Com certeza nem imaginavam as histórias de dor e sofrimento que poderia passar aquela pobre vida, jogada ao léu.
Ele alçou os olhos em minha direção. Uns olhos úmidos e vazios. Pareceu-me que ali por trás não havia uma alma, uma mente a governá-los. Eram olhos de um zumbi. Um pária como tantos outros que jazem em milhares de marquises e portas de igreja do mundo. Um rosto igual, com as mesmas rugas profundas que nos traz o tempo e o sofrimento.
-- Moço, me dê um taco dessa broa...
A boca se abriu num esgar --sentia alguma dor-- os dentes estragados, os poucos que lhe restavam, e um hálito recendendo a álcool e fumo.
Moço, me ajude...

Foi assim que conheci o Tomás. Tomás de Aquino: esse, um de seus nomes e essa uma de suas histórias:

Sempre me perguntei ao ver alguns nobres e ricaços se suicidarem por seus fracassos amorosos, suas crises existenciais, por que, tendo uma vida tão miserável, os infelizes mendigos não se jogam de um penhasco, ou não se atiram sob as rodas de uma caleça. A perseverança que os leva a viver suas vidas miseráveis é impressionante. Muitos vagueiam em bandos pelas estradas, pedindo de porta em porta, comendo restos com cães e porcos, e, muitas vezes, se alimentando de lagartos e gafanhotos, como dizem fazia Jochanan, o judeu que batizou o Messias. No entanto, jamais se viu um desses miseráveis atentar contra a própria vida, que mesmo lhes sendo adversa, jamais dela se enfadam. Posto que esse enfado da existência me parece ser próprio dos janotas e poetas afeminados, cujo ócio e vazio d’alma lhes traz uma angústia infinda.

Simão me esclareceu essa dúvida. Pelo menos no seu caso, vivia para poder expiar os seus muitos pecados...

Primeiro nome:
Nem sempre havia se chamado por esse nome de santos. E, quando ainda se chamava Ruderico, nome que recebeu com a alforria, empregou-se em casa de um tal capitão Vieira de Melo, das milícias pernambucanas. Aí cometeu seu primeiro e horrendo pecado. Participou de um envenenamento e de uma traição. Traiu uma criatura tão doce e benévola, que não gostava nem de recordar o seu covarde crime. O nome da moça era Ana Clara...

― Era uma moça de rara fermosura, filha de um sargento-mor, de nome Nicolau, que casou-se com o filho de meu patrão, o senhor André. Naqueles tempos as mulheres sofriam muito e seus maridos sempre tinham várias concubinas entre as escravas da casa. Uma das amásias fez intriga da bela Ana à sua sogra, Dona Catarina Leitão, a terrível matriarca dos Vieira de Melo, dizendo que Don’Ana vivia o traindo com um morgado de nome Joca Barreto, dono do Engenho Velho, nas bandas do Cabo de Santo Agostinho . A moça, era inocente. Nós da senzala sabíamos que ela era inocente... foi tudo intriga da predileta do filho do patrão. A sogra, mulher odienta, tanto fez que seu André resolveu matar o tal Joca. Enquanto isso me mandou comprar às escondidas, um veneno ao boticário, dizendo que era para matar as saúvas de um sítio seu. Mas a mim ela disse que mataria a traidora de seu filho. E que eu ficasse de bico, senão eu iria também pro inferno. No inferno estou até hoje, expiando esse primeiro crime. Além de comprar o veneno, pobre de mim, tive de ajudar naquela hora terrível em que a megera chamou a desvalida nora e lhe ordenou que bebesse a poção, para pagar o mal que fizera ao marido. Don’Ana bebeu tudo, mas o veneno não fez efeito, então ela mandou que eu a segurasse, enquanto a enforcou com um pano de mesa, ela e seu filho amaldiçoado... eu fui cúmplice desse horrível assassinato. Fui covarde. O povo ficou revoltado com a família, que embarcou para a Europa. Enquanto eu, pobre de mim, tive de trocar de nome, pois o povo da senzala me criou um ódio e eu tive de fugir da casa e passei a perambular de cidade em cidade...
***

Segundo nome: Algoz de Frei Caneca


Adotei então o nome de Deodato. Fui ajudante de mascate,



Terceiro nome:
O pecado do padre




(Repensar este título)
SOB O CÉU DE VAN GOGH ou VIAGEM A TLÖN

“Se eu corresse assim,
tantos céus assim,
muita história eu tinha pra contar...”
(de uma canção do Pessoal do Ceará)




