Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, abril 30, 2009

Grande Angular - (Ecce Homo)

























foto-viajante, tirada pelo usuário do Flickr heiwa4126,
com uma lente olho de peixe ultragrande-angular
.



Melhor deixar-se flutuar
por trás do texto
E ser levado pelo mundar do mundo...

Adentrar ao templo, sem véu,

Onde a verdade, numinosa,
Surge e nos acomete
:
Epifania.
Aletheia grega

ou
luciferina lucidez;
Fulgurações.
Apocalipse interior 
ou
Desocultação do ser.

Minha saída para o universo é por essa ruela aí fora.
Ad-miro o que sou, visada re(l)ativa.
E sou perspectiva.
Então... eu não sou eu, quando penso?
Je pense, e apesar disso, donc je suis?
Incógnito, ergo sum?

Claro que não!Filho dos meus olhos,Sou o que me fizeram ver.

Melhor é deixar-se levar pelo aórgico.
E fugir desse delírio cartesiano,
Que só produz saaras amazônicos.

Melhor cantar como Hölderlin...

Melhor deixar-se boiar,
E ser levado pelo mundar do mundo...
Melhor saudar os deuses úberes da terra
E abrir-se à Grande Angular
:
Eis os numes da primavera!
Eis o Homem!
Fonte da imagem:www.gizmodo.com.br/tags/fotografia

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domingo, abril 26, 2009

Modinha em Tom Menor para Menores Infratores





















Ali estão os anjos vagabundos,
Carinhas sujas de lama!
Conversam sobre a jangada
Tão inocentes de tudo
Da humanidade, do mundo
Da vida que irá roubar
Seus calmos anos de infância
Essas alegres andanças
Quando menos se esperar...

Sonha, anjo irrequieto,
Sonha, que um dia, por certo
Despertarás desse sonho
E nunca mais poderás
Dormir direito e sonhar.

O tempo é um bruxo covarde
Feito um mar de tempestade
Que leva tudo pra longe
Sem chances de retornar
O tempo é irremediável
Feitiço ruim, imutável
Que faz a gente penar...

Sorriam anjos vagabundos,
pelas margens do Rio Pina
Rio abaixo, rio acima
Pintando o sete e os canecos
Que um belo dia na certa
Vão engraxar mil sapatos
Vender mil rosas em mil bares
Ou, solução mais esperta,
Pedir esmolas nas pontes
Furtar otários nos ônibus
Vão apanhar da polícia
Virar, na Globo, notícia.
Esse é o pior dos pesares:
Pois nos sofás de mil lares
Rir-seão dos teus esgares.



Eurico (1990)
(ainda da série de poemas da maré,
in : Ser Tão Profundo/Mangue Interior)


Fonte da imagem:
http://www.projecoesdigitais.blogger.com.br/2005_08_01_archive.html

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sexta-feira, abril 24, 2009

Ilha-sem-Deus (releitura em Josué de Castro)























(Mais um da série poemas da maré,
dedicado agora a Josué de Castro.
Se os generais que o exilaram
tivessem de pagar pelas mortes dos famintos
nas favelas e palafitas,
nem mil anos de pena seriam suficientes.)





Aquecer a frágil'alma
Ao calor desses destroços
Esses retraços que ardem
Em um ser baldio e sem crença

Esfregar mãos engelhadas
Ao fogo desse monturo
Prender a morte num engulho
Sem desistir da existência

Buscar sentido no caos
E fé na lenta agonia:
Esses barracos imundos.
Essas entranhas vazias.

Trapos, lama, palafitas
Sem Deus na ilha esquecida
E a vida?
A vida é também retraço
No pó das desconstruções.
Essa inútil empreitada.
Um traço desesperado
Que nós riscamos no Nada...



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Eurico
16.01.2003
In: Ser tão Profundo/Mangue Interior


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Fonte da imagem:
acertodecontas.blog.br/.../2008/08/palafitas.jpg


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Uçá (Demarcação da poesia nº 2)






















Meu canto espumeja e baba,
que nem detritos na lama:
palavras-lixo que enfeiam a orla do manguezal.
Meu versejar, fugidio,
repente breve e assustado,
parece uçá de andada, sob o troar dos trovões.

