Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

segunda-feira, dezembro 27, 2010

MACAÍBA (nordeste: o vôo e o sonho)




















a Miguel Nicolelis...


O sonho nasce da possibilidade do sonho.
No núcleo do sonho está uma poíesis
e a vida-por-fazer.
É indispensável sonhar para estar vivo.

Se não queres ser um cádaver-adiado-que-procria, sonha;
Sonha com novas urdiduras...
mesmo que os nodos estejam sempre mais além.

Quem sonhava antes, plantava o que agora vemos.
E falo de plantas concretas:
Feijão, petróleo, escolas...

Eis um momento propício ao sonho.

Uns sonham com a Pátria do Evangelho.
Outros com a Nova Jerusalém.
Muitos aguardam um Armagedon.

Os brasileiros sonham com o óleo em mar abissal
e em dar asas aos meninos do nordeste.

Inaugura-se um sonho em Macaíba,
vilarejo humilde e sonhador.
Vejo-os voar.
É lícito voar no país dos santos,
de Santos Dumont.
É absolutamente previsível o sonho na pátria de Paulo Freire.

É indispensável sonhar para estar vivo.
Sonhemos como Nicolelis... 




Fonte da Imagem:
Escola Alfredo Monteverde
(idealizada e mantida pelo sonho de Nicolelis)

domingo, dezembro 26, 2010

PASTORIL (dança sem corpos)









































Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas, como no delírio dos bailes populares e esse avesso será, seu verdadeiro lugar. (Antonin Artaud)





Convoquem-se os doutorandos pra dançar,
enquanto é dia...
Cantem-se os cânticos aurorais.
Dancem-se as danças circulares...
Que falem as crianças, os doidos e os poetas,
num intraduzível canto sem métrica,
à claridade, aqui, ali, à claridade,
enquanto se pode achá-la!


Dias virão em que fugiremos pros montes
com pavor de nossos filhos e filhas.
Eles já não nos ouvem e falam um dialeto de autistas,
um poderoso discurso para iniciados.
Salvem-se os jovens dessa seita academicista,
em que se untam de poder e de verdades.




Quando criança eu falava com as gramíneas,
com as formigas, com os insetos do quintal.
Estávamos entrelaçados, minhas raízes e eu.
Meus pais riam disso.
Doidices de crianças, diziam.


Loucura e poíesis, digo eu.


As crianças dessa nova era
estão tomadas por estranha terminologia,
e já não brincam como dantes.
Antes, fabricam-se modos de ver, de pensar, de existir.
O imaginário foi engarrafado.
Envazadas as enunciações poéticas
e as artes, em um discurso de infalíveis.


Urge que se convoquem os jovens doutorandos pra dançar,
sem corpos e sem órgãos,
Dançar deliricamente...
Em transe, com gritos primais.


Urge que cantem as crianças, os doidos e os poetas,
num intraduzível canto sem métrica,
à claridade,
Aqui, à claridade,
enquanto se pode achá-la!




Imagem:
Pastoril na Várzea - Recife
Dezembro/2009

quinta-feira, dezembro 23, 2010

D'US NA CAATINGA (invernada e conação)






















“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir.”
(Proposição XV, da Ética de Spinoza,)




Faz três noites que relampeia...
Ribombam trovões na caatinga.


Estou sem mim.
Vaga pela noite o que eu julgava ser.
Olhos nômades, intumescidos de esperança.
Clarões no horizonte.
A noite rasgada por luzes.
Fluxos coruscantes.


Apalpo-me.
Não tenho em que me tocar.
Sou relâmpagos.
Fui.
Sou ainda.
Isso persevera em mim e em mim se ama.
Sou esse arbusto em chamas.


Quando desabar a chuvarada,
jatos de fogo e água, de ar e terra,
Serei manhã.
Serei saúde.
Serei a vontade de ser que já sou.
Encharcado de D'us, que nem Baruch...







Fonte da imagem:
Raios no sertão

sábado, dezembro 18, 2010

NATIVIDADE (um orquidófilo)


















1
A mais bela flor de plástico,
por mais artifícios miméticos,
que lhe sustentem a estética,
em sua forma fabril,
não alcançará o belo,
que emergiu da semente,
aquilo que só se sente
na beleza da flor viva.

O bom é ser orquidófilo
dos que se embrenham no mato,
arrostando pedra e espinhos,
descendo em sombrias grutas,
só para olhar in natura
uma flor viva e inculta...


2
Isso que vejo nas lojas é apenas superfície.
Imagens otimizadas com um bom computador.
Esses sorrisos felizes, essas pessoas sem rugas.
Essas orquídeas de plástico...
Quando entraremos de fato
na intimidade das coisas,
naquele sítio fecundo,
de onde emergem as dores,
os humores, os amores?

3
Isso porque necessito
desnudar todo o aparente.
Palpar a palavra crua, a debater-se, com alma,
qual peixe vivo numa rede.

Não que eu descreia dos magos,
Borges, Osman,
Rosa e Saramago.
Não só creio, como vejo revoando, aves de barro.
Muitas aves de seis asas.
E um nome: Diadorim.
Creio piamente em parábolas.
Como essas, que saem de mim.
Essas de orquídeas que medram
na umidade das pedras.