Já muitos viajantes têm ganhado o mundo a busca de aventuras. Marco Pólo foi à China, Hans Staden à Amazônia. Viajantes foram Caminha, Vespúcio, e Pinzon, que descobriu o Brasil no Cabo de Santo Agostinho, isso depois dos fenícios terem vindo ao Maranhão. Expedições científicas foram intentadas por Darwin e Malinowski. Mas, como a viagens do piloto-escritor Saint Exupèry, todas as grandes viagens foram realizadas com um único fito: contar as suas façanhas, seus eventos, suas descobertas e atribulações, narrar a epopéia humana. Registrar o tempo que passa, aprisionar a vida breve do vivido, narrar, descrever, recordar, eis a verdadeira causa das grandes navegações, das viagens ao redor a Terra e até mesmo da ida do homem á Lua.

Deitado preguiçosamente em sua rede, entre o sono e a vigília, o velho doutor Luiz Inácio, alienista aposentado, livre-pensador e exegeta diletante, vai ruminando suas vivencias e suas leituras. O sol se põe sobre a copa das árvores da mata de Apipucos. Seus últimos raios ferem ainda a flor das águas do açude...

Nunca saí daqui. Parece que enterrei o meu umbigo nesta cidade. Tenho a alma acinzentada pela lama do Capibaribe. Mesmo assim, devido a essa minha profissão, em que ouvi, por muitos anos, as histórias vividas ou sonhadas pelos meus clientes, conheço várias partes do mundo e até mesmo um estranho planeta, de cujo nome mal me recordo. Orbis, alguma coisa...Orbis,...Orbis Tertius. Bem, desse planeta trata Herbert Ashe, em um breve artigo da Revista da Sociedade Geográfica de Buenos Aires, se não me engana a memória. Dele se conhecem duas regiões. Milejnas e Tlön. Sobre esta última contou-me um de meus clientes ter visitado em um sonho ou num arrebatamento do espírito, similar àquele que teve o apóstolo em Patmos. Essas histórias fantásticas, mas verdadeiras, de regiões imaginárias, aqui e ali resultam em interessantes obras da literatura latino-americana.
Comer era algo pecaminoso. Não se faziam, como entre nós, as refeições em público, o que era um atentado violento ao pudor. Falava-se de guloseimas e outros quitutes entre risos maliciosos, com piadas de baixo calão. Circulavam em bancas de revistas de má fama, folhetos pornográficos em que se viam pessoas banqueteando-se sem nenhum respeito.
No entanto as crianças viam seus pais fazendo sexo, os namorados apalpavam-se na rua. Convites para ter relações grupais eram normalmente aceitos e vistos com a maior naturalidade. Já os comensais eram mal vistos pela puritana sociedade.


Estudo para conto sobre Santa Inquisição

Personagem impessoal: a doutrina do Santo Ofício
Ou certo personagem q descreve a psicosfera do período da inquisição, sem denominar a Igreja.

Este personagem é um estudioso q faz um achado de pesquisa: anotações breve de um certo livre pensador q viveu entre 1580 e 1654. Relata suas apreensões sob o regime tenebroso dos domini cani (dominicanos), em q se proibem livros, realizam-se devassas, caça ás bruxas e...suplício pela fogueira dos q escolhem outro caminho (herejes).
Usar nomes de inquisidores invertidos o alterados como borges com Qaphqa. E excertos de Menochio em o Queijo e os vermes.
O heresiarca Segrob

Links
Cecil Adams sobre déjà vu

Alcock, James E. Science and Supernature : a Critical Appraisal of Parapsychology (Buffalo, N.Y.: Prometheus Books, 1990).
Alcock, James. "Déjà Vu", in The Encyclopedia of the Paranormal editada por Gordon Stein (Buffalo, N.Y.: Prometheus Books, 1996).
Reed, Graham. The Psychology of Anomalous Experience: A Cognitive Approach (Amherst, N.Y.: Prometheus, 1988).
Schacter, Daniel L. Searching for Memory - the brain, the mind, and the past (New York: Basic Books, 1996), pp. 172-173. [Nota: este excelente livro sobre memória não faz menção a déjà vu, talvez porque afinal déjà vu nada tem a ver com memória.]

COLÓQUIO DOS PASSÁROS
(Primeira versão)


Chama-se Ibbür a uma variedade de metempsicose em que o espírito de um antepassado ou mestre pode entrar na alma de uma pessoa infeliz, para reconfortá-la ou instruí-la.
Isaac Luria
cabalista de Jerusalém do século XVI.


