Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, dezembro 01, 2013

MERCADO DE SÃO JOSÉ



(um itinerário impressionista, com Debussy)


Flores, flores, flores!
Buquês de flores,
Róseas, lácteas,
rubras, violáceas.
Baldes com flores,
ramalhetes empilhados,
laços de fita e as mãos hábeis
da florista, embalando uma corbeille.

Rua Estreita do Rosário,
Direita e do Livramento,
apinhadas de feirantes.
Mais em frente,
eis o Mercado
do bairro de São José,
com sua armação de ferro,
trazida pelos ingleses,
e a multidão de barracas,
nesses becos labirínticos,
barracas, gente, barracas,
panelas dependuradas, pencas delas!
Cachos brilhantes de garfos, de colheres,
caçarolas, frigideiras, caldeirões.
Um leão vermelho e azul
ruge, com o dorso colado
na bacia de alumínio.
Pingentes, penduricalhos,
que quase nos batem à testa:
grelhas de pão, abridores
de lata, tábuas de carne,
pilões de bater cominho.
Caminho entre os tabuleiros,
quiosques de calças jeans,
chinelos, brim, alpercatas,
sombrinhas, chapéus, coleiras
cordas, correntes pra cães,
ferragens, fumo de rolo;
De repente, explode um mundo
de cores em degradê
amarelo, nos meus olhos:
melões, cajás, mexericas,
cajus, bananas, pitombas.
O marrom dos sapotis;
Umbus e verdes caquis,
até pêra encontro aqui.
O vermelhão das maçãs.
Às vezes, até romãs.
E o branco das tapiocas
da preta velha sentada,
sob o arco do mercado.
É essa a loja! Encontrei!
BANHOS-OFERENDAS-ERVAS,
Um bazar religioso.
Estatuetas dos santos,
dos caboclos, dos eguns.
Seres de um mundo impalpável.
Empório de elementais,
farmacopéia esotérica,
de uma medicina mágica:

Tem semicúpio aromático?
Semi-o-quê?
Tem não, dotô!
Banho-de-ervas, dá no mesmo.
Ah, isso eu tenho!

Sinhá Nana crê nessas coisas.
Não descreio totalmente.
Como não crer, se nas ruas
desse Recife volátil
cruzam comigo ciganas,
yabás-malabaristas,
balconistas-iorubás,
pretos-velhos-motoristas,
garçonetes-pomba-gira,
donas-de-casa-bantus.

Salve a sincrética fé:
malungo, nagô, malê,
rastafari, quilombolas.
filhos do Congo e d’Angola.

Vendedores de sapatos?
Camelôs?
É muito pouco!

Nós somos é a realeza.
Reis e rainhas da coorte
de um imenso maracatu.
Canta a nação Pernambuco,
por trás de pentes ,agulhas
retrós-de-linha, bonés.


Alarga-se esse cenário.
Tem fendas o imaginário,
no lado escuro da mente
Sinhá Nana crê, piamente,
na mente. A força da mente
que fez um dia um carrasco
de cor negra, homem de brios,
negar-se ao enforcamento
do heróico Frei Joaquim
do Amor Divino Caneca.
Havia uma força telúrica
na mente daquele algoz.
Um gesto, um rápido gesto
de mão e ele passaria
anônimo. Nem estaria
nesses versos. E só seria
um carrasco, apenas isso.
Mas esse negro era o povo.
E tinha os medos do povo.
Fez a vontade do povo,
(quem se atreve a matar padre,
a não ser a ditadura?)
o algoz, e mesmo sem nome,
ficou na história do povo,
Povo mascate que vende,
nas ruas, quinquilharias.
Que canta com pandeirinhos
ciganos, no pastoril;
Que dança as danças de África
e o toque dos caboclinhos.
Sinhá Nana, é dama do paaço
na sexta-feira encantada.
Os garis são da embaixada
da Irmandade de Homens Pretos.
Pipoqueiros são ogãs,
e vêm tocar no Rosário.
E eu, sustentando o pálio,
sou serviçal da cabeça
daquela preta agachada,
sob o arco do mercado.
De dia, ela faz tapiocas,
de noite é a bela rainha
de um Recife imaginário.

Eis nossa mãe!
Bença, mãe!


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Para ouvir Mouvement, de Debussy, enquanto lê, clique:
                                       

Com os meus agradecimentos a Rejane, regente de realejos
e guardiã de pérolas, do blog REJANEANDO,   pelos links de Debussy.


Fonte da imagem:


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