Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

terça-feira, janeiro 31, 2012

CARNAVÁLIA (o Recife europeu dos blocos líricos)

Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa - século XV:
"Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões".
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995): 
Principal detalhe para fins de análise cultural e de sentido. As figuras sobremontadas e carregadas por nativos são conhecidas da tradição ibérica e do populário católico transplantado para o Novo Mundo.  


Nota inicial (sobre a figura acima): 

Quem conhece o carnaval de Olinda, há de lembrar do calunga chamado de Homem da Meia-noite, um quase-totem ambulante, que é carregado nos ombros pelas ruas da cidade alta, na madrugada do sábado para o domingo de carnaval. Percebam, pois, pela tapeçaria acima, o que há de Ibéria em nossa carnavália. 

Pois bem:
Eu dizia, na postagem anterior, que o Recife é uma cidade profundamente ibérica. Pode isso parecer ululantemente óbvio, sabendo-se que todo o país já foi um dia Reino de Portugal e Algarves. No entanto, comparando a nossa capital com outras grandes cidades do Brasil, por suas manifestações culturais, ficará evidente o quão mais portuguesa do que as outras é a nossa Arrecifes dos Navios.

Há poucos anos, movido de compaixão pelos menores de rua, um desembargador humanista e comprometido com a nossa cidade, resolveu fazer um resgate dessas crianças abandonadas, através da música. Lembrem que na Bahia, já faz algum tempo, os timbaleiros, os percussionistas, já tinham feito o mesmo com o projeto Olodum, tendo alcançado excelentes resultados na assistência aos pequeninos "capitães da areia". No Rio de Janeiro, de há muito se ouve o samba dos Meninos da Mangueira, inclusão social e divertimento ao mesmo tempo. Portanto, duas importantes expressões de cultura negra, uma baiana e outra carioca, ambas atuando em prol da inserção dos menores na vida social.

Bem, mas o que fez o nobre magistrado recifense para resgatar os infantes de nossas ruas?



Fundou a mais bela e virtuosa banda sinfônica infantil já vista em nossa cidade: a Orquestra Criança Cidadã, dos meninos e meninas do Coque. O Coque é uma antiga comunidade de carvoeiros, hoje favela urbana, com população carente e alvo de muita violência. Lá foi criada uma maravilhosa orquestra de pequenos virtuoses.

E aqui faço um alargamento da minha frase inicial: o Recife é bem mais do que ibérica, é profundamente européia.
Os meninos do Recife não batem em latas, em surdos, nem em timbales. Os violinos e cellos da Orquestra da Criança Cidadã enchem nossa alma de melancólica ternura. Isso é o Recife. Querem algo mais europeu? Os resultados são tão bons quanto os da Bahia e do Rio, diga-se de passagem. Mas, a forma de estruturar a ação é solene, racional e erudita: um desembargador e um maestro da sinfônica, juntos, lideram a excelente empreitada pelas crianças, nesse Recife europeu.

Maracatu


Agora, volvamos os olhos para a nossa maior expressão de cultura afro: o maracatu. Embora o ritmo das suas alfaias faça ecoar pelas nossas esquinas o mais visceral elemento negro, o que vemos nas ruas? Um majestoso cortejo, reis, rainhas, duques, duquesas, damas do paço e bonecas de cera, trajando a luxuosa indumentária das cortes européias. Eu sei, eu sei. Era a forma de resistência dos agrupamentos negros, que tinham no sincretismo religioso uma válvula de escape para sua própria concepção do sagrado.

Também, sei: O maracatu veio das Irmandades do Rosário dos Pretos e da festa do Rei do Congo. Mas, por que tão forte no Recife? Não seria a nossa alma ibérica envolvendo o corpo africano? Sei lá!