Canto com meus olhos baços,
nessa paisagem restrita,
zanzando entre os mocambos,
pelas ruelas estreitas.
(Só os pardais sobre o mangue
sabem a linguagem da brisa
que soprava na caatinga de onde vim retirante...)
Vou cantando e navegando
nessa baiteira raquítica,
bichinho instável e manhoso,
feito a alimária cansada que deixei pelos caminhos.

Meu canto veio fugido
e encalhou nessas ilhas,
minh’alma presa às raízes,
molhando a crosta de escolhos de meu chão interior.
Dessa lama pardacenta,
surgem palavras aquáticas,
salobras e insalubres,
ligeiras, feito os crustáceos, encovados em meu ser.

A alma da maré vazante é um oco em minhas lembranças,
a angústia de não ser nada nessa cidade de escombros,
mocambos que não produzem palavras pra se cantar.

(Ai... que saudade de lá,
de tanger gado moroso e à tardinha aboiar...)



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Eurico
In: Ser Tão Profundo/Mangue Interior

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(Essas demarcações servem de abertura às duas partes do meu livro inédito, Ser tão Profundo/Mangue Interior.

O poema Uçá abre a série de poemas da maré, em que o retirante chega a Mucambópolis.)


Fonte da imagem:
caranguejouca-ilhadedeus.blogspot.com/2007/06...

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quinta-feira, abril 23, 2009

Aboio (Demarcação da poesia nº 1)






















(Reedito aqui, poema de meu inédito

Ser tão Profundo/Mangue Interior
,
aproveitando o momento árido, ou semi-árido,
que perpassa o Eu-lírico. rs )



Meu canto é que nem filete d’água, minando a pulso de um lajeiro.
É assim, arrastado, gutural, canto monossilábico.
Melopéia pungente,
Arrancada da Pedra que me sangra o Reino do peito.

Canto esse meu canto, agoniada infra-linguagem,
Mugido de uro primevo;
Urro inculto em goela ressecada.
Canto a lamúria dos bichos
que tanjo em meu ser/tão profundo...

Esse canto germina, acúleo feito um cardeiro,
Na minha alma de abrolhos, de solidão e de silêncio.

Vou cantando e tangendo um gado invisível,
Por entre espinharas sibilantes e seixos esbraseados,
Enquanto atravesso as léguas tiranas de uma caatinga interior.

Dessa terra rachada e sem húmus,
Exsurge um léxico raquítico,
Vocábulos mínimos que se alongam tristes...
Um aboio...

Com a morte em minhas lembranças
E a dor em minhas andanças,
Canto uma agonia fechada, solitária,
Num universo parco, de cabras e pedras,
Quase sem palavras com que se cantar.



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Eurico
in: Ser Tão Profundo/Mangue Interior (meu livro inédito)
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A imagem foi copiada do sítio:
http://canindesoares.blog.digi.com.br/

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segunda-feira, abril 20, 2009

O Carcará (volataria rés-do-chão, ou um close-up cabralino)





















Ainda o inútil:
(Abril, 2009)
Chove sobre as pedras do Recife. Chove muito. A cântaros. Encolhe-se o homem entre as pedras, num palafitas, franzino.
Hoje estou encharcado de poesia. Pedra. Ou cabra, que não gosta d’ água. Cabra e Pedra. A ouvir Tárrega e ler Cabral. Dois hispânicos, ibéricos, imensos. Entre eles e eu, a água, imensa, o mar... E esses ecos intertextuais:



O Carcará
(volataria rés-do-chão, ou um close-up cabralino)


O carcará é o eco do eco,
Do eco seco,
Onomatopaico eco.

Falcão modesto
E sem estirpe
Que, não se apresta, de resto,
Aos exercícios fidalgos
Da caça em volataria.
Voa rés-do-chão, rasante,
Vôo sem nada elegante
Aqui mesmo, nas barrancas
À jusante ou à montante,
do leito seco do rio.


Tem um pouco de caprino (cabra alada?)
Quando escava o chão infértil
No vão das palmas de espinhos,
caçando o rato-preá
que se esconde entre as raízes.


Um pouco de cabra ou de ema,
Outra ave de pouco senso,
Pois não escolhe alimento.
Come tudo. Rato, lagarto e cobra.
E por que haveria de escolher
entre as pedras da escassez?

Vai reto e certeiro, ao ponto.
Bicho do mato, agreste e rude,
Não faz o arrodeio e o rito
Funéreo, assim como o abutre
Que espera a morte matar.

A fome, que dá sentido
Ao seu jeito de caçar,
Não lhe permite a espera.
E nem se diz que ele caça,
Pois caça é arte mui nobre,
Pra um bicho pobre e sem raça
Pra um bicho sem sobrenome.

O carcará vai bem reto
Guiado por sua fome
Não metaforiza a lida,
Não tem pena, não vacila,
Que nenhum dó lhe consome.
Pega e arrasta a lagartixa
Abre-lhe o ventre
E, ali, come.

Lições de vida
Pros homens,
Crias da caatinga braba,
Ventres e bocas aflitas,
São os carcarás e as cabras,
Emas, ratos, lagartixas;


Lições de vida
E de morte.
De fado, de sina e sorte,
Homem e bicho
Bicho e homem.
Fauna em flora estiolada.
Juntos na mesma desdita.

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Eurico


(perdoem-me a audácia de postar esse meu gavião rasteiro,
logo depois da altaneira Cabra do João Cabral.
Reputo isso à diversidade da fauna poética. rsrs
Mas, de poeta e de louco todo mundo tem um pouco.)



Pós-escrito: sobre ser hispânico o tão nosso João Cabral,
é que sua alma oscilava entre Sevilha e Recife.

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Clique na imagem para saber sua origem.


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Poema(s) da Cabra - João Cabral de Melo Neto
























Ainda o inútil:

Eu escavo nesse terreno árido e infértil, feito uma cabra cabralina, à busca das raízes profundas de mim mesmo. Eu escavo aqui, por dentro, as memórias quase físicas, à busca dessa inútil e bela coisa transumana: a Poesia.
....................................................(Eurico)


Poema(s) da Cabra
.................................João Cabral de Melo Neto



Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.

1

A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.

2

Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.

3

O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

4

Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.

5

A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.

6

Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.

7

A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.

8

O núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.

Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.

9

O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.

*

O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.

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Texto extraído do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pág. 254.


Fonte do texto:
http://www.releituras.com/joaocabral_menu.asp

Clique na imagem e irá ao sítio de origem.

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sábado, abril 18, 2009

E por falar em inutilidades, leiam Jorge de Lima




















Aos 21 de setembro de 2006, publiquei, aqui mesmo, alguns sonetos da Invenção de Orfeu, do genial poeta Jorge de Lima. Porém, esse tema da inutilidade da poesia (inutilidade que lhe faz superior às coisas úteis, mas poluentes) trouxe-me à memória dois sonetos, em especial: o Sétimo, do Quinto Canto, e, logo a seguir, o Quinto, do Primeiro Canto.


VII (Quinto Canto)


Estão aqui as pobres coisas: cêstas
Esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
Arrebentadas, abas corroídas,
Com seus olhos virados para os que

As deixaram sózinhas, desprezadas,
Esquecidas com outras coisas, sejam:
Búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
Penas de ave e penas de caneta,

E as outras pobres coisas, pobres sons,
Coitos findos, engulhos, dramas tristes,
Repetidos, monótonos, exaustos,

Visitados tão só pelo abandono,
Tão só pela fadiga em que essas ditas
Coisas goradas e orfãs se desgastam.


Jorge de Lima
(Quinto Canto, Sétimo soneto)



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V ( Primeiro Canto)


Não esqueçais escribas os somenos
As geografias pobres, os nordestes
Vagos, os setentriões desabitados
E essas flores pétreas antilhanas.

Há nesses mapas números pequenos,
Uns tempos esbraseados para pestes
E muitos ossos tíbios chamuscados,
Faces perdidas, formas inumanas.

Não esqueçais, escribas, ir contando
Nas cartas, o que está aparente, ao lado
Das invenções em seu fictício arranjo.

E os pequenos orgulhos, sempre quando
Quereis fugir ao mundo persignado,
Ó impenitente e despenhado arcanjo.


Jorge de Lima
(Canto Primeiro, Quinto soneto.)




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Clique na imagem para ver sua origem.

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sexta-feira, abril 17, 2009

Ciranda da Inutilidade (ou rondó silesiano)
























"A rosa não tem porquê.
Floresce porque floresce.
Não cuida de si mesma.
Nem pergunta se alguém a vê..."
Angelus Silesius


A luz dos olhos de um gato
na noite feita de breu
é inútil feito o piscado
das estrelas lá no céu.
Gosto da flor porque gosto.
E esse gostar é só meu.
Assim, gosto da poesia,
Posto que inútil, ela e eu:

Se o cravo arengou da rosa...
Se a rosa pôs-se a chorar...
Faz sentido, choro em rosa?
Algum sentido, em brigar?
Só faz sentido, na roda,
Girar, apenas girar.
Por que criança vai dormir,
No melhor da brincadeira?
E sei lá eu! E eu sei lá!
Não me perguntem por nada
Ciranda é só cirandar.

Se o dia é bom pra que noite?
Por que existem baratas?
Os chatos andam nas chatas?
Quem ama as botas é o boto?
Tantas perguntas, ó Deus!
E eu sei lá!
E sei lá eu!

Claro que eu não disse nada.
Nem vim aqui pra dizer!
É tarefa vã, baldada,
De quem veio me entender.
Poesia não é pensada
Poesia não tem porquê:

É inútil o olhar do gato tó
na noite feita de breu eu eu
Nada explica cá
o alvoroço çó
das estrêlas
das estrêlas
lá no céu.
Nihil!



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Eurico :)
(permitam-me essas pequenas tolices,
tão inocentes, quanto pueris rsrsrs)




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Clique na imagem para ver sua origem.
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quinta-feira, abril 16, 2009

Divertimento (ainda, o elefante)





Que ridículo, que nada!

Como é bom dar cambalhotas,
iludindo a gravidade!
E o que dizer da zoeira
que é plantar bananeiras?
Como se diz na minha terra,
permissa venia, é arretado!

Bom também é fazer guerra.
Guerra?
Isso mesmo. Guerra:
Lançar mísseis travesseiros;
Arremessar almofadas;
Petecas de longo alcance.

E brincar de esconde-esconde,
tantas repetidas vezes?
Achei! Agora sou eu!
Achei , também!
É bom!
Isso é bom demais!

Que ridículo, que nada!
Nunca brincastes na chuva?
Nem sapateastes nas poças?
Ih! Nunca fostes ao circo?
Meu Deus! Nem à confeitaria?
(Que diabetes, que nada.
Nem temos tempo pra isso!)
Ah, vos direi da delícia
das frutas cristalizadas,
dos bombons, pipocas doces;
dos chocolates nas trufas,
nos inigualáveis mousses.

Que ridículo, que nada!
Lúdico, eu diria, lúdico:
Girar no trenzinho do parque.
Subir-descer na burrica.
Deslizar nos pedalinhos...
Ridículo?
Ridículo, nada!
Já sei:
Não tendes netinhos!




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quarta-feira, abril 15, 2009

O Elefante (uma análise eudemonológica)
























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a Arthur Schopenhauer




Poeta jovem e volúvel:
assemelhava-se
a uma pêndula,
inconstante entre quereres,
a oscilar entre um desejo e outro,
feito menino na feira,
ante o colorido das frutas maduras.
Restou uma, entre as mãos:
a fruta dos (des)caminhos.

Poeta adulto, porém perdido:
assemelhava-se a um geômetra enlouquecido,
tentando fazer da linha reta, a superfície,
a ziguezaguear pela vida.
Produzia, com pontinhos salteados e desconexos,
uma obra inconclusa,
e de um impreciso pontilhismo.

Poeta maduro, todavia indócil:
assemelha-se, enfim,
a um elefante capturado
que, por muitos dias, estrepita horrivelmente
até perceber inútil essa peleja
e, então, subitamente amansado,
ofertar a cerviz ao jugo,
domado para sempre pela Poesia.

Hoje, pesado e grave,
equilibra-se sobre poemas bissextos e baldados.
Está feliz
e faz afago aos circunstantes.

Já sabe que a vida é instável e circense

feito um frágil tamborete, sob a lona...



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segunda-feira, abril 13, 2009

Pedido, de certo modo inocente, aos Homens de Boa Vontade



























Hoje andei procurando por você.
Sim, você mesmo!

Você
que é incapaz de engaiolar um passarinho
e de escorraçar um cão.

Você
que devolve o excedente do troco
ao caixa do mercado.

Você
que quando leva uma topada,
olha pros lados antes de dizer o palavrão.

Você
que não disputa uma bola dividida deslealmente.
Que aplaude o time adversário, quando faz um bom jogo.

Você
que trata a todos com cortesia
mesmo quando o trânsito está totalmente engarrafado.

Você que não discute religião.
Que prefere orar em oculto pra não ferir suscetibilidades
e que não deixa a mão esquerda saber da esmola dada pela direita.