4
Eis a razão de embrenhar-me
neste ser-tão orquidário...
Fugindo da superfície,
esse jardim de crendices,
que sustentam o imaginário.

Quero verdades profundas,
luzes, mas, nas consciências,
como na casa esquecida,
em que um menino nasceu,
trazendo as luzes à vida.

No mais fundo dos sertões,
na escuridão, sem neons,
só com os luzeiros da noite
eis que um menino nasceu;
(pra meu prazer de orquidófilo)
como uma raríssima orquídea.




Eurico,
rendendo-se ao natal, digo, à natividade.

SALMO SERTÂNICO (de cabras e de nuvens)





















Cruzo esses mundos sertânicos
que me habitam o âmago,
a escalar pedras e montes,
pisando a vegetação rasteira e outras palavras miúdas...

Nas costas, um matulão de incertezas,
de inquirições agnósticas,
perguntas tantas vezes repetidas,
sob o Sol desses desertos...

Carrego a minha Dúvida,
mas não, meu ateísmo.

Saibam todos que Deus, nessas léguas perdidas,
é uma necessidade vital.
É como o ar fresco e úmido, que leva as cabras
sempre mais alto, nesses montes desertos.
Deus está nas nuvens mais densas
e umedece o nariz dos caprinos...
Nesses sertões,
busca-se Deus, com olhos de cabra sedenta.
Os olhos dos viajores bramam por Deus.
Assim são os olhos da alma.
Alma?
Sim, isso, que nos faz ter gana de viver.
Isso, em que flui, instintiva, a lei natural da sobrevivência.
Esse vapor d'água,
que brilha nos olhos dos rebanhos assustados;

Essa nuvem cor de chumbo sobre a caatinga, está prenhe de Deus,
O mesmo Deus de Baruch Spinoza, encobre os céus dos sertões.
O Deus que de repente desabará, pluvial, sobre essa Dúvida
e encharcará a chã sequiosa dessa caminhada.

Deus, nessas léguas sertânicas, é essa necessidade radical,
no âmago estremecido da vida.

Subo este monte, carregando a minha sede,
e alço meus olhos aos céus cinzentos.

Sopra, invisível, um vento umedecido.
Sinto o sagrado em minhas narinas...


Eurico, sertânico
(bramando, "como o cervo, pelas correntes das águas...")

Com humilde dedicatória a Elomar, imenso criador de cabras, palavras e canções.

Fonte da imagem:
Cabras sertanejas

quinta-feira, dezembro 16, 2010

NA VELHA ESTRADA DE IBIMIRIM (cismas no ocaso)




















Era estreita e sinuosa
a antiga estrada de Ibimirim.
Os pequenos aclives nos tiravam a visão.
Num fim da tarde, uma boiada
surgiu no horizonte, vagarosamente.
Ágil e presto, o motorista, em ziguezagues,
nos salvou do choque.
Seguimos ilesos, bois e passageiros.
Nunca me esquecerei dos grandes olhos daquele boi manso,
em minhas retinas tão fatigadas.

A viagem seguiu serena.

Somos pequeninos e frágeis sobre rodas.
Somos pequeninos e frágeis, sempre.

A parte disso, temos tantas certezas,
tantas fortalezas,
confiamos em nosso absoluto domínio
sobre as coisas em derredor.
Quando voamos na autoestrada,
rimos, confiantes, feito as formigas sobre a mesa,
antes de lhes
darmos um piparote.

É...
o mundo não anda nada poético...
Tento entender o que diz um telejornal.
Explico-me:
tento tirar algo mais do que dados economicos,
estatísticas de mortes no trânsito,
performance das vendas do Natal;
quanto há ali de profundamente humano,
quanto há de esforço pela compreensão da vida humana...
Queria ouvir falar de valores, não os da bolsa.
Aliás, valor é uma palavra dúbia,
e sob certo sentido, obsoleta.
Não se adequaria num telejornal.
Como encaixar valor, neste cenário pós-moderno?
Eis que estou a tresvariar.

A boiada... os olhos do boi manso pelo retrovisor...
O susto.

Sob o impacto de certas emoções,
fica difícil dizer algo coerente.
Muito mais dificil fica a poesia...

Sabe, aquele ágil motorista, o que nos salvou a vida
na velha estrada de Ibimirim, soube dele dia desses...
a bebida...
a tristeza...
a velhice... as perdas,

Essas coisas que não ficam muito claras nos telejornais...
Esse sentido da vida... se há nela algum sentido.
A necessidade de ser veloz, de fugir de si mesmo...
Os ziguezagues da estrada...
As perdas no meio do caminho.
Essa enorme e abstrata pedra...

...que a viagem dele tenha sido serena...




Fonte da imagem:
Uma velha estrada

segunda-feira, dezembro 13, 2010

CHAPADA DO ARARIPE (de volta à superfície)




Do alto da chapada do Araripe,
encho o peito e brado em alta voz
o nome das virtudes humanas
(Como aconselham os adeptos da auto-sugestão)
E eu grito:
Perseverança.
Coragem.
Fé.

Nada mudou.
Nada.
Só ouço o ecoar das palavras...

Lembro do Exército da Salvação
com zabumbas, na feira do Exu,
a pregar a segunda vinda de N. S. Jesus Cristo.
E eu brado, ainda, a favor dos ventos:
O fim está próximo!

