Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, dezembro 14, 2013

A ARANHA (poemeto chinês)

 

A aranha urde a teia
porque vive
A aranha urde a teia pra viver
Urdir a teia é ser aranha
e o ser da aranha é o tecer...



Eurico
04/04/1994
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segunda-feira, dezembro 02, 2013

CARTAS A UM JOVEM POETA

(Primeira carta)
Rainer Maria Rilke

 Paris, 17 de fevereiro de 1903

 Prezadíssimo Senhor,

 Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera. Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou. Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir. Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa. Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la. Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke

 Rainer Maria Rilke nasceu em Praga no dia 4 de dezembro de 1875. Depois de viver uma infância solitária e cheia de conflitos emocionais, estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Suas primeiras obras publicadas foram poemas de amor, intitulados Vida e canções (1894). Em 1897, Rilke conheceu Lou Andreas-Salomé, a filha de um general russo, e dois anos depois viajava com ela para seu país natal. Inspirado pelas dimensões e pela beleza da paisagem como também pela profundidade espiritual das pessoas que conheceu, Rilke passou a acreditar que Deus estava presente em todas as coisas. Estes sentimentos encontraram expressão poética em Histórias do bom Deus (1900). Depois de 1900, Rilke eliminou de sua poesia o lirismo vago que em parte lhe haviam inspirado os simbolistas franceses, e, em seu lugar, adotou um estilo preciso e concreto, que podemos perceber em O livro das horas (1905), que consta de três partes: O livro da vida monástica, O livro da peregrinação e O livro da pobreza e da morte. Esta obra o consolidou como um grande poeta por sua variedade e riqueza de metáforas, e por suas reflexões um pouco místicas sobre as coisas. Em Paris, em 1902, Rilke conheceu o escultor Auguste Rodin e foi seu secretário de 1905 a 1906. Rodin ensinou o poeta a contemplar a obra de arte como uma atividade religiosa e a fazer versos tão consistentes e completos como se fossem esculturas. Os poemas deste período apareceram em Novos poemas (2 volumes, 1907-1908). Até o início da I Guerra Mundial, o autor viveu em Paris de onde realizou viagens pela Europa e pelo norte da África. De 1910 a 1912 viveu no castelo de Duíno, próximo a Trieste (agora na Itália), e ali escreveu os poemas que formam A vida de Maria (1913). Logo após iniciou a primeira redação das Elegias de Duíno (1923), obra esta em que já se percebe uma certa aproximação dos conceitos filosóficos existenciais de Soren Kierkegaard. Em sua obra em prosa mais importante, Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), novela iniciada em Roma no ano de 1904, empregou imagens corrosivas para transmitir as reações que a vida em Paris provocava em um jovem escritor muito parecido com ele mesmo. Residiu em Munique durante quase toda a I Guerra Mundial e em 1919 mudou-se para Sierra (Suíça), onde se estabeleceu para o resto de sua vida, salvo algumas visitas ocasionais a Paris e Veneza, concluindo as Elegias de Duíno e escreveu Sonetos a Orfeu (1923). Estas obra são consideradas as mais importantes de sua produção poética. As Elegias representam a morte como uma transformação da vida e uma realidade interior que, junto com a vida, foram uma coisa única. A maioria dos sonetos cantam a vida e a morte como uma experiência cósmica. Rilke morreu no dia 29 de dezembro de 1926 em Valmont (Suíça). Sua obra, com seu hermetismo, solidão e ociosidade, chegou a um profundo existencialismo e influenciou os escritores dos anos cinqüenta tanto na Europa como na América. Texto extraído do livro "Cartas a um jovem poeta", tradução de Paulo Rónai, Editora Globo – Rio de Janeiro, 1995.

domingo, dezembro 01, 2013

MERCADO DE SÃO JOSÉ



(um itinerário impressionista, com Debussy)


Flores, flores, flores!
Buquês de flores,
Róseas, lácteas,
rubras, violáceas.
Baldes com flores,
ramalhetes empilhados,
laços de fita e as mãos hábeis
da florista, embalando uma corbeille.