Você que se emociona com tudo:
Um por do sol, um recém-nascido,
Uma canção de amor.

Você
que seria incapaz de molestar uma criança.
De abandonar um filho.
De trair o primeiro amor.

Hoje andei procurando
com meu controle remoto
e não encontrei você.

Hoje folheei jornais,
(há muito que não o fazia)
E, infelizmente, não achei você.

Prezado Senhor Homem de Boa vontade,
cumpra o mandamento divino:
Cresça e multiplique-se!
Domine a densidade demográfica!
Invada o mass media!
Tome de assalto os noticiários
E as capas de revista!

A paz na Terra necessita, urgentemente,
de que você se torne uma multidão inumerável.

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Eurico

"quem não se tornar como um desses pequeninos
não verá o Meu reino..."
.................................Jesus (in: algum dos evangelhos)

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domingo, abril 12, 2009

Cântico de Celebração (litania cósmica)




...e no sétimo dia haverá uma festa em homenagem ao Eterno.
...............................................................( Êxodo 13:6)

*

(ouçam-se pássaros e guizos ao fundo)


Podem dançar com pandeiros
E vestir-se para a festa.
Tragam carneiros sem mácula ,
Preparem a mesa modesta,
Peixes e frugalidade,
Cores alegres.
Feliz Páscoa!
Que a passagem foi aberta!


A passagem foi aberta.
A porta é imaterial.
A passagem foi aberta
Sua chave é atemporal.
A passagem foi aberta
É numinoso, o umbral.

A passagem foi aberta
Renasce o Sol no equinócio;
ressurge a pátria auroral.

Pessach!
Os ciclos avançam.

Pessach!
Gira a espiral.

Pessach!
A eterna passagem.

Pessach!
O Amor é a Porta
que leva ao Transcendental.

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Eurico


"Nunca se chega ao Cristo concreto
De matéria ou qualquer coisa real
Depois de 2001 e 2 e tempo afora
O Cristo é como quem foi visto
subindo ao céu
Subindo ao céu
Num véu de nuvens brilhantes
Subindo ao céu!"................................(Gilberto Gil)


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sábado, abril 11, 2009

Asperges me! (litania do sábado)

Giotto - O Beijo de Judas



“Faze-me ouvir júbilo e alegria,
Para que exultem os ossos que esmagaste.

...........................................Salmos 51:8



Compadece-te de mim.
Eu que chego da noite,
Fugindo das trevas da noite;
Da escura noite do mundo.

Eu que sempre fui vil.
E capaz das vilezas mais sutis.
Das trapaças nos negócios.
Da especulação sem escrúpulos.
Da mais valia sobre meus operários.
Da acumulação de terras e mais terras,
De bens e mais bens materiais...

Eu que adentrei as tabernas
E abusei das mulheres sofridas.
Das mulheres da vida sem sentido.
Eu que traí os meus votos

E sempre culpei as mulheres.
E traindo as mulheres Te traí.
E me traí. Misero me!

Eu que não dou a mão aos anciãos
Quando os vejo caídos na rua.
Eu que desdenho das grávidas,

Dos aleijados,
Dos cegos.
Eu que zombo dos afeminados.

Eu que sou cruel. Sou violento.
Eu que atiro pedras nos cães e gatos.
Eu que tantas vezes os mato por pura maldade.

Eu que me insulo na minha casa,
Bebendo e fumando.
Destruindo o meu corpo.
Isolado no meu egoísmo
Monge às avessas,
Afastando meu próximo.

Abandonando os Teus pequeninos.
Desprezando os meus irmãos
Só por descrer das suas esperanças
Ou desesperar de suas crenças.


Eu que tantas vezes fui cobarde
E praguejador.
Eu que tantas vezes blasfemo
Por puro desencantamento
Por me sentir abandonado por Ti.
Por necessidade de Ti.

Por ciúmes de Ti.
Por saudade de Ti, ó Paizinho...

Miserere, mei, Dio!
Asperges me!



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Eurico

(não esqueçais, pelo amor de Dio, que aqui
fala um eu-lírico, rs)

*************************

sexta-feira, abril 10, 2009

Litania da Hora Nona


















“Que cosas nos decía! Eran cosas, no palabras.”
.........................(Unamuno – “San Miguel Bueno, Martir”)



Sexta-feira.
Uma profunda melancolia se abate
sobre os povos do ocaso.
Miserere nobis.

Entre eles vejo a silhueta avoenga e terrunha
de Dom Miguel de Unamuno.
Os ombros ainda esfoliados
sob uma agostiniana cruz:
Mihi quaestio factus sum.


Nas ruazinhas estreitas das favelas urbanas
Ou ao longo das estradas campesinas
Recitam-se sussurradas preces intra-históricas...
O mote é das vizinhanças do mito.
As coisas estão entrelaçadas pelas palavras:
Ocidente
..............Occidere
..........................Caedere
......................................Cadere

...............................................Cai... a tarde.

Sexta-feira.
Os povos do crepúsculo estão em agonia.

É a hora nona.
Kyrie eleison!

Morre o Sol...

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quinta-feira, abril 09, 2009

Litania do Desapontamento




















(Se eu fosse coevo daquela humanidade que habitava a Terra aos vinte e dois dias do mês de outubro do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1844, por certo sentiria aquele grande desapontamento. É que também carrego uma secreta ânsia pelo sagrado.)




Folheio, meio flâneur, as Escrituras Hebraicas
E sinto, bem fundo n'alma,

um enigmático estremecimento.
Meus olhos passeiam aleatoriamente

pelo profeta Daniel:
Seus estranhos números
me dão a sensação de estar diante
da teoria da relatividade.
Provocam-me, os mistérios bíblicos, um angor.
Uma necessidade imperiosa de êxodo.

E hoje é um dia propício para evadir-se.

As ruas estão silenciosas.
Muitos estão trancados nas suas casas.
Não há mais cânticos.
Embora alguns cortejos ainda regressem, fatigados.

Depois de bramar
como os cervos, pela corrente das águas...
restou essa repentina sede insaciada.
Depois de se atirar como a menina-moça
Ao encontro do primeiro amor...
ficou essa impressão de núpcias frustradas.

Folheio inutilmente a saga do profeta
e o vejo exsurgir da cova dos leões.
A narrativa segue em tom solene e profundo.
Carrega a gestação de milênios...

Emociono-me.

Mas, não sei bem
de onde me vem
essa terrível sensação de abraçar o vazio.


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Eurico

(o poeta é um fingidor...
... chega fingir que é dor,
a dor que deveras sente.

Fernando Pessoa)



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Psalmo Apócripho nº 7 - (Litania profana)





(Chantre)


Às tuas portas
aquietarei minh'alma...


(Côro)

Como se fosses um altar, Olinda!

Silente, adentrarei
pelos teus átrios...

Como se fosses um altar, Olinda!







Com a paz dos monges
dentro dos mosteiros...
Como se fosses um altar, Olinda!
Meditarei ouvindo
o tempo inteiro...
Como se fosses um altar, Olinda!




a secular canção
das tuas ruas
Como se fosses um altar, Olinda!




Hei de pisar
por essas pedras nuas
Como se fosses um altar, Olinda!

dessas ladeiras
becos e vielas
Como se fosses um altar, Olinda!




salmodiando os feitos
de outras eras
Como se fosses um altar, Olinda!



Com reverência e emoção infinda

Como se andasse em um altar:
Olinda!


As fotos d'Olinda copiei de Bob Omena:
A 3ª foto é do Pedro Valadares:
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O post foi publicado inicialmente pelo compadre Carlinhos, no blogue Sítio d'Olinda, e pertenceu a uma gorada procissão poética que faríamos pelas ruas d'Olinda, em 1995, que se chamaria Psalmos Apócriphos. Tratavam-se de 7 poemas (psalmos), ilustrados por 7 artistas, em 7 bandeiras de procissão, acompanhadas pelo toque compassado de uma alfaia, com paradas para declamação nos 7 nichos do centro histórico.
O projeto ainda não se realizou!




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quarta-feira, abril 08, 2009

Nonada (litania para agnósticos)


























Conversão de São Paulo - Caravaggio






Se o Bom Deus existir
Que me perdoe a incerteza.
Que me perdoe o olhar epidérmico sobre as coisas.
Mesmo sobre aquelas impregnadas de amplidão.

Perdoe-me, Bom Deus,
Não consigo a audição do ultrafânico.
Mal escuto o arrulhar dos arroios
E essas reverberações de seixos lançados n’água.

Tenho de admitir que tateio, apenas tateio,
Entre as alusões da exegese
E as ilusões dos conceitos.

O que serei, então?
Uma elisão, talvez.
Tirante o que me fizeram ser,
Suspeito que sou nada.