Ouvem-se apenas o eco das minhas incertezas...

Quando se é jovem e nietzscheano
aventa-se para o amor fati,
ou para uma amoral vontade de poder.
Os estudantes saltam pra morte
do prédio das Ciências Humanas da UFPE.
Deviam vir todos saltar cá da chapada.
A morte aqui tem mais poesia...

Eu, que tenho medo da morte em queda livre,
encolho-me em volta do meu umbigo,
retorno à posição fetal:
De onde me virá o perigo?
Onde me abrigarei do mal?

Absolutamente só,
em meio a essa imensa legião humana.
Ouço seus gritos por sortes,
por crenças,
com uma inocência quase lotérica.
Absolutamente só
me invade uma súbita desolação
uma descrença dos livros e das palavras.

Resta-me ainda São Paulo Apóstolo:
Sou Nada. (1 Cor. 13)

Isso eu sei que sou!
Meu Deus!
Vejam a imensidão dessa chapada!
E o eco imenso a responder, do fundo do canion:

Nada... nada... nada...





Fonte da imagem:
Sertão de Pernambuco

domingo, dezembro 12, 2010

NOITES DE PAZ (presépio interior)




















É quase Natal.
Vou fugindo por essa estrada sertaneja, feito rês desgarrada.
As alpercatas ressecadas
pisam pedregulhos,
os santos pedregulhos desse sertão profundo.
Mas e o Oriente?
Pra que lado fica?

Sei que nada é assim tão fácil de crer...
Há um centro de convergência dos sentidos,
das significações dessa existencia.
Isso que Adélia Prado chama de Deus.
Isso: essa experiencia poético-pensante do Ser.
Isso me entusiasma.
Logo, o que não me entusiasma, não é Deus...

Num radinho de pilhas, um homem
anuncia, com voz bela e empostada
:
"As vendas devem aumentar de 12 a 13%,
em relação ao ano passado.
A economia cresceu e o povo está feliz."

Eu não estou feliz.
Nem sei porque.
Minhas emoções estão impermeabilizadas.
Nenhum desses produtos me agrada.
Sou o 0% do consumo.
Sou o nada.

E por isso mesmo tomei o rumo dessa estrada interior.
Busco algo instintivo, algo sagrado em mim,
um religare introjetado em um gene qualquer.
O tal grão de mostarda.
A fé.

Mesmo que seja a fanática fé dos habitantes do arraial de Canudos,
ou dos que davam suas crianças em sacrifício, na Pedra Bonita.
A Fé.
Deve habitar em algum lugar psíquico.
Mas, sem essas luzes piscando.
Sem essa saturação de cores.
Sem esses monótonos clichês.

Fechar os olhos.
Retornar à estrada empoeirada.
Quem sabe pousar numa estrebaria.
Deitar entre a forragem de palmas, de mandacarus.
E achar ali um místico presépio,
um centro de irradiação de Deus.
Um delírio. Um desdobramento.
Algo menos ridículo que os feéricos presépios , nos centros de compras.

Por quem morreu o beato Antonio Vicente?
Por quem sangraram as mãos de Francisco Bernadoni?
Pela fé, pela loucura, por nada?
Há um centro de convergencia das significações do ser,
disse Adélia Prado.
Dolorido, difícil de achar, mas, verdadeiro.

Guardo-o aqui,
em meu ser tão profundo,
num aboio distante,
na noite que cai,
no zurrar de um jumento,
e no chocalho dos bois.

Tenho aqui uma manjedoura verdadeira,
onde comem as cabritas e as ovelhas,
e em que acredito,
vejo e apalpo como o bom Tomé.
Ouço-as até ruminar e balir.

Seria esse meu centro de sentido?
O meu nervo do divino?

Estaria aqui, também escondido, o Menino-deus,
com pavor dos fogos de artifício
e fugindo daquele obeso senhor de agasalho vermelho,
que sempre lhe rouba o dia natalício?

Não sei.
Sei que eu estou fugindo.
E aqui já é quase Natal...
Silencioso natal das solidões ancestrais.
Nos sertões, nas estepes, nos desertos há noites de paz...




Fonte da imagem:
Magos e Estrela

sábado, dezembro 11, 2010

UAUÁ (linossignos oscilantes)

























Chegaríamos na noite,

noite profunda,
noite ignara e hermética,
depois duma escuridão de léguas...


O sereno, no entanto,
molhava as c'roas e as palmas
e nos breus, de instante a instante
flutuavam
dois fonemas oscilantes


Uauá


lume aceso que se apaga,
que outra vez lucila e apaga,
lume que vaga, e não vaga
pelas barrancas do arroio


Uauá
(borbulhar luminescente...)


E eu que tinha algo a dizer,
Calei-me.
Na noite densa,
gelada, feito a orla do deserto,
deu-me um calafrio de tragédia.
Naquela chã, ainda ecoa o genocídio
:

As estrelas eram os olhinhos
das menininhas tapuias que as gentes viam na noite.
Apagaram-se as estrelas.
As indiazinhas, tambem.
Restaram os vagalumes, Uauás lucilantes.


Rio-abaixo,
mais adiante
era Canudos, Bello Monte,
à jusante
do velho Vaza-barris...
Era Canudos, num é mais.
Nosso Senhor assim quis...