Precursor distante e possível dos teosofistas, Ibn Gurion, pode ser considerado como um desses sábios desconhecidos que esconde o Oriente misterioso. Livreiro de profissão, ou bibliófilo, como se costuma chamar por aqui aos leitores compulsivos, que, invariavelmente, terminam soterrados pelas suas vastas bibliotecas. De origem iraniana, Gurion é citado na Enciclopédia dos Ocultistas como autor de diversos teoremas que o ocidente ainda insiste em afirmar serem pitagóricos. O místico persa Farid al-din Abu Talib, também chamado de Muhammad ben Ibrahim Attar, em seu Mantiq al-Tayr (Colóquio das Aves Canoras) chega a conferir a este sábio, dentre outros feitos notáveis, a descoberta do zero, que, segundo ele, foi depois disseminado pelo mundo árabe. Dele também é a formulação dos rudimentos de uma semiótica primeva, que consistia, basicamente, na observação dos símbolos comuns aos textos hieráticos da antiga Pérsia e do Baixo Egito, que culminariam por gerar a decifração denominada Cabala, entre os adeptos do Judaísmo. De modo que a obra invisível deste misto de filósofo e mago permeia os tratados teológicos de diversas seitas, perdidas na imensidão babélica dos povos orientais.
***
No ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1933, chegaria às minhas mãos, através do Melquisedec, amigo e também livreiro do bairro de São José, o logradouro mais árabe do Recife, uma relíquia, em forma de brochura, de certo estudioso de Bombaim, o Dr. Mir Bahadur Ali, responsável pela tradução para o ocidente de centenas de poemas alegóricos do Islã. Tratava-se de uma tradução em castelhano do Colóquio dos Pássaros, que eu folheava cuidadosamente, com a necessária reverência para com um texto tão antigo. Não tanto pelo conteúdo, uma vez que eu lia o espanhol com certa dificuldade, mas pelo raro objeto que tinha entre as mãos. Admirava-me de que as notas tipográficas deste tomo datassem de meados de 1812, dando a impressão de ter chegado ao Brasil com as caravelas fugitivas da Coorte de Dom João VI.
Interessante notar que as margens de suas páginas estavam rabiscadas, ao modo de escólio, em um dialeto que, naquela época, me ocorreu se tratarem de glosas, em galego-português. Não pude, no entanto, me aprofundar nessas elucidações lingüísticas, pois minha missão era simplesmente restaurá-lo e devolvê-lo em seguida ao meu freguês, o conhecido livreiro e colecionador recifense, instalado como buquinista à Rua do Livramento, e que, como vos disse acima, me encomendara a encadernação daquela obra.
Por esse tempo, minha oficina de restauração de obras raras estava apinhada de trabalho.
Zoom:
Sobre a bancada, a editio princeps de Deus na Natureza, do astrônomo Camille Flammarion; na prensa, A Pluralidade dos Mundos Habitados (sem notas tipográficas), do mesmo autor, et al...
Tinha eu uns 30 anos e ainda não tinha sido atingido por essa doença horrível, que não mais me permite exercer, adequadamente, meu ofício, nem desfrutar das leituras que tanto me entretinham. Começava a numerar as páginas veneráveis com meu lápis de ponta mole, delicadamente, ciente de que teria de desmontar a costura daquele precioso documento, quando o telefone toca no corredor. Ergui o fone, meio distraído, e ouvi uma voz, com sotaque familiar, do outro lado da linha, quase sussurrar ao meu ouvido:
― Compareça ao Círculo Esotérico, hoje à noite, por gentileza, e leve o volume que Vossa Senhoria está a restaurar. Esse pedido procede do reverendíssimo Ali Ben Altair, Grão Mestre do Oriente, em visita à nossa confraria.
***
Muhammad Ali Ben Altair era um ancião esguio, vestido à inglesa, mas com turbante, e bem barbeado. Pareceu-me bondoso. Os seus olhos, com um brilho azulado, semelhante ao das estrelas distantes, expressavam generosidade. Bom leitor das íris e dos astros, eu senti-me à vontade em sua presença. A reunião era secreta. Eu era convidado de honra, por privar da amizade de vários confrades do Círculo Esotérico do Pensamento, que, em sua grande maioria, eram meus fregueses da oficina de restauro. Homens cultos e adeptos do livre-pensar, apesar de serem na quase totalidade mestres de artes e ofícios, cuja cultura era adquirida, quase sempre, de modo autodidata, ou bibliodidata, como eles mesmos costumavam dizer, espirituosamente. Destaco, entre eles, o Mestre Tipógrafo Luiz de Mélo, negro liberto desde o ventre da mãe, nascido em 1864, teria por volta de 73 anos, metade dos quais dedicados a colecionar alfarrábios, sendo, portanto, o mais assíduo freqüentador das livrarias e dos sebos recifenses. Diziam que descendia de árabes etíopes, de cuja nobreza tinha herdado o porte altivo. Lembro-me de seu traje, sempre elegante: paletó de gabardine azul claro, guarda-chuvas preto, dependurado no antebraço direito. Respeitado cenógrafo das festas católicas, empalhava os santos do convento do Carmo. Recordo, também, do Sr. Pedro de Figueiredo, marceneiro de ofício, também ilustre confrade, que trazia as honrarias de ser um dos fundadores daquela corporação de ofícios. Ambos ostentavam muitas medalhas penduradas no peito, como que adornando a faixa, indicativa do alto grau nos serviços, daqueles beneméritos.
Há muitos anos, eu também recebera o convite para ser irmão na fé e nas obras secretas da Loja, mas ainda não tinha acatado as incumbências. Por ignorá-los, temia os rigores da lei interna. Estava ali, tão-somente, por causa do chamado dos veneráveis Mestres.
Preciso vos alertar para um fato, importantíssimo para a vossa compreensão dos intrigantes incidentes que hão de se suceder nesta minha narrativa: não pude trazer o volume solicitado. Depois de desmontada a peça, não era recomendável o seu deslocamento, para não causar dano ao papel, já tão frágil e quebradiço. Pedi permissão ao Melquisedec, dono do volume, que ma negou, desaconselhando, com a elegância de sempre, o traslado do raro objeto sob meus cuidados.
Só fui à reunião porque não tive como telefonar para os confrades, explicando o fato. Não tinha acesso ao número da linha telefônica do Círculo, que era restrito aos membros. Como lhes devia muita consideração e apreço, resolvi comparecer ao Círculo, mesmo sem portar o livro, e desculpar-me, pessoalmente.
***