E mais, tem mais, tem o frevo, o frevo, o nosso frevo veio dos dobrados militares europeus, que, ao ter o andamento acelerado, e deu nessa gostosa e anárquica folia. Chego a sugerir que o passo já estava, embrionário, nos ditos saltos reais, executados por Diogo Dias, como consta na Carta de Caminha. Não lembra o passo (a dança) o saltitar do vira português, em ritmo apressado? Não lembra o passo um saltitar de bailarinos zíngaros?E o jogar de pernas da dança dos cossacos já era o passo?


E as fantasias multicores: dominós, pierrots, colombinas, arlequins, bufões, palhaços. Eis aqui toda a comédia dell'arte. Não é por acaso que o Recife é chamada de a Veneza Brasileira!




Finalmente, chego onde todos sabem que eu queria chegar. Nos maviosos blocos líricos do carnaval pernambucano.
No Rio de Janeiro, a velha guarda é do samba, na Bahia, do afoxé Filhos de Gandhi. Duas expressões puramente africanas.

Em Pernambuco,
a velha guarda é dos blocos carnavalescos líricos:

Ouçam trinar as requintas,
e florear os flautins.
Banjos, violões, bandolins,
em harpejos e dedilhados.
E um coro de vozes álacres,
senhoritas e senhoras a cantarolar modinhas,
feito cantigas de roda,
rondós, marchinhas,
cirandas.


Há algo mais europeu?
Recife tem esse nicho de poesia,
que se mantém muito vivo.
Não aquele Recife dos Mascates,
dos ideais libertários,
mas, o Recife do bom Sebastião, de Capiba.
Recife, de Manuel Bandeira.
Recife, ibérico, europeu.
Recife dos blocos líricos...
Recife, meu.
Recife, eu...


Fonte da imagem da tapeçaria:
http://www.academia.brasil-europa.eu/Materiais-abe-73.htm

Outras imagens:
recolhidas do Google.

quinta-feira, janeiro 26, 2012

BLOCOS LÍRICOS DO RECIFE (a Dança, a Música, a Língua)


Título: "Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões". 
Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995. Agradecimentos à Dra. Ana Balmori, que primeiramente estudou os motivos musicais dessa fonte e que possibilitou a sua consideração nas sessões de Lagos e Coimbra.

 
O modo português de festejar está bem descrito em antiga crônica de João de Barros, ao tratar da espetacular partida da frota de Pedro Álvares Cabral, em 1500:

"A qual despedida, geralmente a todos, foi de grande contemplação, porque a maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tão celebrada por El-rei, cobria aquelas praias e campos de Belém, e muitos em bateis, que rodeavam as naus, levando uns, trazendo outros, assim serviam todos com suas librés e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais levantava o espírito destas coisas, eram as trombetas, atabaques, sestros, tambores, flautas, pandeiros, e até gaitas, cuja ventura foi andar em os campos no apascentar dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as águas salgadas do mar, nesta e outras armadas, que depois a seguiram, porque, para viagem de tanto tempo, tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar."
(João de Barros, apud HOMO LUDENS NA ÉPOCA DAS DESCOBERTAS, Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, Conferência em Coimbra, 1995)

Sem embargo da violenta cobiça que motivava as “grandes navegações”, as novas colônias conquistadas logo iriam conhecer o lado festeiro desse povo, que, para afugentar o tédio daquelas longas viagens, portavam instrumentos musicais, do mesmo modo pelo qual, nos dias atuais, trazemos, por exemplo, um DVD portátil, em nossas viagens cotidianas. Foi assim que esses navegantes nos trouxeram sua dança e sua música, em folguedos que até hoje costumam alegrar os nossos tristes tropiques.
Prova de que esses instrumentos pastoris cruzaram o Atlântico está na Carta de Pero Vaz de Caminha, pela qual se descreve a D. Manuel, o "descobrimento" do Brasil. Relata o famoso escrivão que, depois da missa de Páscoa, tendo em vista os costumeiros folguedos da época, um gracioso marinheiro executa saltos reais ao som de uma gaita e participa das danças dos aborígenes. Esse encontro musical, segundo Caminha, foi motivo de muita alegria:

"(...) passou-se então além do rio Diogo Dias, que veio de Sacavém e que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo hum gaiteiro nosso com uma gaita e meteu-se com eles a dançar tomando-os pelas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali andando no chão muitas voltas ligeiras e salto real de que se espantavam e riam e folgavam muito."
(Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei Dom Manuel)

Diogo Dias, pois, era o nome de nosso primeiro brincante. Na nova terra, desde a primeira páscoa, já se dançava a nossa ciranda-de-praia. Nos dias de hoje, quem viajar pelo Brasil encontrará, de norte a sul, essa herança musical e coreográfica dos lusos: haja marujada, folia de reis, pastoris, serenatas e... o entrudo...
Ah, o entrudo! Esse milenar folguedo é o que mais me encanta. Mormente, na merencória folia dos seresteiros de pau e corda, os chamados blocos carnavalescos líricos.
Esses harmoniosos blocos líricos, bastiões do carnaval do Recife, evocam e preservam não só o modo português de festejar, seus folguedos e danças de celebração, mas guardam as profundas nuanças líricas, entranhadas na alma dessa Língua que também veio com as caravelas.

Revisitando, (como sempre faço, nesses dias que antecedem a folia), as composições de antigos blocos recifenses, reencontro essas canções dolentes, perpassadas de uma triste alegria, de uma saudade calcada em algo não-vivido, e que, além disso, primam por letras vazadas em bom vernáculo, de onde vem o puro olor, o cheiro bom, o aroma dessa última flor neolatina, em poesias pejadas do lirismo e da ternura da velha e boa língua-mátria.

Sobre isso, vale a pena citar Gilberto de Mello Kujawski, in "Fernando Pessoa, O Outro", quando afirma que "o dizer português é sempre vizinho da efusão lírica, pronto a vibrar em toda a escala de íntimas lamentações e exultações, de secretos cuidados e enternecimentos próprios às fundas confidências."

Todavia, não é só esse aspecto que deve ser revisitado nos blocos líricos.
Atentem bem para a semelhança desses brincantes recifenses com as danças pastoris, com os cortejos órficos das festas quase-pagãs que aconteciam nas afastadas vilas campesinas da Luzitânia, e até mesmo nos átrios engalanados, nos velhos paços da corte portuguesa, essas danças profanas que estão implícitas na citação de João de Barros, transcrita acima. O Recife é uma cidade profundamente ibérica. E nossas danças, músicas e folguedos guardam a semelhança daqueles costumes lusos.

Regressemos, agora, a esse longínquo pretérito, acompanhando as palavras de um dançar dionisíaco, que nos chegaram através do léxico arcaico de outro cronista-narrador: Fernão Lopes.
Deitem os vossos olhos sobre esses vetustos vocábulos que abaixo vos apresento; soprem-lhes os fonemas e deixem emergir do inconsciente os albores do efusivo lirismo dessa Língua Portuguesa, em essa prosódia, “alongada e ondulante; com ondulações que se perdem ao longe" e, decerto, encontrarão as origens avoengas dos cortejos musicais de nossos blocos carnavalíricos:

Viinha elRei em batees Dalmada pera Lixboa, e saiam-no a reçeber os cidadãaos e todollos dos mesteres com danças e trebelhos, segumdo estomçe husavom; e el saia dos batees, e metiasse na dança com elles, e assi hia ataa o paaço. Paraae mentes se foi boom sabor: jazia elRei em Lixboa huuma noite na cama, e non lhe viinha sono pera dormir e fez levamtar os moços e quamtos dormiam no paaço, e mandou chamar Joham Mateus, e Lourenço Pallos que trouvesem as trombas de prata, e fez açemder tochas, e meteosse pela villa em damça com os outros; as gentes que dormiam, sahiam aas janelas, veer que festa era aquella, ou porque se fazia; e quando virom daquella guisa elRei tomarom prazer de o ver assi ledo; e amdou elRei assi gram parte da noite, e tornousse ao paaço em damça; e pedio vinho e fruita, e lançouse a dormir. (Crónica de D. Pedro I, Barcelos - 1932, pp 42-43, apud FERNANDO PESSOA, O Outro, G. M. Kujawski, pp. 25,26)





Evoé, Flores do Capibaribe!
Carnaval chegou!






