Lá, meus irmãos, no entanto,
já não brilham pirilampos, como brilham por aqui
:
Furaram os olhos dos santos
e inundaram a Matriz...






Eurico
"em viagem interior ao sertão de Canudos"

Fonte da imagem:
Pirilampos

sexta-feira, dezembro 10, 2010

MEDITAÇÕES EM VAZA-BARRIS (predição de wikileaks?)






1
Busco a nascente inundada do Vaza-barris e medito.
Quanta sabedoria a dos profetas,
a dos videntes,
a dos utópicos e a dos beatos dementes...
Quanta presciência...

2
Mediam-nos os crânios decapitados
e nos expunham em praça pública,
os detentores duma pseudo-ciência.

Que tipo de saber lhes coube, lhes cabe?
O que aprenderam em nossos crânios, não sei.
Mas percebo seus efeitos
na civilização (entrópica) de que se ufanam.

(Ajunto numa pequena cuia de pedinte em Bello Monte,
toda a pretensa teoria desses Lombrosos e Comtes.)

E não mais me estendo nessa prosa,
posto que é prosa isso que ledes,
prosa p(r)o(f)ética:

"Há de chegar o tempo em que todas as perfídias ocultas
virão ter à luz do Sol..."



Sobre Wikileaks:
"No inglês, a palavra leak remete ao germânico lechzen ("ressecar", "produzir sede"). O sentido de "tornar conhecido algo sigiloso" data do início do século XIX." Gabriel Perissé


Leia mais sobre em... Massacre de Canudos

Cantiga da Flor de Cacto




Há um logos da caatinga
que me circunda e sou eu.
Nessa flora estiolada,
palpita um nervo de D'us...

Fiz inúteis cavalgadas
a procurar quintessências.
Regressei de mãos vazias.
Minha alma então cansada
de deambular por chapadas,
cruzando o sertão bravio,
voltou-se pras minudências,
e desvendou, ad-mirada,
na flor que enfrenta o estio,
o mistério da existência.
Quase palpei com as pupilas
a miúda flor de cacto,
essa líquida ironia,
que umedeceu minha alma.
E a divindade, buscada
por inacessíveis plagas,
brotou ao alcance da palma
de minha mão estendida,
na flor da beira da estrada.

Há um logos da caatinga
e o que me circunda sou eu.
Na vegetação rasteira,
palpita um nervo de D'us...
***
N. do A.: cantiga dedicada aos poetas blogueiros,
cuja clareza textual me faz buscar a simplicidade,
que julgo não alcançar, mesmo nessa espécie de xote.

***
fonte da img.:
.

Alcácer-quibir revisitada



















Uma monocromia armorial
dedicada a Dom Ariano Villar Suassuna



Vermelhidões no poente,
céu sangüíneo, incandescente.
Da porfia oiço o alarido:

Rezas,
.......rajadas,
...............rugidos.

sonho um sonho mal dormido:
de morte, em luta renhida,
foi Dom Sebastião malferido?

Feito de sonho é o que vejo:
estranhos carros de fogo
cruzam os céus sertanejos.
Ungem de luz a caatinga
Essas flamejantes bigas.
Vermelhidões no poente:
Seriam sarças ardentes?

Nos sertões os céus tão rubros:
sangue na chã de Canudos?

Ao longe oiço estampidos:
raios,
......trovões
............. e gemidos...

Vermelhidões no poente
rumores de gado e gente
clamor do sangue inocente:
hereges sangrando os crentes?

sonho um sonho mal dormido:
de morte,( ouço o rugido)
foi o Prinspe atingido?...

Vermelhidões no poente:
crepúsculo enceguecente,
E, em estranho disco de fogo,
vejo Dom Sebastião soerguido...


Eurico

Fonte do texto:
meu inédito, Ser/tão profundo - Mangue interior,


Fonte imagem:
Batalha de Alcácer-quibir

QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

















Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?


Fernando Pessoa (in Mensagem)


Fonte da imagem:
Antonio Conselheiro

Fonte do poema:
Jornal de Poesia

quinta-feira, dezembro 09, 2010

AÇUDE COCOROBÓ



















"ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. (...)" Euclydes da Cunha



Sentei-me às margens do Cocorobó,
e chorei copiosamente.

Pranteei os loucos,
os deserdados do mundo,
os sem-teto, os sem-terra, os sem-história.
Os zé-ninguém,
aqueles, paupérrimos de espírito, de N. S. Jesus Cristo.

O Sol da tarde ia sumindo no horizonte e eu
dependurei meu alforje nas galhadas dos salgueiros.
Fiquei matutando, cá com minhas armoriais tristezas:

os filhos da República mais avançada do mundo
morrem de obesidade mórbida;

a República do povo do D'us único
ameaça seus vizinhos com a bomba;

as modernas metrópoles republicanas,
com sua arquitetura e urbanismo,
sua ciência e tecnologia,
estão quase sem ar puro pra respirar...

Apocalíptica ironia do mundo moderno:
Ninguém os toma por loucos.
(Os loucos estavam mesmo em Canudos e eram
miseráveis hereges e monarquistas)

Submersas sob Cocorobó,
as ruínas de nossa Atlântida sertaneja:
cidadela dos santos loucos,
dos fanáticos visionários,
(e quem sabe, até, dos nossos primevos comunistas)

Submersa a capela dos heróicos ébrios de Deus.
Uma tentativa (inútil) de banir sua memória,
com essa inundação infame e letal.

