Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, janeiro 08, 2012

ELOGIO DO SOL (compartilhamento e poema)

Se puder, ouça, sem pressa, essa despretensiosa cançoneta:

"Robinson almoçou com o comandante e o imediato... Não precisou se esforçar para alimentar a conversa. Os seus hospedeiros pareciam ter admitido, de uma vez para sempre, que ele tinha tudo a aprender com eles e nada a revelar de si e Sexta-Feira, e Robinson acomodava-se perfeitamente a esta convenção que lhe permitia observar e meditar à vontade. A bem dizer, era verdade, num certo sentido, que tinha tudo a aprender, tudo a assimilar, a digerir, mas o que ouvia era tão pesado e indigesto como as terrinas e as carnes ensopadas que desfilavam no prato, e seria de temer que um reflexo de recusa o fizesse vomitar em bloco o mundo e os costumes que, aos poucos, ia descobrindo.
No entanto, o que mais lhe repugnava não era tanto a brutalidade, o ódio e a ganância que estes homens civilizados e altamente honoráveis demonstravam com inocente tranqüilidade. Ficava sempre a possibilidade de imaginar - e sem dúvida seria fácil encontrar - outros homens que, no lugar destes, fossem amáveis, indulgentes e generosos. Para Robinson, o mal era bem mais profundo. No seu íntimo, reconhecia-o na irremediável relatividade dos fins que os via a todos perseguir febrilmente. Pois o que todos tinham como objetivo era tal aquisição, tal riqueza, tal satisfação, mas porque esta aquisição, esta riqueza, esta satisfação? Decerto ninguém saberia dizê-lo. E Robinson imaginava, sem cessar, o diálogo que certamente acabaria por o confrontar com um destes homens, o comandante por exemplo. 'Por que vives tu?', perguntar-lhe-ia. Hunter, evidentemente, não saberia o que responder, e o seu único recurso seria devolver a pergunta ao Solitário. Então Robinson mostrar-lhe-ia com a mão esquerda a terra de Speranza, enquanto levantaria a direita para o Sol. Após um momento de espanto, o comandante rebentaria a rir, riso de loucura perante a sabedoria, pois como poderia ele conceber que o Astro Maior é alguma coisa mais que uma chama gigantesca, que nele houvesse espírito e poder para irradiar de eternidade os seres que soubessem abrir-se a ele?"
(Tournier, 1985)

Robinson-solar descobriu o "bem imperecível capaz de se comunicar igualmente a todos". Em sua Grande Saúde, observa aqueles homens, com os quais já se assemelhou, e distingue meridianamente este "traço deplorável do espírito ocidental" que é sempre referir seu desejo a fins exteriores e relativos: "bens perecíveis", cujo valor se funda justamente em se extraírem ao compartilhamento, o que, para Espinosa, jamais poderá trazer a felicidade, pois a inveja e a cobiça que a posse exclusiva de tal bem atrairá, não permitirá que seu possuidor tenha paz e tranqüilidade. Por isso, os homens que buscam a utilidade guiados pela razão, só desejam para si o que pode ser compartilhado pelos demais homens. O Astro Maior e a Terra são certamente "bens imperecíveis capazes de se comunicar igualmente a todos" e, se Robinson chegou a descobri-lo, foi graças ao conhecimento, este outro "bem imperecível..." Quando os homens, como Robinson, passam a se guiar pelo conhecimento, já não desejam nada mais para si que não possa ser igualmente desejado e compartilhado por outros homens.
E nada desejam mais do que o conhecimento.

Fonte do compartilhamento:
A Grande Saúde: uma introdução à medicina do Corpo sem Órgãos
Ricardo Rodrigues Teixeira

Médico sanitarista,docente e pesquisador do Centro Saúde Escola Samuel B. Pessoa, São Paulo; Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP).

Citação inicial(colhida na mesma fonte):
TOURNIER, M. Sexta-Feira ou os limbos do Pacífico. São Paulo: Difel, 1985.

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POEMA DA RELATIVIDADE GERAL


















Texto apresentado em Seminário de Estudos Literários
Local: Faculdade de Filosofia do Recife
Profª Inês Fornari


De que adianta eu ser eu
Em relação a mim mesmo?
Quero ser eu pras pessoas
- um referencial externo-
Quero ser eu nas pessoas
relatividade geral.

Quero evolver na poesia
einsteiniana poesia-moderna
fra/terna
quadridimensional.

Não sou espaço
Nem tempo
Espaço e tempo eu invento
No meu ser intemporal

Quantos fótons emitia
No espaço das entrelinhas
Um Castro Alves astral?

Também quantuns de energia
Saem de mim, melodia
Ondulatória, indefinida, orbital
E a mim me espalham nas ruas
Na plenitude dos outros...
Inteiro o ser que não sei

De que adianta eu ser eu,
Com meus sentidos falíveis
A perceber ilusões?
Eu não vou mais ao cinema –
nem ontem, nem já, nem quando.
Eu vou ser eu nas pessoas
Doar-me toda poesia, acelerar-me na luz.
Este é o segredo do Sol!


Luiz Eurico de Melo Neto -
(meados de 1989)

Fonte da imagem:
Avistamento do Sol





7 comentários:

cirandeira disse...

Tua postagem está completa, Eurico:
a música(belíssima!), o texto e o
teu poema despojado, despretensioso
e humano, simples assim!
O que seria de cada um de nós sem o
compartilhamento, sem a solidariedade, será que sobreviveríamos? Tenho certeza que não, o próprio Sol nos transformaria em cinzas, não é?
O Sol vem te aquecendo e te iluminando há bastante tempo, digo
melhor, através dos tempos, amigo,
pois continuas brilhando!!!

um abraçamigo

Unknown disse...

Que beleza, Eurico!

It comes the sun and the sun came on you.

Realmente, depois de assimilado o conhecimento deixamos de ser só indivíduos. somos divididos em partículas que devem se espalhar pelo mundo para que outros se imantem.

Aplausos!

Beijos

Mirze

Rejane Martins disse...

Diante de mais um poema teu de altíssima qualidade, Eurico. Tem um quê de Lula Cortes.
Referencial externo é só pra quem não teme o absurdo nosso de cada dia! ...E ainda há quem, como eu, não queira ter, nem queira ser; eu fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita, é bonita! E ainda sobre luz e beleza, já foi dito: "infância é a arte de recuperar, depois da adolescência, depois da maturidade, a beleza perdida, não a estética, mas a crença de que tudo é possível" ...e lindamente tocado em todos os sentidos - confere aí, apesar da pouca qualidade do vídeo:
http://youtu.be/umny8FGOtdk

Unknown disse...

um para sempre em movimento, um contínuo de velocidade no vácuo: eu pensei em Einstein e Heráclito à beiro daquele rio eterno, cujas águas se contorcem em espelhos: como a hidra a invocar um enigma,


grande abraço


p.s. lá vem o sol

Passageira disse...

Querer ser nas pessoas é uma das mais belas aspirações e o seu eu-lírico a colocou perfeitamente aqui, meu querido. E deu pra escutar perfeitamente a música do poema!
Beijo e carinho. E felizes dias.

carmen silvia presotto disse...

E que siga o Sol, um beijo Eurico, uma ótima semana e sempre carinho.

Carmen

Rejane Martins disse...

Safras inteiras de vinho a serem retomadas, Eurico :)
O Manifesto da Ciência Tropical, do cara, é tudo de bom! Feliz eu fico com tua associação!
um abraço