Eurico
blogador e folião. **********************************************************************
Ilustração e algumas citações:
http://www.academia.brasil-europa.eu/Materiais-abe-73.htm

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Frevo de Saudade - Aldemar Paiva - (Coral do Bloco da Saudade)

Obs.:
Como é difícil encontrar a genuína música pernambucana na internet!
Carecemos pintar nossa aldeia, se quisermos ser universais, como aconselhava Leon Tolstoi.

Achei mais uma:
Último Regresso - Getúlio Cavalcanti - (Coral do Bloco da Saudade)



E mais essa:
Sabe lá o que é isso, de João Santiago.
(Hino dos Batutas de São José e dos casais enamorados)

domingo, janeiro 22, 2012

O RECIFE (CARNAVALÍRICO) DE CLARICE

Da esquerda para a direita: Tania, Elisa e Clarice


No conto “Restos do Carnaval”, publicado pela primeira vez em 1971, Clarice Lispector , bem ao seu estilo, nos apresenta um Recife misterioso e lúdico,  introjetado, oblíquamente,  nas suas retinas de menina "gauche na vida". Esse Recife será, vez por outra, revisitado pela escritora, ao longo de sua obra. É para esse Recife, lírico e profundamente humano, que me volto nesses dias que antecedem a folia. O Recife dos Blocos de Pau e Corda, dos confetes e serpentinas, dos mascarados. Um Recife boêmio e um tanto ingênuo, apesar dos tempos, apesar do mundo, um Recife do entrudo, um Recifelírico.  (Eurico)


RESTOS DE CARNAVAL

Não, não deste último Carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao Carnaval. Até que viesse o outro ano.

E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para Carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça — eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável — e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um Carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga — talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel — resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele Carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas — à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha — mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele Carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge — minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil — fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns d0ze anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de oito anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.


Clarice Lispector
1971


O conto Restos de Carnaval faz parte do livro Felicidade Clandestina, (1ª edição Editora Sabiá, Rio de Janeiro, 1971; edição mais recente Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1998.

Fonte do conto:

http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tema-livre/restos-do-carnaval-por-clarice-lispector/


Fonte da imagem:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1016151-relato-biografico-resgata-elisa-a-irma-mais-velha-de-clarice-lispector.shtml

Ouvindo uma relíquia: Capiba, por Claudionor Germano, a voz dos frevos da minha infância:


quarta-feira, janeiro 18, 2012

VIDA MENOR



(ouvindo uma sonatina para flauta e violão de Radamés Gnattali)

A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada em sua forma irredutível,
já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima, essencial; um início; um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa desejar de menos cruel: vida
em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções, o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.


Carlos Drummond de Andrade
in, A Rosa do Povo

Fonte da imagem:
Vida Menor

domingo, janeiro 08, 2012

ELOGIO DO SOL (compartilhamento e poema)

Se puder, ouça, sem pressa, essa despretensiosa cançoneta:

"Robinson almoçou com o comandante e o imediato... Não precisou se esforçar para alimentar a conversa. Os seus hospedeiros pareciam ter admitido, de uma vez para sempre, que ele tinha tudo a aprender com eles e nada a revelar de si e Sexta-Feira, e Robinson acomodava-se perfeitamente a esta convenção que lhe permitia observar e meditar à vontade. A bem dizer, era verdade, num certo sentido, que tinha tudo a aprender, tudo a assimilar, a digerir, mas o que ouvia era tão pesado e indigesto como as terrinas e as carnes ensopadas que desfilavam no prato, e seria de temer que um reflexo de recusa o fizesse vomitar em bloco o mundo e os costumes que, aos poucos, ia descobrindo.
No entanto, o que mais lhe repugnava não era tanto a brutalidade, o ódio e a ganância que estes homens civilizados e altamente honoráveis demonstravam com inocente tranqüilidade. Ficava sempre a possibilidade de imaginar - e sem dúvida seria fácil encontrar - outros homens que, no lugar destes, fossem amáveis, indulgentes e generosos. Para Robinson, o mal era bem mais profundo. No seu íntimo, reconhecia-o na irremediável relatividade dos fins que os via a todos perseguir febrilmente. Pois o que todos tinham como objetivo era tal aquisição, tal riqueza, tal satisfação, mas porque esta aquisição, esta riqueza, esta satisfação? Decerto ninguém saberia dizê-lo. E Robinson imaginava, sem cessar, o diálogo que certamente acabaria por o confrontar com um destes homens, o comandante por exemplo. 'Por que vives tu?', perguntar-lhe-ia. Hunter, evidentemente, não saberia o que responder, e o seu único recurso seria devolver a pergunta ao Solitário. Então Robinson mostrar-lhe-ia com a mão esquerda a terra de Speranza, enquanto levantaria a direita para o Sol. Após um momento de espanto, o comandante rebentaria a rir, riso de loucura perante a sabedoria, pois como poderia ele conceber que o Astro Maior é alguma coisa mais que uma chama gigantesca, que nele houvesse espírito e poder para irradiar de eternidade os seres que soubessem abrir-se a ele?"
(Tournier, 1985)

Robinson-solar descobriu o "bem imperecível capaz de se comunicar igualmente a todos". Em sua Grande Saúde, observa aqueles homens, com os quais já se assemelhou, e distingue meridianamente este "traço deplorável do espírito ocidental" que é sempre referir seu desejo a fins exteriores e relativos: "bens perecíveis", cujo valor se funda justamente em se extraírem ao compartilhamento, o que, para Espinosa, jamais poderá trazer a felicidade, pois a inveja e a cobiça que a posse exclusiva de tal bem atrairá, não permitirá que seu possuidor tenha paz e tranqüilidade. Por isso, os homens que buscam a utilidade guiados pela razão, só desejam para si o que pode ser compartilhado pelos demais homens. O Astro Maior e a Terra são certamente "bens imperecíveis capazes de se comunicar igualmente a todos" e, se Robinson chegou a descobri-lo, foi graças ao conhecimento, este outro "bem imperecível..." Quando os homens, como Robinson, passam a se guiar pelo conhecimento, já não desejam nada mais para si que não possa ser igualmente desejado e compartilhado por outros homens.
E nada desejam mais do que o conhecimento.

Fonte do compartilhamento:
A Grande Saúde: uma introdução à medicina do Corpo sem Órgãos
Ricardo Rodrigues Teixeira

Médico sanitarista,docente e pesquisador do Centro Saúde Escola Samuel B. Pessoa, São Paulo; Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP).

Citação inicial(colhida na mesma fonte):
TOURNIER, M. Sexta-Feira ou os limbos do Pacífico. São Paulo: Difel, 1985.

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POEMA DA RELATIVIDADE GERAL


















Texto apresentado em Seminário de Estudos Literários
Local: Faculdade de Filosofia do Recife
Profª Inês Fornari


De que adianta eu ser eu
Em relação a mim mesmo?
Quero ser eu pras pessoas
- um referencial externo-
Quero ser eu nas pessoas
relatividade geral.

Quero evolver na poesia
einsteiniana poesia-moderna
fra/terna
quadridimensional.

Não sou espaço
Nem tempo
Espaço e tempo eu invento
No meu ser intemporal

Quantos fótons emitia
No espaço das entrelinhas
Um Castro Alves astral?