De meu peito intra-histórico
verto essa lacrimosa ladainha sebastianista...
E creiam-me, os que aquecem o planeta
com milhões de fornos entrópicos e suicidas,

"O mar, senhores donos do mundo, há de virar sertão!"...


*************************************
Eurico, mergulhado no sertão de Cocorobó.
(com a permissão visionária do eu-lírico)

Fonte da imagem:
Canudos submersa

Mandacaru em flor


... E por que andais solícitos?
Olhai para as flores do campo ...
Mt 6:28

Das rotinas profundas
de seiva e de caules,
repetindo gestos,
pacientemente,
careço entender...
Que os momentos são copas do tempo.
Que a corola da flor é o momento presente.

Vem da erva que brota do chão,
da semente,
todo esse vigor.
Vem da alma da terra,
essa mente,
essa e/terna/mente.
Vem do viço da terra,
da hera, das eras,
do trabalho incessante
do tempo em aquíferos fundos,
profundos abismos
e grotas da terra exsicada...

*

Ó, Flor da Água e do Tempo,
me ensina a esperar!


***


Eurico
com o Sertão aflorando n'alma
******************

terça-feira, dezembro 07, 2010

BELÉM (o milagre das águas)



















Quando vem a invernada e a ventania,
o milagre e a poíesis se confundem no sertão.
Dos poros da areia estéril
emergem filetes d’água
que, descendo dos barrancos,
soprados pela espinhara,
vão tornando as enxurradas
em multidão de afluentes:

Riachos
da Conceição,
dos Serrotes Brancos, Quixaba,
do Meio, da Santa Fé, de Baixo,
do Paraguá, Vaca Morta, do Sebo,
do Pau-Ferro, Pequeno, Ouricuri,
do Juazeiro, da Porta, do Umbuzeiro,
das Caraíbas, da Malhada Grande, Pocinhos, Tigre,
do Mateus, Caroá, Arapuá, Ipueira, Fechado, Traíras, Jequi,

Arroios
dos Brandões,
da Pedra, Fundo, Grande, Talhado, do Saguim,
de Baixo, da Serra, da Boa Esperança, Saco dos Cavalos,
da Macambira, do Logradouro, do Mocó,
do Retiro, da Simpatia, do Moleque, da Cachoeira,
da Pedra, da Estiveira, do Simões,
do Capim, do Cachorro, do Mulungu,
da Ingazeira, do Serrote, S. José,
da Várzea, do Iço, do Capim Grosso, Bom Viver,
da Tocaia, das Ipueiras, do Moselo, do Caldeirão, Água Ruim,
do Mari, das Pintadinhas e das Cabaças.

Brotam do chão seco as Lagoas
da Jurema, de Dentro,
do Campo Comprido, do Pajeú, da Areia, Grande,
do Tapuio, dos Algodões, da Espadilha, do Pombo,
dos Pregos, da Vassoura, da Malhada Vermelha, de Santana,
da Pedra Vermelha e das Pintadinhas,

E os abençoados Açudes
Riacho Pequeno e o Poço da Caatinga.

Tudo isso é pura poíesis!
Milagrosa hidrologia!

E pensar que há um imenso lençol de águas claras
sob a sedenta e semi-árida Cabrobó,
que se estende, subterrâneo, até a nossa Belém,
do São Francisco.
Os geólogos, incréus, afirmam que
a permeabilidade do solo sertanejo
foram o ensejo
para que esse imenso aquífero
escapasse da evaporação do Sol causticante.

Eu prefiro o milagre e a poesia!
Eu prefiro poetizar forças aórgicas, milenárias,
guardando, demiúrgicas, as águas,
contendo a inclemência do Sol,
e abrindo caudais, sob o solo esturricado.

Eu creio no milagre em Belém...



Fonte da imagem:
Imbu Brasil

Dados hidrográficos:
recolhidos do Google.


Eurico
Ainda o mergulho (natalino) no Sertão profundo de mim.
Há milagres e Deus, na natureza como ela é...

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Natal? (o anti-kitsch)



As mais belas mentiras habitam aqui.
Nessa selva armada de concreto e cal.

Jogos de artifício.
Luzes de ilusão.
Magos mercadores,
Presti/digitação.

Verdes ruas doiradas,
feérica vermelhidão!

Nevascas fabricadas
com papel crepom,
Estrelas cintilantes
de processador,
e o excessivo choque
de imagem e de som.

As mais belas mentiras habitam aqui,
Nessa selva armada de concreto e cal.
Brindemos à ilusão
na egolatria geral...

***********************************


domingo, dezembro 05, 2010

O FATO (ou, esvaziamento do discurso acadêmico)


























Ao Mestre Vasconcellos Sobrinho


O sol é exato, é fato.
A ciência apura: quantas, fótons.
E eu, cá embaixo,
Um fato?

Dado concreto, objeto dissecado.
No entanto, assistemático.
Quem mensura não me explica.
Que morra toda a estatística
E que a ciência estertore
Como fato de cabrita
Pendurada no curtume.

Sob o sol, nesses ardores,
Não calculem minhas dores.

Quero p(r)o(f)etas,
Não, doutores.


O sol deveras é exato, lá no alto.
E eu,
o objeto, o fato,
ressecado no arame.

Rejeito o método.
Rejeito o número.
Rejeito o nome.

Só me consumo.
E o sol me consome.

Eis um homem!



Fonte da imagem:
Estamira - o filme

KINO-GLAZ ÁRIDO (ou, meu cine-olho lírico)




















a Dziga Vertov



Pra beber água?
Imita o gado.
É coisa simples:
Basta colar a boca na beira do barreiro
E sorver de vez o líquido quente, assim;
Com os dentes prender
os grãos de areia e
deixar descer pela goela a água tépida
a decantar-se em argila na traquéia.

Se como ratos?
Lagartixas?
Gafanhotos, feito São João Batista?

Por esse sol que me alumia, já comi, sim,
faz tempo...
e, sem ser profeta..

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E essa máquina que filma minha neta,
Assim franzina
(sai, menina!)
brincando nessa terra ressecada,
(sai, Dolores!)
zanzando ainda, comigo pelo mundo, Deus é pai!
Grave um recado pros homens que governam essa terra...
Ah, nojentos!
Insetos no solado da alpercata!
Diga a eles que de fome se morre,
Mas que de fome se mata!
Que as gentes não têm sangue de barata!


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O Eu-lírico mergulha no semi-árido.
(fugindo da zona de conforto;
tenho terror-pânico do Papai Nöel)


Fonte da imagem:
Fatos e Fotos da Caatinga

sábado, dezembro 04, 2010

DAS DORES (releitura em Eleanor Rigby)




















...................................a Lennon e McCartney



Das Dores era uma mulher solitária.
Habitava uma casinha de taipa no sertão do Exu,
E criava muitas cabras, todas pretas, soltas pela caatinga.

Só costumava ir à missa
nos dias em que havia casamento,
a ver se conseguia pegar o buquê.
Nesses dias o velho padre lhe falava da salvação da alma.

Flores na mão, seguia rindo,
pela estrada empoeirada.
Ria muito, aquela mulher, casta e solitária.
Ria, não se sabe de quê.
As cabras a seguiam, em cortejo, comendo as flores murchas.

Quando morreu não havia ninguém no enterro.
As cabras não vieram: não houve flores.
Somente o vulto de uma cadela, preta e triste, rondava o campo santo.

O velho pároco recitou um trecho do Sermão de Santo Antonio aos Peixes, à beira da cova rasa.
“Vos estis sal terrae...”
Um inútil sermão para uma alma extinta e breve.

Que o sal dessa terra seca lhe seja leve...




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Eurico uma releitura livre e
ditada pela emoção que sinto ao ouvir
Eleanor Rigby.




AH, LOOK AT ALL THE LONELY PEOPLE!
AH, LOOK AT ALL THE LONELY PEOPLE!

ELEANOR RIGBY PICKS UP THE RICE IN THE CHURCH
WHERE A WEDDING HAS BEEN
LIVES IN A DREAM
WAITS AT THE WINDOW
WEARING A FACE THAT SHE KEEPS IN A JAR BY THE DOOR
WHO IS IT FOR?

ALL THE LONELY PEOPLE
WHERE DO THEY ALL COME FROM?
ALL THE LONELY PEOPLE
WHERE DO THEY ALL BELONG?

FATHER MCKENZIE, WRITING THE WORDS OF A SERMON
THAT NO ONE WILL HEAR
NO ONE COMES NEAR
LOOK AT HIM WORKING, DARNING HIS SOCKS IN THE NIGHT
WHEN THERE´S NOBODY THERE
WHAT DOES HE CARE?

ALL THE LONELY PEOPLE...

ELEANOR RIGBY DIED IN THE CHURCH
AND WAS BURIED ALONG WITH HER NAME
NOBODY CAME
FATHER MCKENZIE WIPING THE DIRT FROM HIS HANDS
AS HE WALKS FROM THE GRAVE
NO ONE WAS SAVED

ALL THE LONELY PEOPLE...

AH, LOOK AT ALL THE LONELY PEOPLE!...
Mormente, ao ler a versão da Cássia Eller.
Ohw, olhe pra todas as pessoas solitárias...
Ohw, olhe pra todas as pessoas solitárias...

Eleanor rigby recolhe arroz na igreja
Onde houve um casamento
Vive num sonho
Espera na janela
Ostentando um rosto que ela deixa numa jarra ao lado da porta
Para quem é isso?

Todas as pessoas solitárias...
De onde elas vem?
Todas as pessoas solitárias...
A onde elas pertencem?

Padre Mckenzie escrevendo um sermão
Que ninguém vai ouvir
Ninguém se aproxima
Olhe pra ele trabalhando, costurando suas meias à noite
Quando ninguém está lá
Pro quê ele se importa?

Eleanor rigby morreu na igreja
E foi enterrada junto com seu nome
Ninguém veio
Padre Mckenzie limpando a sujeira das mãos
Enquanto caminha da sepultura
Ninguém foi salvo


Moral do poeminha:há solidão em qualquer lugar,
em Liverpool
ou no Exu.

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Fonte da imagem:
Vidas Secas


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sexta-feira, dezembro 03, 2010

ÊXODO (uma pré-história dos morros e favelas)



















Ali não havia mais viv'alma.
Parcos eram os dados censitários
na arquivália da antiga cidade.
Os moços fugiram.
Fugiram do estio, como fogem a araponga e a ribaçã.
Seguiram, no rastro empoado das carretas.

Na solidão de léguas ecoa apenas o zumbido da cigarra.

Ficou um imenso sertão na alma de cada saudoso ancião.
Ficaram os que esperavam uma invernada...

...Os moços todos sonham com o Cristo Redentor,
com a paisagem insólita do morro Dois Irmãos.
Todos anelam pela partida.
Sonham com a liberdade da avenida Automóvel Club,
margeando o casario do Engenho da Rainha, onde já residem muitos parentes...


Em breve, ocupariam todas as penhas escarpadas da cidade de São Sebastião...
Pobres,
frágeis e pingentes,
e com um imenso e vazio sertão em suas almas saudosas.

Muitos deles,

os que depositaram seus sonhos nessas ilusórias vertentes,

despencariam numa avalanche de lixo.

Esses não suportariam uma severa invernada...






Fonte da imagem:

Conceição do Coité - Bahia
Praça 8 de Dezembro – Centro.
Foto publicada no livro “Conceição do Coité, A Capital do Sisal”, 2ª Edição, ano de 2001, de autoria de Vanilson Oliveira. – Ano de 1951.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Vem, Noite antiquíssima e idêntica...
















DOIS EXCERTOS DE ODES
(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)



Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.



Álvaro de Campos
30-6-1914
“Dois Excertos de Odes (Fins de duas odes, naturalmente)”.
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
- 155.
1ª publ. in Revista de Portugal, nº4. Lisboa: Jul. 1938.


Fonte img:
Lua sobre deserto

sexta-feira, novembro 26, 2010

Peso aos Habitantes dos Outeiros da Vila Real de São Sebastião, no Ano da Graça de 1993






















"Então disse eu: Melhor é a Sabedoria do que a Força,
ainda que a sabedoria do pobre é desprezada,
e as suas palavras não são ouvidas."
** ****** (Eclesiastes IX, 16)


Quando o mais frio dos monstros subir essas ladeiras,
criatura abstrata e furiosa,
escalando escadarias,
salpicando estrelas sanguíneas,
pelas escarpas de vossos temores;
rompendo os umbrais desses frágeis casulos,
cobertos de zinco e desonra;
quando isso ocorrer, sêde sábias serpentes:
olhai os vossos mortos distraídos
por saber que nos morros mal nutridos
é sempre relativo todo mal.


Quando roçarem vossos dorsos,
sibilantes foguetes,
cadentes projetis,
troando, zunindo, fulgindo,
rugindo, retumbantes,
nesse absurdo convívio entre estampidos e batuques,
um trom de artilheria em céus pirotécnicos,
tumulto e uma teratológica presença;
pisai os vossos corpos distraídos,
por saber que nos morros invadidos
é sempre relativo todo mal.

Acautelai-vos, ó gente esfarrapadamente feliz,
que as barreiras da história não tem arrimo,
que vossos gritos sumirão, inúteis, no olvido das gentes.
Cavai trincheiras nas fendas da alma, se há viva alma,
barricadas ao monstro nietzcheano,
barricadas de silêncio e dor.

Que tendes com essa guerra dos titãs?
Cá desse lugar distante vos contemplo,
(de minha escrivania no Planeta dos Macacos)
cúmplice de vossas cavilações ladinas,
arrastões, pequenos lances,

dribles garrinchas na fome e na miséria,
astúcias de quem vive no espaço desse avêsso:
esses casebres vergados à beira do abismo,

taturanas de anônimas latas no chafariz,
bordas amassadas de marmitas vazias.



Quando o mais frio dos monstros chegar
buscai de Deus as linhas tortas,
ó cidadãos dos outeiros da Vila Real de São Sebastião!
Enquanto não sobe as ladeiras o anjo destruidor,

girai roletas russas que a miséria envilece,
jogai os dados que a miséria afrouxa os laços.
Deixai que lutem os deuses do absurdo
e que seus cadáveres voltem ao Pó de onde vieram.
Quando esse monstro chegar guardai silencio,

guardai vossas crianças e segredos.


Lembrai do bom conselho, que vos dou, de graça:
pisai sobre os valores sem sentido,
por saber que nos morros esquecidos
é sempre relativo todo mal...

Eurico
1993
Pós escrito em 2010:
poema-vaticínio, escrito em 1993,
sobre a guerra civil que se anunciava nos morros e favelas das metrópoles brasileiras.

Fonte da imagem:
http://img46.imageshack.us/img46/2279/baianord7.jpg

quinta-feira, novembro 25, 2010

TERCEIRO OLHO (renascimento)



Hubble
imagem recolhida do Google


Ver não é apenas compilar
pontos desconexos, pixels,
varreduras de imagens por segundo.
Ninguém vê apenas com os olhos.
Esses mesmos olhos com que se está
à mesa da cozinha a cortar cebolas
e a chorar lágrimas sem nexo.
Ver vai além do apenas ver.
Interpreta-se assim que se olha,
se é cebola ou emoção,
o que arde nos olhos.
E o conceito já vem atado à coisa que se vê.
Por isso, acautelai-vos com o visual.