Mas, dá-me a impressão de que existes, Bom Deus,
Quando me sinto escondido nas grutas;
Quando estremeço diante da morte,
Essa predadora absurda e voraz.
Nessas horas sobrevoam-me pterodátilos.
De algum modo os percebo.
(Quase que palpo suas garras sinistras)


É com essa visão que os vejo,
Que te busco, Senhor.


É através desse olho cravado no centro de mim,
(O olho disso que chamo de imaginário),
Que me escapa essa furtiva lágrima,
jamais revelada aos meus contemporâneos.




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Eurico

(sou nada, mas tenho em mim
todos os sonhos do mundo... Fernando Pessoa)

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terça-feira, abril 07, 2009

O Arco da Rabeca (litania d'Olinda)


















Quem diria...
O arco da minha rabeca é árabe.
Mas nós é que inventamos os desertos
Os hamburgueres,
E as calamidades.

Deus! quanto é vã nossa modernidade.
Perfunctória e fútil, eis a verdade.
Essa fuligem é tão mórbida
Quanto a obesidade.

Havia um coqueiral na praia.
Algumas casas.

Um farol.
E o que agora encontro é a Realidade.
Nem peixes.
Nem tarrafas.
Nem anzóis.

Deus! quanto é vã nossa civilidade.
E quando o tempo nos tirar o véu,
Pode ser tarde.

O arco da minha rabeca é árabe.

Mas nós já temos a indústria.
E o forno arde.
Novos desertos surgem ao cair da tarde.
O mar avança
E alcança
a nossa vaidade.

Deus! quanto é vã a nossa ansiedade.

Entanto, indiferentes,
Erguemos túmulos litorâneos
E os batizamos:
Cidades.

...mas descobri, enfim,
que o arco da minha rabeca é árabe.


Quem diria...
O arco da minha rabeca é árabe.


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Eurico
(poema dito com mais clareza)





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segunda-feira, abril 06, 2009

Notturno com Gatos




















Há uma quietude de desertos, no níger.
Venera o silêncio e a solidão.
O níger é sempre arcaico
e guarda genealógicos mistérios ...
Apolíneo e sobranceiro,
o níger tem passos elegantes.
E gestos de um poseur.

O persa tem seu próprio código de abluções rituais.
Hierático, purifica sempre seu púbis,
E, quando medita, costuma cofiar os bigodes.


O telepata, nativamente egípcio,
vive em tempo tríbio.
Repousa geometricamente num sofá.
Ou espreguiça-se

contra um céu atapetado de estrêlas.
Conhece perspectiva, eco e signos.
Mas anda preocupado com os desígnios.
Não é Mau,

mas as crendices o fazem ser.


Todos habitam a mesma casa astral,
são voláteis,
e,
a um só tempo, líricos e telúricos.


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domingo, abril 05, 2009

Broa (poema-escorzo)























...trazia a fome dos náufragos na mente,
e, de repente,
o gesto atávico invade o trivial:
alçou até a boca um biscoito,
subitamente antiqüíssimo,
num automatismo quase ritual...




...emerge
em mim, remoto, um mot
:
broa
brote

brood
broot

(O gato dorme no convés...)

Talvez um déjà vu;
Um insight?
A brisa sobre o yacht.

Saudade...

Eu lanço um boat.




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sexta-feira, abril 03, 2009

Via Láctea (uma berceuse para gente grande)




(Deus é o cognoscível?)
Sondava eu, certa noite,
ouvindo a luz das estrelas...

***

No escuro, as coisas baldias
me apontam faces bizarras:
miúdas formas jogadas
na vala comum dos dias;
olhos ambíguos de um gato,
a lucilar na penumbra
de uma viela sombria.

(Há, nessa homérica bruma,
algum portal para o logos?)

Crianças brincam ciranda,
nas cercanias de um templo,
bailam com o imprevisível,
giram com a eternidade.
E eu, imerso no plausível,
tento abrir o impermeável
véu dessa totalidade.


(Se um prius alberga os saberes,
cadê a clave da origem
cognoscível dos seres?)

***

Do umbral de minha janela
ouço luzirem estrelas
há anos-luz, como Deus,
na Sua hermética auréola.
E me inquieto, por vê-las
inacessíveis, mas belas.

***


Eurico
poema sem data
***
Fonte da img.:
thecorner.org/.../postcard/images/starsky.jpg

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