Rua Estreita do Rosário,
Direita e do Livramento,
apinhadas de feirantes.
Mais em frente,
eis o Mercado
do bairro de São José,
com sua armação de ferro,
trazida pelos ingleses,
e a multidão de barracas,
nesses becos labirínticos,
barracas, gente, barracas,
panelas dependuradas, pencas delas!
Cachos brilhantes de garfos, de colheres,
caçarolas, frigideiras, caldeirões.
Um leão vermelho e azul
ruge, com o dorso colado
na bacia de alumínio.
Pingentes, penduricalhos,
que quase nos batem à testa:
grelhas de pão, abridores
de lata, tábuas de carne,
pilões de bater cominho.
Caminho entre os tabuleiros,
quiosques de calças jeans,
chinelos, brim, alpercatas,
sombrinhas, chapéus, coleiras
cordas, correntes pra cães,
ferragens, fumo de rolo;
De repente, explode um mundo
de cores em degradê
amarelo, nos meus olhos:
melões, cajás, mexericas,
cajus, bananas, pitombas.
O marrom dos sapotis;
Umbus e verdes caquis,
até pêra encontro aqui.
O vermelhão das maçãs.
Às vezes, até romãs.
E o branco das tapiocas
da preta velha sentada,
sob o arco do mercado.
É essa a loja! Encontrei!
BANHOS-OFERENDAS-ERVAS,
Um bazar religioso.
Estatuetas dos santos,
dos caboclos, dos eguns.
Seres de um mundo impalpável.
Empório de elementais,
farmacopéia esotérica,
de uma medicina mágica:

Tem semicúpio aromático?
Semi-o-quê?
Tem não, dotô!
Banho-de-ervas, dá no mesmo.
Ah, isso eu tenho!

Sinhá Nana crê nessas coisas.
Não descreio totalmente.
Como não crer, se nas ruas
desse Recife volátil
cruzam comigo ciganas,
yabás-malabaristas,
balconistas-iorubás,
pretos-velhos-motoristas,
garçonetes-pomba-gira,
donas-de-casa-bantus.

Salve a sincrética fé:
malungo, nagô, malê,
rastafari, quilombolas.
filhos do Congo e d’Angola.

Vendedores de sapatos?
Camelôs?
É muito pouco!

Nós somos é a realeza.
Reis e rainhas da coorte
de um imenso maracatu.
Canta a nação Pernambuco,
por trás de pentes ,agulhas
retrós-de-linha, bonés.


Alarga-se esse cenário.
Tem fendas o imaginário,
no lado escuro da mente
Sinhá Nana crê, piamente,
na mente. A força da mente
que fez um dia um carrasco
de cor negra, homem de brios,
negar-se ao enforcamento
do heróico Frei Joaquim
do Amor Divino Caneca.
Havia uma força telúrica
na mente daquele algoz.
Um gesto, um rápido gesto
de mão e ele passaria
anônimo. Nem estaria
nesses versos. E só seria
um carrasco, apenas isso.
Mas esse negro era o povo.
E tinha os medos do povo.
Fez a vontade do povo,
(quem se atreve a matar padre,
a não ser a ditadura?)
o algoz, e mesmo sem nome,
ficou na história do povo,
Povo mascate que vende,
nas ruas, quinquilharias.
Que canta com pandeirinhos
ciganos, no pastoril;
Que dança as danças de África
e o toque dos caboclinhos.
Sinhá Nana, é dama do paaço
na sexta-feira encantada.
Os garis são da embaixada
da Irmandade de Homens Pretos.
Pipoqueiros são ogãs,
e vêm tocar no Rosário.
E eu, sustentando o pálio,
sou serviçal da cabeça
daquela preta agachada,
sob o arco do mercado.
De dia, ela faz tapiocas,
de noite é a bela rainha
de um Recife imaginário.

Eis nossa mãe!
Bença, mãe!


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Para ouvir Mouvement, de Debussy, enquanto lê, clique:
                                       

Com os meus agradecimentos a Rejane, regente de realejos
e guardiã de pérolas, do blog REJANEANDO,   pelos links de Debussy.


Fonte da imagem:


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