Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, dezembro 18, 2010

SALMO SERTÂNICO (de cabras e de nuvens)





















Cruzo esses mundos sertânicos
que me habitam o âmago,
a escalar pedras e montes,
pisando a vegetação rasteira e outras palavras miúdas...

Nas costas, um matulão de incertezas,
de inquirições agnósticas,
perguntas tantas vezes repetidas,
sob o Sol desses desertos...

Carrego a minha Dúvida,
mas não, meu ateísmo.

Saibam todos que Deus, nessas léguas perdidas,
é uma necessidade vital.
É como o ar fresco e úmido, que leva as cabras
sempre mais alto, nesses montes desertos.
Deus está nas nuvens mais densas
e umedece o nariz dos caprinos...
Nesses sertões,
busca-se Deus, com olhos de cabra sedenta.
Os olhos dos viajores bramam por Deus.
Assim são os olhos da alma.
Alma?
Sim, isso, que nos faz ter gana de viver.
Isso, em que flui, instintiva, a lei natural da sobrevivência.
Esse vapor d'água,
que brilha nos olhos dos rebanhos assustados;

Essa nuvem cor de chumbo sobre a caatinga, está prenhe de Deus,
O mesmo Deus de Baruch Spinoza, encobre os céus dos sertões.
O Deus que de repente desabará, pluvial, sobre essa Dúvida
e encharcará a chã sequiosa dessa caminhada.

Deus, nessas léguas sertânicas, é essa necessidade radical,
no âmago estremecido da vida.

Subo este monte, carregando a minha sede,
e alço meus olhos aos céus cinzentos.

Sopra, invisível, um vento umedecido.
Sinto o sagrado em minhas narinas...


Eurico, sertânico
(bramando, "como o cervo, pelas correntes das águas...")

Com humilde dedicatória a Elomar, imenso criador de cabras, palavras e canções.

Fonte da imagem:
Cabras sertanejas

4 comentários:

Unknown disse...

magistral esse Salmo, esse cantar da nossa sertania, desse barro que se apega a alma, a chã de aluvião, o benfazejo vento que traz o cheiro das trovoadas,

grande abraço

p.s. plena recuperação, saúde e paz

Zélia Guardiano disse...

Ah, Eurico, Eurico...
Sublimes os seus versos!
Ah, esse ver Deus nas nuvens densas, cuidando da umidade do nariz dos caprinos, que coisa mais linda...
Salmo Sertânico, eu o lerei muitas e muitas vezes, e nunca será demais, sempre de menos...
Bravo, poeta!
Imenso abraço

Jacinta Dantas disse...

Eita que agora,lendo-te

vejo-me criança,
sinto-me criança,
a experimentar Deus nas alturas,
nas nuvens.

Pura emoção.

Um abraço

Rejane Martins disse...

...pois Eurico, vim por estradas sinuosas te conhecer melhor e, no caminho, o Salmo Sertânico.
Agnóstica, nunca pensei em me render a um salmo. Mas esse é muito bonito e necessário!