(Bom seria fechar os olhos por minutos
ou passar os dias longe dos televisores.
Há muito o que se ver na própria tela mental.)

Imaginem:
A Poesia é um imenso nascedouro de imagens.
Hubble às avessas.
Ôlho pra dentro.
Muito dentro,
em regiões abissais.
Dentro de mim,
o riso distraído e indene
de uma criança revolvendo a Terra.
A bola colorida e um pátio: o espaço.
Um poço com roldana.
Um olho que me olha no centro imemorial da noite.
A hera.
As eras.
Estrelas, lumes, vagalumes.
Lá no centro de mim
sou um buraco negro e aquático,
galáxia aprazível.
Esse colo estelar, ubérrimo,
irresistível.

(Voluteio, centrípeto,
pra dentro de Deus?)

Eis que a Poesia alberga esse invisível
fulcro numinoso

:

Mãe!
Sou eu, filho...

terça-feira, novembro 23, 2010

O Evangelho segundo Pessoa...



















(poema sem título, de Fernando Pessoa)



Ali não havia eletricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a "Primeira Epístola aos Coríntios".
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A "Primeira Epístola aos Coríntios" ...
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...
Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
"Se eu não tivesse a caridade."
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre...
"Se eu não tivesse a caridade..."
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade! ...




Fonte da imagem:
http://8e.img.v4.skyrock.net/8e8/priscilamachado/pics/1945701817_small_1.jpg

quarta-feira, novembro 17, 2010

HERESIAS nº4 (final)





Lutei.
A luta é vã
e eu rendido estou.
Tudo é permitido ao Amor.

Brindo às Bodas em Caná.
Deleitosa é a apostasia,
em que se erguem as taças.
Abandono-me ao Caminho,
profunda/mente livre,
dos heresiarcas.

Fonte da imagem:

segunda-feira, novembro 15, 2010

HERESIAS nº 3





Vencido está
quem de teu brilho sabe.
Tua força é madre
e em ti revive o orbe.
Trazes saltérios, flautas
e essa dança
num Reino governado por crianças:
És o Caminho
da vida em abundância.



***


Fonte da imagem:

HERESIAS nº 2




Avia-te, ó Bardo!

Estás na humilde trípode
e em ti se evocam as vozes femininas
dos arcanos celestes.

Não és mais teu.
E os orbitais
das cousas indizíveis
invadem-te as sinapses.


Avia-te!
E retoma o Caminho.






Fonte da imagem:

domingo, novembro 14, 2010

HERESIAS nº 1



Uma infinidade de justapostas (in)certezas
formam em minhalma um instável mosaico.

Mil ritos sufocam-me
e a profusão de verdades litúrgicas engessa-me a emoção.

...Sonho a liberdade de uma Samaria proscrita...


Já não temos poços, nem cântaros;
A brisa sopra onde quer.
Beberei das nuvens que escorrem
das Tuas Mãos em concha.

Retomo as minhas pegadas nesse oculto Caminho do Interior.







Imagem recolhida do Google.

segunda-feira, novembro 01, 2010

PELEJA

























Acender uma fogueira
Sobre os destroços da fúria:
Dizer o dom mais terrível
No tom da mais vil ternura.
Por monossílabos vastos
Cantar o avêsso, a feiúra.

Atravessar a existência,
Esse fado, essa caatinga,
Com a Língua ressecada
E o estio dentro da fala.

Domar a Onça suasssuna
Da Vida graciliana,
Inda que o peito lanhado
Pela palavra, cardeiro;
Pela palavra, essa morte.

Aboiar angustiado,
Rumor de vozes queimando:
Viver é ser renitente,
Acender uma fogueira
Sobre os destroços, os destroços,
(...ai, que légua tão tirana...)
sobre os destroços da fúria.



Luiz Eurico de Melo Neto
(3º Lugar no Salão Pernambucano de Poesia – 1994)


Fonte da Imagem:
Ruínas da Capela de Canudos

Nota do blogueiro:

A mesma República positivista, que via os nordestinos como uma sub-raça,
hoje é obrigada a repensar suas teses: o maior líder desse país é um sábio e valente nordestino, que traz no sangue a estirpe dos bravos, dos renitentes, dos que superam a escassez e a fome, dos que jamais desistem de sua peleja.

Essa postagem homenageia os nordestinos, que, por votação histórica, pelejaram contra os adversários do bem comum, como um dia lutamos em Canudos. Estamos refazendo os caminhos da história e "acendendo uma fogueira sobre os destroços da fúria."


Em tempo:
e para fazer justiça ao povo fluminense e mineiro, quase metade do povo de Sampa e do Rio Grande do Sul, e metade das demais regiões deste Brasil que votaram na primeira mulher presidenta; ao mesmo tempo abraçar os que votaram na oposição, por entender que somos uma só nação, fraterna, cordial, solidária (basta lembrar da ajuda aos desabrigados das enchentes do nordeste), por tudo isso quero saudar a democracia, a liberdade e a sabedoria de todos os que escolheram manter a atual política, que diminui os extremos, que distribui renda, que dá início à construção de um Brasil com mais igualdade entre as regiões, que é bom pra todos os brasileiros e brasileiras.