Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

terça-feira, junho 23, 2009

Reencontro com Pã (brincadeira poética ou arranjo fictício?)


Releitura em O Quarto, de Van Gogh




Calçar as velhas pantufas de couro de cabrito, era só o que eu queria ao chegar em casa. Eram eles, os chinelos velhos, o meu vínculo comigo. A certeza de não estar fora da órbita normal dos fatos cotidianos.

Li, outro dia, nem sei mais onde, que Rembrandt contornava com uma auréola, como a dos santos, pequenos objetos de seus quadros:

Um gato,
Um cachimbo,
Um par de botas.

Mesmo nos quadros mais solenes, nas paisagens mais majestosas, algo considerado banal recebia um, como que, fanal, a iluminar a peça, de modo que, antes insignificante, comum ou trivial, projetava-se, agora, a coisa aureolada, de encontro ao observador, como a lhe dizer:

Cá estou eu!
Humilde objeto, mas com reverberações em tua alma.
Fincar-me-ei no teu inconsciente.
Eu, oculto morador das tuas sombras,
coisa latente, venho à superfície,
para fazer-te estranhar o que te é familiar.

Enfim, depois de tantas desventuras, na velha estrada de meus ancestrais, cheguei em casa. Corri pros meus chinelos! Cansado da estrada carroçável, dos enguiços de motor, das maçadas. Ufa! Os pés sentiam falta do conforto das pantufas.

Abro a janela, por onde entra a aragem do nordeste; então escuto um assovio estranho, enigmático. Lembra-me a voz de uma flauta de caniços. Talvez, o silvo de um fauno, brinco com meus botões. Deve ser coisa da ventania, penso eu, enquanto procuro, tateando sob a cama, as minhas pantufas. No entanto, um troço duro feito uma ferradura, é o que sinto na ponta dos dedos. Olho para os meus pés e um calafrio me sacode.

Lá fora, o solo de pífaros da ventania continua.
Um arrepio me vai atravessando a espinha.

Olho outra vez pra baixo, entre receoso e intrigado, e vejo, como saída de um quadro de Rembrandt, uma auréola azulada a envolver meus velhos chinelos, ora transformados, só Deus sabe como, em dois bizarros pés de bode. (rsrsrs)

























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Nota:
Só um fauno, pra me fazer publicar essas minhas brincadeiras infantis... rsrsrs

Releia o miniconto, ouvindo Prelude L'Apres-Midi D'Un Faune, de Debussy:




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Fonte da imagem:
Releitura de "O Quarto" de Van Gogh








4 comentários:

Éverton Vidal disse...

Que texto sensacional! Sim, sensacional, não estou repetindo clichês.
Gostei bastante. Percebi que faço o memso, não com pantufas de couro de cabrito (que de repente transformam-se em dois bizaroos pés de bode rs) mas com outros objetos do meu cotidiano (incluindo um violão boliviano pra lá de velho rs).

lula eurico disse...

Grato, Éverton. Essa brincadeira me preoucupou, pois os supersticiosos toma Pã como o diabo bíblico. Isso é um equívoco. E eu ando a brincar com esses medos, que se parecem com os nossos curupiras, boitatás, etc. Fico feliz que vc gostou desse texto em prosa, não usual aqui no Eu-lírico.

Grato, mesmo.

Rejane Martins disse...

Publique-se Eurico! Publique-se sempre! Há gente no mundo a encantar-se com teus ditos, com tua sensibilidade, hoje-amanhã-e-depois. Teus versos mudam o tempo, mudam a percepção dele e da vida como um todo.
Acho que nunca vou cansar de te agradecer.

Rejane Martins disse...

Sim! Somamos, somaremos! ...E não é por nada, Eurico, é por um avançar em termos de humanidade, de percepção de um quase-todo.
Essa sensação de estar somando por algo maior... isso é o que tu trazes. E agradeço tua IMENSA sensibilidade ao agregar Debussy desta maneira, aqui, num acudir com presteza.
O texto e a versão de L'Apres-Midi D'Un Faune são - pro suposto de quem vem primeiro: o ovo ou a ave - o ninho.