Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, maio 30, 2013

OFICINA (lirismo fold-in, em semantema retrátil)





















Assim, o artífice anima ao ourives,
e o que alisa com o martelo,
ao que bate na bigorna,
dizendo da soldadura: Está bem feita.
Então, com pregos fixa o ídolo para que não oscile.

Is. 41:7




O pequenino
o pequenino gesto
O pequenino gesto repetido
o pequenino e mesmo gesto repetido
e repetindo-se
move o anelo
no mesmo elo
elo por elo
move o martelo
faz do martelo flor desse gesto
fruto da gesta
abstraído de uma floresta,
flor desses gestos, abstraídos,
da martelagem
no peso o apenso
penso e pondero
pênsil pingente
pondero e penso
a peça rara
du’a ourivesaria
sob incensos

nas muitas dobras
e mais redobras
e mil batidas como em aldabras
tão repetidas essas palavras
pedras em salvas
ouro das lavras
de um tempo intenso
de tempo imenso
de um temp(l)o antigo
um santuário para o Infinito.

ouvir seus g/ritos
distinguir ritos,
haurir seus gritos
um ourives aos gritos,
hiero-gritos:

- Datemi un martello!
- Che cosa ne vuoi fare?

- Moldar os mitos.

Com hieroglifos
florões e grifos
oraiseescritos
roots e ritos
:
Assim, dá alento
ao lento
ourives,
e ao que modela os elos
os velos de oiro
sob o martelo
cravando os pontos
de filigranas
soldas precisas
e derretidas
sob as batidas
leves batidas
de modelagem numa bigorna...
(wayüHazzëq Häräš ´et-cörëp maHálîq Pa††îš ´et-hôlem Pä`am).

E o que modela com o martelete,
forja a cutelos, cravo e cut-up
“batte le métal en plaques”
fold-in, em dobraduras da joiaria,
pinos e pinças,
brincos e broches
“breitgehämmerte Bleche”
molde e persona,
mote e martelo,
elo por elo ,
dobra-se a alma
na oficina
bate um martelo
bate o martelo
bate martelo...

...e um temp(l)o oscila.

Eurico,
em dobraduras experimentais...rs
Meu Deus! Oscilo?


Fontes dos cut-up e fold-in:
http://www.ouviroevento.pro.br/publicados/Firmamentum.pdfhttp://ourivesariahavila.blogspot.com/2007/10/histria-da-ourivesaria.html

http://letras.terra.com.br/rita-pavone/64293/traducao.html

Imagem:

sexta-feira, maio 24, 2013

DANÇA SEM CORPOS





















Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas,
como no delírio dos bailes populares e esse avesso será, seu verdadeiro lugar. (Antonin Artaud)



Convoquem-se os doutorandos pra dançar,
enquanto é dia...
Cantem-se os cânticos aurorais.
Dancem-se as danças circulares...
Que falem as crianças, os doidos e os poetas,
num intraduzível canto sem métrica,
à claridade, aqui, ali, à claridade,
enquanto se pode achá-la!

Dias virão em que fugiremos pros montes
com pavor de nossos filhos e filhas.
Eles já não nos ouvem e falam um dialeto de autistas,
um poderoso discurso para iniciados.
Salvem-se os jovens dessa seita academicista,
em que se untam de poder e de verdades.

Quando criança eu falava com as gramíneas,
com as formigas, com os insetos do quintal.
Estávamos entrelaçados, minhas raízes e eu.
Meus pais riam disso.
Doidices de crianças, diziam.

Loucura e poíesis, digo eu.

As crianças dessa nova era
estão tomadas por estranha terminologia,
e já não brincam como dantes.
Antes, fabricam-se modos de ver, de pensar, de existir.
O imaginário foi engarrafado.
Envasadas as enunciações poéticas
e as artes, em um discurso de infalíveis.

Urge que se convoquem os jovens doutorandos pra dançar,
sem corpos e sem órgãos,
Dançar deliricamente...
Em transe, com gritos primais.

Urge que cantem as crianças, os doidos e os poetas,
num intraduzível canto sem métrica,
à claridade,
Aqui, à claridade,
enquanto se pode achá-la!




Imagem:
Pieter Bruegel - Dança de Maio

sexta-feira, maio 17, 2013

Augúrios (evocações de um Recife Antigo, Nº 7)












"Auspiciis hanc urbem conditam esse,  auspiciis bello ac pace domi militiaeque omnia geri, quis est qui ignoret?"
— Lívio, VI.41


                                   





A senha

I
Paira algo sobre a pólis tropicana,
ouvem-se verbos em um médium volátil;
Sibilos,
balbucios,
falas al(i)teradas.

II

A voz velada de um áugure
vaza a cidade, como a um túnel um trem.

Não é delíquio, tampouco paranormalidade.
Mas, aqui, in/augura-se a poesia enquanto fenômeno extraliterário.
O evocado:
Souzândrade,
de cujus, tectônico e tríbio,
saudoso amigo de um futuro antigo


III
Permitidos estão todos anacolutos, incluídos os de semântica!
As colagens em um mosaico (ele)mental!
As frases de alusão, com elisões incidentais!
Liberdade para as todas as anacronias
e superposições (intra)históricas!


***


AUGÚRIOS (derradeira evocação)


Os velhos arcos da cidade antiga
desdobram-se em novas artérias exangues,
essas avenidas esdrúxulas,
que arrastam os palafitas e soterram os mangues,
e abrem o flanco dessa urbe, aflita,
a demolir seus claustros e igrejas.

Os arcos... os arcanos.
Salvou-se a Cruz do Patrão,
registro de assombração
dos náufragos que buscam abrigo.
Talvez, porque está escrito:
Não removas os marcos antigos.

Um rio invade as tumbas de Santo Amaro das Salinas
e pranteia seus mortos.
Seus milhares de peixes mortos.
Um outro lava os batentes do Palácio da Justiça
e reclama a posse de suas margens urbanizadas.
Juntos, os rios transbordam no pátio de manobras do porto.
O mar, ameaçador, aguarda a maré alta e os ventos da ressaca...
É Agosto.

Ausculto o coração dessa urbe assustadiça.
E oiço vozes.
Palavras arcaicas.
Motes desusados.
Um vozerio no marco-zero da cidade.
Evocações sem nexo aparente.
Meras repetições do passado.
Herméticas e litúrgicas frases desconexas.
Monges entoando merencórios cânticos gregorianos...

Os fantasmas do velho casario colonial assombram
os novos locatários.
A brisa maurícia sopra os aventais dos pedreiros-livres.
E eu os oiço, creiam-me, oiço-lhes os ritos,
vozes vindas de uma sobre/loja,
a oriente de mim, num pardieiro
:
"Erguemos túmulos às margens dos rios
e os batizamos:
Cidades."







Fonte da ilustração:
Loja Maçônica em Recife (por trás do Edf. Tabira)


"Quem não sabe que esta cidade foi fundada 
somente após consultar as divindades, 
que toda guerra e paz, no país e no estrangeiro,
foi feita somente após consultar as divindades? "


— Lívio, VI.41

terça-feira, maio 14, 2013

ESPERANÇA


Esperança
E. B. Brito





















Nenhuma realidade é estática,
feito uma fera empalhada na vitrine:

Essa que vemos sempre nos enlaça.
Mesmo que seja assim, umbrátil e baça,
E que algo, nela, pouco se define.

Poderá o incauto ser flaneur na vida
E deambular por sua circunstância
Como quem nada sente e nada vê...

Mas a realidade é onça e avança sobre a gente
Com dores e prazeres, e, de boamente,
Abocanha-nos o ser

Se houver Seca, então, bem dentro d’alma...

(e o estio é mais feroz que u'a mera onça,
é a melancólica sombra que ronda
sobre quem passa, no ermo em que vivemos,
e a tudo abrasa),

...vai ser preciso se prover de palma
e de cantis, se esse deserto avança.
Plantar um inverno, e, se possível, calma.
Sonhar um açude e untar-se de esperança...





Eurico

14/05/2013


Imagem:
AbARCA,
de Emanuel Bezerra de Brito
Natal - RN



sábado, maio 11, 2013

A primeira povoação da Ilha do Leite





Nova entrevista com Tia Enilda Rosa de Melo
Data: 10/05/13
Digitada, de memória, em 11/05/13
Detalhes e floreios são meus...rs


Disse-me tia Enilda que..

... a noroeste do banco de areia que deu início à atual Ilha do Leite, ficavam as casas de meu Tio-bisavô João Alexandrino e sua esposa Dona Gertrudes e a dos seus vizinhos Antonio de Souza e Dona Xandu. Mais ao norte, moravam Manoel Rosa e Dona Amara. Essas três eram casas grandes e as únicas de alvenaria, sendo a maior, a do Tio João, funcionário público e de boas condições.

   Que minha Tia-bisavó Gertrudes, ou Tudinha (apelidada pelos netos de "Vó Torta", posto que era mãe de criação de nosso avô,  Luiz de Melo), foi uma costureira afamada, de paletós e roupas finas para senhoras. Chamava-se Gertrudes Albertina da Hora, e, a ver pelo sobrenome, não casou no papel com o Tio-bisavô, João Alexandrino. Era muito “genista” e implicava com o vizinho Manoel Rosa, pelo fato de ele viver cavando buracos e fazendo montes de lama preta que sujavam a ruela toda.  É que seu Manoel construía viveiros com diques, pois, além de carteiro, também vivia da pesca na maré. Por trás da casa desse Manoel Rosa ficava um caminho, que ele mesmo aterrara, que ia dar numa longa ponte de madeira, bem ao norte do banco de areia, ligando a Ilha à Rua Visconde de Goiana, na Boa-vista. Era ainda nesse caminho, que ia dar na tal ponte, que ficavam os banhos de água encanada de Antonio Cirilo, coisa rara na época. Pagava-se certa quantia por um banho, em quartinhos feitos de palha.

Lavadeira em casebre ribeirinho, no Recife
(imagem google)


Disse-me ainda que a leste moravam Manoel Teodoro e Dona Antonia, (pais de Ana Carmelita, que seria depois a dama do paço do Almirante do Forte); mais à frente morava Tia-bisavó Nana (chamava-se Ana Rosa de Melo e era irmã do Tio João e mãe de Bibi (talvez fosse Beatriz, não recorda o nome, que por sua vez era mãe de Américo, vulgo Memé).

Além desses moradores, havia, por trás da capela, a casa de Dona Sila e Zé Guido, pais de Aldenice e de Lourdes, mãe de Jorge. Lourdes, que até um dias desses nos visitava em Tejipió...
Disse também que Dona Sila morreu cedo e Vovó Joana amamentou a caçula, Lourdes, que se dizia irmã de leite da Tia Enilda. Essa Lourdes chamava nossa avó de Mãe Joaninha, por conta disso. A família de Dona Sila foi morar na Vila das Cozinheiras. Lembro ainda que morava ali perto, Dona Bia, lavadeira, que foi morar em Areias, por meio da Liga Social contra o Mocambo, na vila destinada às pessoas de seu ofício.


A nordeste da Ilha ficavam os mocambos, propriamente ditos, casas cobertas de palha ou zinco, erguidas, em sua maioria com a taipa acinzentada, da lama da maré. Era um pequeno povoado de pescadores, carvoeiros, carregadores e biscaiteiros, além das lavadeiras, cozinheiras, costureiras e outras atividades daquela comunidade que servia às famílias da Boa Vista. Lá tinha até uma vendinha, de modo que havia certa autonomia na vida social desse humilde casario
.



P. S.:
Tia Enilda não soube me responder sobre os pais biológicos de meu avô Luiz de Melo, e pai dela. Sabe apenas que era um africano e que casou com uma portuguesa de olhos claros, nossa bisavó Luiza. Não sabe os sobrenomes, e acha que morreram antes de a família chegar à Ilha do Leite. Acha que o meu Tio-avô Pedro Alexandrino de Melo morava na rua de São João, onde também morou Vovô Luiz de Melo, antes de casar, o que me faz supor que antes de vir para a Ilha do Leite, todos moravam no bairro de São José,   área mais urbana do Recife, naqueles tempos. Alguma coisa os fez mudar para a pantanosa Ilha do Leite. Quem sabe o crescimento da população, as questões higienistas do início do século XX... quem sabe...

***

Bem, aqui findam mais uns registros orais da história da Família Melo, que, por sinal, fez o caminho de volta e está, quase toda ela, na Ilha do Felipe, também chamada de Jardim Beira-rio, no Pina, onde hoje se ergue um famoso centro de compras.

No próximo capítulo, talvez, teremos notícias de um certo africano, por nome de Américo, grande paixão da portuguesa Luzia. Não vai ser fácil achar esses dois nos registros do século passado. Mas, tentarei. Pois, desse amor, os Melo herdaram parte de sua genética...

Crianças negras, brancas, mestiças brincam na maré
Recife-1936