Os olhos do Mestre Altair se anuviaram, ao saber que eu não trouxera o precioso volume. Seu semblante se transformou. Apesar de ele não pronunciar uma palavra sequer, eu percebi o quanto aquilo tinha frustrado o venerando Mestre, por uma causa que eu ainda não compreendia. Constrangido, dirigi-me até ele. Falei ao intérprete que gostaria de me explicar diretamente. Não sou homem de faltar com minha palavra. Mal dera dois passos em sua direção, quando ouvi sibilar sobre minha cabeça uma espécie de dardo, que foi atingir o espaldar da cadeira em que estava o Ancião. O dardo emplumado fincou-se bem acima da cabeça do Mestre Altair. De sua ponta escorreu um líquido esverdeado, que manchou o couro de que era forrada a cadeira. O Mestre voltou-se, com mansidão, e examinou as pequenas plumas que ornavam o dardo. Não é zarabatana. É um acôntio? balbuciou, entre dentes. Depois, voltando-me os olhos profundamente azuis, indagou:
 Quanto tempo, daqui até a sua oficina?
 Uns dez minutos, a pé, disse-lhe eu.
E, levantando-se com uma agilidade que não revelavam seus modos, disse:
 Vamos, leve-me depressa até lá!
***
Abri a pesada porta da oficina de encadernação, que rangeu nas dobradiças. Dei passagem aos visitantes. Eram três: Luiz de Mélo, Pedro Figueiredo e o venerável Mestre Altair. Eu entrei, em seguida. O que vi me impressiona até hoje. A oficina revirada, como se ali tivesse passado um vendaval, um remoinho. Meu trabalho de meses, praticamente, destruído: páginas de obras raras misturadas; ferramentas espalhadas, gavetas removidas. Sobre a bancada, único móvel em pé (talvez por ser de madeira tosca e pesada) naquele cenário de devastação, constatamos a falta do livro, do precioso alfarrábio, motivo da minha ida ao Círculo Esotérico.
Hipertenso que sou, cheguei a ter um princípio de desmaio. No que fui amparado pelos confrades. Talvez por isso não atentasse para os indícios do cenário do crime,  posto que se tratava de um roubo, aquele sumiço,  não dei conta de detalhes, que, entretanto, não passariam despercebidos aos aguçados sentidos do Mestre Altair. Lembro apenas que ele, a princípio, cheirava, curiosamente, (quase que, farejava), os objetos sobre a mesa de trabalho. Depois, sacou do bolso interno do paletó, uma lupa. O brilho daquela lente translúcida, até hoje, me vem às retinas, tão habituadas a esse ofício de minúcias. Fez uma meticulosa observação de cada vestígio deixado pelo suposto meliante, nos quatro cantos da minha modesta oficina. Por fim, disse-me, com expressão glacial:
 Arrume seus apetrechos e volte ao trabalho como se nada tivesse acontecido. Aguarde minhas instruções. Irei à Embaixada de meu país e voltarei em alguns dias. Vamos, senhores! Passar bem, Sr. Cabral!
***


A Embaixada de seu país ficava na Guanabara, distrito federal. E, decerto, ele embarcaria no paquete, que, no dia seguinte, zarparia do porto do Recife, rumo à capital do país.
Foi, também, no dia seguinte, não sem certo desânimo, que arrumei as coisas na oficina e retomei o trabalho. Estava entretido em minha faina, quando, por volta das 14:00h, o famigerado instrumento de Graham Bell, ressoou, feito um bicho metálico, dependurado na parede do corredor. Arranco o fone da base, contrariado, e o levo ao ouvido. Era o Melquisedec, preocupado com uma notícia do jornal vespertino. Nas docas, fora encontrado, agonizando, um homem, em trajes de origem árabe, sem passaporte, e sem nenhum documento que o identificasse, carregando um alforje cheio de dardos, como os que os silvícolas usavam para caçar. Como era um de seus irmãos de raça (Melq era descendente de libaneses), essa notícia chamou a sua atenção; fez alguns comentários sobre a violência em nossa cidade, no entanto, o que ele queria mesmo era saber da sua encomenda.
Gaguejei. Não só pela embaraçosa resposta que tinha a dar ao meu estimado amigo sobre o sumiço do livro. Mas pela notícia assombrosa do homem que agonizava, no cais do porto. Decidi ir até lá. Precisava conferir aquele estranho caso. Sem querer eu estava envolvido em um estranho caso de roubo e, quiçá, de homicídio. Precisava me apressar. Quem sabe eu ainda alcançaria o paquete no porto. Dei uma resposta evasiva ao meu bom amigo. Algo como um está quase pronto, teu livro, ou coisa do gênero, tomei do chapéu e da bengala e, atravessando a ponte Princesa Isabel, rumei para o cais do porto.

O homem já não estava por lá. Inquirindo alguns estivadores e desocupados do porto, fui informado que era um homem de turbante, que devia ter sido atacado por ladrões, coisa muito comum nas docas, lugar de contrabandistas e outros meliantes. Como o rosto estava muito arranhado, alguém aventou a possibilidade de ter sido mulher-dama, ou seu gigolô, coisa também muito comum na noite do submundo do cais do porto. Eram muito plausíveis, as versões dos populares. Mas havia um detalhe. Um detalhe que só eu conhecia. O alforje com dardos. Precisava vê-los.
Um dos estivadores me disse que o homem não morrera e que os policiais o levaram numa ambulância, com destino ao Hospital Pedro II.
Retornei pela ponte Maurício de Nassau. Antes de ir ao hospital, passei na livraria Rangel, e confessei tudo ao Melq. Mesmo chocado com a minha história, e ressaltando que aquele devia ser exemplar único em toda a América, o meu bom libanês, em atenção a uma amizade de quase 40 anos, tomou de seu chapéu, deu-me o braço, e seguimos juntos até o bairro dos Coelhos.
Descemos a rua Barão da Vitória, cruzando com mascates e caixeiros, em uma azáfama própria do comercio crescente do Recife, a 3ª cidade do Brasil. Na ponte da Boa Vista, alguns mendigos nos estenderam as cuias, e um interessante homem do realejo, nos vendeu as sortes. Melq brincou com o aspecto bizarro do homem com seu macaco, um tanto ou quanto grande demais para sentar sobre seu ombro. Senti que os olhos do homem do realejo nos fitavam, curiosos e profundos. O olhar desses charlatães costuma ser enigmático, compondo o disfarce que lhes ajuda a lograr a sua clientela. Meu papelote da sorte dizia: Cuidado, a água toma a cor de seu recipiente. Teve pelo menos o bom gosto de copiar um provérbio árabe, disse-me Melq, orgulhoso de sua terra.
Adentramos o imponente Hospital, herança boa do ocaso da monarquia brasileira. Merecida homenagem no seu nome.
A imprensa marrom estava por lá, apinhando os corredores. Os homens da polícia nos impediram o acesso à enfermaria. De nada adiantaram os rogos do Melquisedec, dizendo-se conterrâneo do forasteiro. A ordem era severa. Ninguém poderia se aproximar do estrangeiro.
Já tínhamos decidido nos retirar, quando, por um desses lances da fortuna, surge o Horácio Neves, grande amigo nosso e cliente da Livraria do Melq, que sempre lhe fiava os folhetins, para alegria da sua esposa, leitora assídua dos romances.
Que fazes aqui amigo Horácio, pergunto-lhe. E como vai Dona Clarice?
Fui nomeado escrivão had hoc, nesse caso do cais do porto. Estou a serviço da Inspetoria.
Era tudo o que precisávamos. As portas se abriram. E, em dois tempos, ouvimos inúmeros detalhes da cena do crime. Um dos detetives, mais falante narrou-me um pormenor que anotei em uma caderneta.
 O turco, disse-me ele, balbuciou três palavras em um inglês arrastado: moon, key, and man. Ou seja: lua, chave e homem.
No entanto, para o Inspetor, que nos foi apresentado pelo Horácio, aquele não passava de um caso comum da noite do porto do Recife. Alguma rameira, aliada ao seu cafetão, teria tentado roubar o pobre turco. Nada mais do que isso.
Anotadas essas palavras, resolvemos nos retirar. A noite vinha chegando e, em verdade, uma lua enorme vinha surgindo por trás dos velhos pardieiros da Rua Velha. Melq vinha calado e eu também. Uma coisa me intrigava em tudo aquilo. Os dardos. Sim, os dardos eram o nexo entre aquele pobre homem e o sumiço do livro raro.
Quando regressávamos, o homem do realejo cruzava a ponte em sentido contrário. O macaco, inquieto, rosnou para o Melq, que lhe estirou a língua, zombeteiro. O homem do realejo nos olhou, contrafeito, e resmungou xingamentos em uma língua que não consegui entender. Apesar do dia, estávamos descontraídos. E resolvemos dar uma esticada ao Bar Savoy, pois o chopp gelado nos iria desopilar a alma.

Mais tarde, já de vota aos alfarrábios, pois o serão se fazia necessário, para dar conta do serviço, fiquei matutando nos acontecimentos. Detalhes que me estavam escapando. E um estalo me trouxe à mente as palavras do Mestre Altair, ao olhar de perto as plumas do dardo. Dizia ele: Acôntio e não zarabatana. O que seria aquilo. Que enigma escondiam aquelas duas palavras. Fui ao meu velho Dicionário Etimológico, e lá estavam os verbetes:
Acôntio: do grego Akóntiun, pequeno dardo usado pelos antigos gregos.
Zarabatana: do persa, através do árabe vulgar, zarbaTãnã; clássico zabaTanã, “tubo para matar pássaros”.
A noite alta e a cerveja me levaram, estafado, aos braços reconfortantes de Morfeu...Comigo dormiu o enigma dos dardos
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Dias depois, um telegrama do Mestre Altair me chega pelas mãos do velho Luiz de Mélo. Aqui transcrevo o que do teor daquela mensagem me ficou na memória:

Confrades,
Saúde, paz e fraternidade a todos.
Chegarei breve. Preocupado envolvimento restaurador com lutas internas irmandade suplico urgentes medidas segurança sua vida. Persas e gregos disputa fratricida. Espia ainda em Recife. Livro não deve sair da cidade. Cuidado. Ajudem nosso homem hospitalizado como puderem. Ele guardião segredo comunidade.
P. S. : Insistam convite Mestre Ofício Encadernador ser membro da Corporação. Assim poderemos revelar coisas ocultas. Creio correr risco integridade física.
Despeço-me
Fraternalmente
Altair








Roteiro:
o dardo seria um aviso ao mestre altair de que já teria sido roubado o volume.
Mas como resolver a minha entrada no círculo, depois de descobrir que o Mestre armara tudo?
Por que Melq não me permitira levar o livro, além do óbvio motivo já alegado, do deslocamento de obra rara?
Solução: Duas facções estavam a busca do livro e apesar de ter sido avisado, o Mestre desconfiara da seta grega em vez de uma zarabatana. Seu emissário, antes de ser morto, mandara o código grego, em vez de uma zarabatana tupiniquim. A princípio, o Mestre não entendeu. Depois captou a mensagem cifrada. Entro eu a investigar, depois de ler antigo conto de Edgard Alan Poe.