Uma Epígrafe
"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]
quarta-feira, março 24, 2010
O Batisti (um precursor)
Na crista da (terceira) onda histórica, radical, renovadora, e até mesmo, perturbadora, está a poética com que abaixo vos inquietarei.
Não há mesmo mais tempo para a poética dos saraus, das serenatas à lua e outros afins. Embora, creio eu, tudo isso deve estar contido numa poesia que instaure a voz do seu tempo.
Que diga das angústias, com arte;
Que fale de nossa fragmentada existência
e de nossa virtual desesperança, com lirismo reflexivo;
Que, até mesmo, possa revisitar o discurso agostiniano,
ou de outro pensador, também angustiado,
expondo nossos descaminhos em públicas confissões.
Mas é vital que esse Poeta, esteja, (como estava um Fernando Pessoa, em sua época), no centro de convergência das germinações e daqueles impulsos que promovem o destino de uma cultura.
Imprescindível, também, que diga tudo na linguagem desse nosso tempo:
na apresentação calidoscópica das imagens;
nos versos em síncopes, de ritmo quase à Hermeto Paschoal;
fazendo ainda, pessoanamente, a crítica das próprias condições da consciência, do exercício mesmo da inteligência, no mais intenso esforço de lucidez de uma geração.
Essa poética que vos apresento, em nossa língua-mátria mais pura, é difícil de encaixilhar-se num rótulo.
Nem pós-moderna, nem neobarroca, nem mesmo, neomoderna.
Nada disso!
Melhor dizer: radical, universal e clássica, como a crítica define uma poética, quando atemporal.
Esse poética é brasileira, lusófona, e seu poeta se chama Dauri Batisti. Leiam-na:
, confesso, ainda, digo, deitei-me.
É. Deitei-me. Tu também hás de confessar-te?
andas confuso em seus ares.
Subterrei-me. Submeti-me ao solo,
à morte, em posturas deitadas. Reneguei
minha ressurrecta e leve corporeidade erecta.
, discriminei também.
Sim, achei-me em condição de separar cabrito de ovelha.
Discriminei minhas mãos, uma para a prosa,
outra para os versos. Esquizofrenizei
a língua. Ah, por isso confesso aos pedaços.
, desprezei os pequenos, arrependo-me,
os invisíveis, os bytes. Hoje estou
com o coração megabytizado.
Emprazeiro-me quando me ponho on,
antes eu delirava ficando na minha, off.
, desprezei também a mim mesmo
quando me ensurdeci à missão de subverter
e celestiei-me em oníricas fugas.
Hoje quero sobrelevar a sola dos meus sapatos
e sentir o densidade dos meus ossos
enquanto miro as pectas janelas de Salvador Dali.
Dauri Batisti
da série de poemas
CONFESSIO SPONTANEA
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Mais de Dauri, o Batisti, no sítio Essa Palavra, onde ele elabora as "séries" que apontam para a contemporaneidade da poesia e antecipam a forma e o conteúdo do que de belo pode estar se enformando/informando nessa era virtual.
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Nota do Blogueiro:
reedição de poema, com o mesmo espanto da primeira leitura!
Fonte da img:
http://aspalavras.blog.terra.com.br/files/2009/08/salvador_dali.jpg
sábado, março 13, 2010
Eu-menino (pequena fauna poética)
Quando eu-menino ouvia
os lobos da ventania
soprando ovelhas nas nuvens.
Meu coração disparava
(me dava um medo esquisito,
seria isso um meu mito?)
e eu me abraçava, eu-menino,
a um vira-latas mofino,
que nem eu era, também,
franzino e desamparado.
E eu lhe dizia ao ouvido:
(não tenha medo, Bandit,
mamãe foi ali, na feira,
papai já vem do trabalho).
Quando eu estava inquieto
me acalmavam lebristas
que nadavam em garrafas
translúcidas, ornamentais.
Ornamentais, os meus saltos
de pontes imaginárias,
a mergulhar nesse rio,
heraclitiano rio,
que não parava, e não pára...
Por esse tempo ainda
me andava a alma contrita
com as sensações de meu corpo:
um tio meu criava porcos
e eu os via javalis;
Minha avó bordava rendas.
Trago os bilros dentro em mim,
e costuro pelo avesso
isso que ledes aqui.
Meu avô me dava livros:
Lobato, Andersen, Grimm.
Onde os trago?
E eu lá sei!
Mas emoções são perigos:
um dia quase me mato,
(se não fosse a borboleta,
a cochilar no casulo,
que me chamou a atenção...)
quase que, pássaro, pulo,
em queda livre e ligeira
do alto da pitombeira.
Mas não sabia voar.
Dançar? Dançar eu sabia,
essa dança ligeirinha
(umbigadas/rock and roll)
dos bodes nas cabritinhas,
bicho-do-mato que sou.
Vou lhes contar um segredo
há muito tempo guardado:
as emoções são crianças,
aprendem fácil a brincar
e gestam lendas e mitos
(que lhes sopram anjos bonitos)
de lobos, nuvens, cabritos.
Esses ditos viram escritos
que gente velha e sisuda
vai seu mistério estudar...
Se isso é poesia?
E eu sei lá!
*
A imagem é um esboço em papel de seda
para um óleo sobre tela de autoria
de meu saudoso avô Luiz Eurico de Melo
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quinta-feira, março 11, 2010
ISSO
“...menino sonha com coisas
que a gente cresce e não vê jamais...”Roberto Ribeiro(de Nelson Rufino e Zé Luiz)
Disso que, em verdade, não vejo
e que, sinceramente, a minha mão não alcança;
é dessa coisa singela e estranha
que cuido o dia todo, todos os dias...
Disso que, enquanto olho, não percebo o tanto,
(porquanto, é a minha alma, estrábica)
é nisso que me ocupo,
eis minha fábrica:
Isso, inefável,
Isso, indizível,
Isso, volátil e jamais tocado...
Nisso me erijo
desde criança,
Nisso invisível (eu, que não creio)
sonho o meu sonho, nessa esperança...
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sábado, março 06, 2010
Feminina (ciranda mitopoética)
"a vida vem em ondas como o mar" (Lulu Santos)
A consciência é profunda e marinha
e a vida é ondulada...
Ai... a vida é a in/exatidão feminina do mar!
Estava na beira da praia, na beira do mundo,
olhando o que há...
me veio por dentro essa onda
com a força do vento nordeste, girando no ar...
A praia era um abismo azulado,
era a beira de tudo,
essa coisa de fora
esse Estar.
A alma, molhada por dentro,
lembrava-me um útero, em um outro lugar.
Estava na beira da praia, olhando a ciranda
das ondas do mar.
A essência das águas me chama
é um doce acalanto, uma canção de ninar.
A água do abismo me ama,
e me faz levemente boiar.
A consciência é profunda e marinha
e a vida é a in/exatidão feminina do mar.
***
(singela homenagem aos seres femininos
que harmonizam a crosta desse planetinha azul)
Salve o 8 de março,
mas, todo dia é, em essência, Mulher!
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