Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, junho 25, 2011

Mar da Tranquilidade

Ouvindo O Mar, de Claude Debussy:



para a moçada que está rejaneando em Floripa, digo melhor, em Nossa Senhora do Desterro.


Hoje  eu não vou lhes falar de coisas abissais;
Do fundo do mar profundo,
fundo escuro,
de um inacreditável mundo escuro
em que alguns peixes têm lume,
nem de algas, planctons submarinhos,
nem de madréporas e corais.

Tampouco quero lhes contar da quase
ubiquidade dos cardumes
das garoupas,dos dourados, dos bonitos.
Tão bonitos, os golfinhos:
a amizade dos golfinhos,
a folia dos golfinhos.

Mas vou lhes falar de homens,
de pequenos homens do mar...
Da meninada
que nada
nessa enseada
em que toda rua e estrada
vai dar
no mar...
Mas não nesse mar salgado,
pois as crianças tem vários
mares por que navegam:
há um mar do imaginário,
um mar feito de odisséias,
de navegantes audazes,
de Ulisses,
de Simbad;
Há até mares lunares,
o Mar da Tranquilidade,
vê se pode?
E existe esse mar moderno,
em que os nautas, novos nautas, (in-ter-nau-tas)
se divertem e navegam mundo afora.
Nesse mar novo, de agora
eis que a meninada adora
navegar
É neste oceano bonito
de novas coisas possíveis
que é preciso lhes mostrar
a onda boa
essa em que o mar ressoa
amizade,
poesia,
fraternidade e harmonia.

Esse é o mar sem tormentas,
Esse é o mar das calmarias,
mar de amor que se alimenta
da atitude sã, dos nautas.

Se navegar é preciso,
viver então, nem se fala.

Quem navega, com certeza,
tem de ir por lugar seguro,
tem de criar coisas boas
e proteger o futuro.
A vida, a casa, a escola, tudo,
Tudo deve ser cuidado
pra não ser infectado
pelo vírus da tristeza.

quinta-feira, junho 23, 2011

ESTRADA VELHA DO CURADO, 2011


Antiga casa de meus pais,  em um dia de  des/arrumação






















Que é, mesmo, estar em um lugar?
Hic.
Illic.
Ubique.
Repousar no espaço
a se ver passar no tempo?

Aqui,
ali
e em toda parte,
estar é ser, se estiver todo.


Estar é essa presença plena
de onde em quando
o ser palpita, aquilo
que se con/sente vivo:

Do alpendre, a cerca viva,
a ubaia, ácida e cíclica,
e o vento ainda a empoar a estrada antiga...

Eu sou esse lugar que passa, a poeira, a casa reformada...
Sou esse estar...
E só há lugar nisso em que me entrego.
Se inteiro não me estou, não há lugar.


Imagem da casa de meus pais:
http://sitiodolinda.blogspot.com/2008/04/o-que-o-stio-dolinda.html



terça-feira, junho 14, 2011

NATUREZA-MORTA (as acerolas)





















“sois, apenas, como neblina que
aparece por instante e logo se dissipa...”
(Epístola a Tiago 4:14)





Pernoitaram sobre a mesa, aquelas bolotas vermelhas, deixadas em uma vasilha de ágata. Algum sortilégio noturno, algum miasma, perpassou-lhes as polpas carnudas, e eis que amanheceram assim, bolorentas e maceradas. Aquele viço apetecível, aquela aparência rubra e suculenta se esvaiu. Um sopro letal deve haver na noite, no sereno. Algo imperceptível, que necessita das horas silenciosas da madrugada, para atingir o cerne vital das frutas, das flores... de tudo...

Contemplá-las, ao desjejum, nessa manhã introspectiva, traz à alma um estranho pesar. Há pouco, no lavabo, o espelho deixava entrever os inúmeros fios brancos que em mim despontam, que desapontam. Sinto-me frágil infrutescência, pênsil e pingente, feito fruto maduro. Atravessei, sem perceber, as noites frias desses últimos cinqüenta anos. Alguma substância elemental me vai atingindo o âmago da vida. Uma informação incrustada em minhas moléculas diz, em código: és finito.

Agora os sonhos ainda estão por sonhar, e as gavetas estão prenhes de projetos. O vento, vindo da Sé, balança as frondosas mangueiras do Horto Del Rey. Levanta a poeira na estrada que vai dar ao Sítio das Quintas. Os dolbermans do casarão ao lado apóiam-se na muralha, e espiam os garotos que jogam bola. Aqui, parece que o tempo não passou e as crianças ainda brincam na rua. Bola de pé, bola de meia, bola de gude.
Os galos já descansam de suas saudações ao dia de hoje. Já há mangas maduras caídas ao chão. E as pessoas já vão passando, apressadas em cumprir os seus deveres, os seus desígnios...
Olinda acorda aqueles que dormiram e encontra os notívagos que buscam a manhã. Os ateliês da Cidade Alta abrem as janelas e deixam que a brisa lhes sopre a tinta fresca das telas. À mesa, o artista solitário fita as acerolas murchas no vaso. Seus pensamentos vacilam como as asas de uma mariposa fatigada, depois de lutar a noite toda tentando desprender-se das teias de uma aranha. Mais do que as idéias, vacilante está o seu corpo franzino. Suas juntas rangem como velhas cancelas. Pronuncia algumas palavras ao acaso. Saem de sua boca pássaros flácidos, que esvoaçam a custo, rente ao chão.
Encanecido. Um ser cansado e encanecido exala o cheiro fúngico dos velhos alfarrábios...
Sedentário. Só e sedentário. Desistiu das coisas mais comezinhas – desistiu da ação.
Hoje quedou-se a meditar diante da terrina de ágata. As acerolas, ontem vermelhas e macias,...antes suculentas e saudáveis...ah,...o tempo...
...o tempo é um estranho escultor de máscaras mortuárias...

Recolhe os seus pincéis... a paleta treme entre seus dedos. Cores desbotadas, boninas, tons crepusculares, uma monocromia em pálidos tons de vermelho... pintava uma natureza-morta...
A sombra passageira de uma nuvem encobre os pardieiros da cidade. Exausto, deita-se mansamente sobre o assoalho. Balbucia uma prece sem sentido... então, uma profunda e melancólica agonia o faz desfalecer...



***
concluído em 06.12.05, com este conto olindense.


Eurico - 2005
Horto del Rey, Olinda.


Fonte da imagem:
OLINDA CINZA