Também quantuns de energia
Saem de mim, melodia
Ondulatória, indefinida, orbital
E a mim me espalham nas ruas
Na plenitude dos outros...
Inteiro o ser que não sei

De que adianta eu ser eu,
Com meus sentidos falíveis
A perceber ilusões?
Eu não vou mais ao cinema –
nem ontem, nem já, nem quando.
Eu vou ser eu nas pessoas
Doar-me toda poesia, acelerar-me na luz.
Este é o segredo do Sol!


Luiz Eurico de Melo Neto -
(meados de 1989)

Fonte da imagem:
Avistamento do Sol





sábado, janeiro 07, 2012

SONATA PARA O DR. ALZHEIMER (poema completo)

Ao fundo, Annie Fischer, interpreta:




1º Movimento (Adagio. Allegro)

Não ajunteis tesouros na terra...
Mt 6:19


Toda memória é argêntea.
Subterrânea.
Nela não há oiro.
Inúteis, pois, os tesouros sem mapa...

De que adianta a filha
E essa multidão?
Agora tudo é ilha.
E todo o esforço é vão.

Um fado inesperado.
Sim, uma velha música distante.
E estar exausto.

Toda memória é argêntea.
Caverna silenciosa e erma.
Inúteis, pois, os movimentos.
Não há mais oiro algum.

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2º Movimento (Andante espressivo)

Basta a cada dia o seu mal.

Mt 6:34


Desliza a vida e todo o entorno
Sobre movediças dunas.
As coisas todas estão nômades.
Flores de artifício brotam nos jardins abandonados.
Tulipas desconexas
florescem, amarelas e tardias.


São brancos os corredores do hospital.


Não há mais ciclos,
Nem duração.
Apenas essa agenda de encontros desmarcados.
E os relógios de parede já não anunciam as horas.


Vive-se às apalpadelas e não faz escuro.
Nada faz sentido nesses vislumbres da infância.
Decerto há nuvens nos óculos antigos.
Tudo está antigo e nublado.


Um gato sob a cama, fatalista e atemporal,
Não perceberá pesares, solidão, medo, alegrias.
Aqui se pode dormir definitivamente
E sonhar com as eternas ruínas circulares...


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3º Movimento (Vivacissimamente)

Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância.

(João 10:10)


Apesar de tudo resta a Vida,
com tudo o que é insolvente e provisório
Embora, evanescente e imprecisa, a Vida...
Resta, ainda.

De algum modo, que não mais contente,
Há frestas para sorrisos
E o aceno transcendente.

De que adiantam saberes
e toda a inútil lógica humana?
Os gatos são mais felizes.
Brincam indenes sobre as casas,
Mesmo sem logus.
Mesmo sem asas.

Hoje vestirei a melhor roupa.
E celebrarei o ar que ainda respiro.
Tomarei banho de mar.
A água morna e arrepios pelo corpo.
Que apesar de tudo resta a Vida.
A minha vida.
Realidade única e indevassável.
A Vida!

Baterei as palmas e piscarei os olhos.
Lamberei os meus lábios salubres.
Celebrarei o Sol e a unicidade.
Eu sou!
Allegro ma non troppo,
Eu sou!
Trago um júbilo comigo:
Eu sou!

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Coda (Finale)



Um cometa passou.
A minha vida...
Espiralada noúre.
Breve lida.
Vivê-la, importa, enquanto dure.


Um comboio passou,
sou o cão que late,
indigna-se, insiste,
e não se abate.


O vale fértil passou.
Sou um camelo que resiste.
Minha alma sucumbe à realidade.
Marteladas de Nietzsche:
Viver consiste em amor fati.




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Poema dedicado à grande amiga Dayse,
acometida precocemente dos males da memória...
Eurico
(transcrição de 4 postagens de 2009)

quinta-feira, janeiro 05, 2012

DA VOZ (notas para uma fisiologia do sentido)



Tudo o que sai do corpo é corpo
e se faz verbo,
O gesto, a febre, o sopro, o suor, o pranto
o canto, a fala,
tudo isso é corpo e busca o ausente, o outro, um nexo
mesmo na escória, flor inglória e sem abrigo,
o corpo exala algo que é signo.

A voz..., volátil e aérea..., a voz
ainda é corpo em influxo ondulante, oco e vibrátil,
e mesmo assim, matéria
a ressoar dos vãos, dos antros
escuros e pleurais,
das grotas guturais até a boca.
A voz assim, fluída,
flatus vocis, vaporosa,
ainda é corpo.
:
É corpo esse sussurro,
e o último suspiro, o derradeiro e mesmo o urro,
o espirro, o berro pelo ar
que vaza nas vogais, das úvulas,
dos mantras que dimanam das fossas nasais,
dos lábios, entreabertos véus, dos céus da boca,
de hiatos entre dentes, estridentes atos, palatos
hálitos pulsantes, em consonantes
tubos, curvos, peristálticos,
em valvas que destravam valvas, dia-
fragmas elásticos,
redomas dissonantes, em labirintos, dobras
de bronquíolos, anelados bulbos,
tudo isso, esse ruído amorfo,
ainda é corpo.

A voz é carne, en/carnação,
é corpo em invisível esforço
de arfar
de fôlego
e de soar sentido,
em direção do outro
(mesmo que um proto
-sentido)
um cio
um balbucio,
um uivo, em fluxos acústicos
em ululo,
em guinchos de orifícios,
em sons da glote, engulhos
toda sorte de pruridos viscerais
em sons roufenhos
arrotos,
gritos
ronronares flácidos
rascantes regougos.

Vazou da carne é corpo.
A voz de tudo é corpo.
Corpo sem órgãos, ausente, ambíguo,
dúbio, mas, corpo.
Tudo que sai do corpo é corpo,
Mesmo o signo.



Estudos para o tema em:
Três Noturnos - Debussy, com audição especial para o coral feminino, Sereias, ao final:
Fonte do áudio:
The Daily Beethoven

terça-feira, janeiro 03, 2012

domingo, janeiro 01, 2012

DOS OLHOS... (um brinde a 2012)




















Primeiro, ouvir: (Vangelis)




Depois, ler: (Caeiro)


I - Eu Nunca Guardei Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

II - O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

III - Ao Entardecer

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

IV - Esta Tarde a Trovoada Caiu

Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos ...

Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranqüilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...

Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!

(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós ...
Ali, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega.

V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

VI - Pensar em Deus

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos! ...

VII - Da Minha Aldeia

Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


IX - Sou um Guardador de Rebanhos

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

X - Olá, Guardador de Rebanhos

"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"

"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"

"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."

"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."

XI - Aquela Senhora tem um Piano

Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...

Para que é preciso ter um piano?
o melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.

XII - Os Pastores de Virgílio

Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente.
(Depois — eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)

Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga.

XIII - Leve

Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.

XIV - Não me Importo com as Rimas

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento...

XV - As Quatro Canções

As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou ...

Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam ...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira ...
Devo ser todo doente — idéias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.

Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário ...

XVI - Quem me Dera

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas ...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

XVII - No meu Prato

No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza...

E cortam-as e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Pedem "Salada", descuidosos...,
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...

XVIII - Quem me Dera que eu Fosse o Pó da Estrada

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena ...

XIX - O Luar

O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas ...

Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?

XX - O Tejo é mais Belo

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

XXI - Se Eu Pudesse

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe uma paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...

XXII - Num Dia de Verão

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...

XXIII - O meu Olhar

O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta ...

Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol ...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)

XXIV - O que Nós Vemos

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

XXV - As Bolas de Sabão

As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.



Fernando Pessoa (Caeiro)


Agora ver, ouvir, sentir: