Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sexta-feira, novembro 26, 2010

Peso aos Habitantes dos Outeiros da Vila Real de São Sebastião, no Ano da Graça de 1993






















"Então disse eu: Melhor é a Sabedoria do que a Força,
ainda que a sabedoria do pobre é desprezada,
e as suas palavras não são ouvidas."
** ****** (Eclesiastes IX, 16)


Quando o mais frio dos monstros subir essas ladeiras,
criatura abstrata e furiosa,
escalando escadarias,
salpicando estrelas sanguíneas,
pelas escarpas de vossos temores;
rompendo os umbrais desses frágeis casulos,
cobertos de zinco e desonra;
quando isso ocorrer, sêde sábias serpentes:
olhai os vossos mortos distraídos
por saber que nos morros mal nutridos
é sempre relativo todo mal.


Quando roçarem vossos dorsos,
sibilantes foguetes,
cadentes projetis,
troando, zunindo, fulgindo,
rugindo, retumbantes,
nesse absurdo convívio entre estampidos e batuques,
um trom de artilheria em céus pirotécnicos,
tumulto e uma teratológica presença;
pisai os vossos corpos distraídos,
por saber que nos morros invadidos
é sempre relativo todo mal.

Acautelai-vos, ó gente esfarrapadamente feliz,
que as barreiras da história não tem arrimo,
que vossos gritos sumirão, inúteis, no olvido das gentes.
Cavai trincheiras nas fendas da alma, se há viva alma,
barricadas ao monstro nietzcheano,
barricadas de silêncio e dor.

Que tendes com essa guerra dos titãs?
Cá desse lugar distante vos contemplo,
(de minha escrivania no Planeta dos Macacos)
cúmplice de vossas cavilações ladinas,
arrastões, pequenos lances,

dribles garrinchas na fome e na miséria,
astúcias de quem vive no espaço desse avêsso:
esses casebres vergados à beira do abismo,

taturanas de anônimas latas no chafariz,
bordas amassadas de marmitas vazias.



Quando o mais frio dos monstros chegar
buscai de Deus as linhas tortas,
ó cidadãos dos outeiros da Vila Real de São Sebastião!
Enquanto não sobe as ladeiras o anjo destruidor,

girai roletas russas que a miséria envilece,
jogai os dados que a miséria afrouxa os laços.
Deixai que lutem os deuses do absurdo
e que seus cadáveres voltem ao Pó de onde vieram.
Quando esse monstro chegar guardai silencio,

guardai vossas crianças e segredos.


Lembrai do bom conselho, que vos dou, de graça:
pisai sobre os valores sem sentido,
por saber que nos morros esquecidos
é sempre relativo todo mal...

Eurico
1993
Pós escrito em 2010:
poema-vaticínio, escrito em 1993,
sobre a guerra civil que se anunciava nos morros e favelas das metrópoles brasileiras.

Fonte da imagem:
http://img46.imageshack.us/img46/2279/baianord7.jpg

quinta-feira, novembro 25, 2010

TERCEIRO OLHO (renascimento)



Hubble
imagem recolhida do Google


Ver não é apenas compilar
pontos desconexos, pixels,
varreduras de imagens por segundo.
Ninguém vê apenas com os olhos.
Esses mesmos olhos com que se está
à mesa da cozinha a cortar cebolas
e a chorar lágrimas sem nexo.
Ver vai além do apenas ver.
Interpreta-se assim que se olha,
se é cebola ou emoção,
o que arde nos olhos.
E o conceito já vem atado à coisa que se vê.
Por isso, acautelai-vos com o visual.

(Bom seria fechar os olhos por minutos
ou passar os dias longe dos televisores.
Há muito o que se ver na própria tela mental.)

Imaginem:
A Poesia é um imenso nascedouro de imagens.
Hubble às avessas.
Ôlho pra dentro.
Muito dentro,
em regiões abissais.
Dentro de mim,
o riso distraído e indene
de uma criança revolvendo a Terra.
A bola colorida e um pátio: o espaço.
Um poço com roldana.
Um olho que me olha no centro imemorial da noite.
A hera.
As eras.
Estrelas, lumes, vagalumes.
Lá no centro de mim
sou um buraco negro e aquático,
galáxia aprazível.
Esse colo estelar, ubérrimo,
irresistível.

(Voluteio, centrípeto,
pra dentro de Deus?)

Eis que a Poesia alberga esse invisível
fulcro numinoso

:

Mãe!
Sou eu, filho...

terça-feira, novembro 23, 2010

O Evangelho segundo Pessoa...



















(poema sem título, de Fernando Pessoa)



Ali não havia eletricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a "Primeira Epístola aos Coríntios".
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A "Primeira Epístola aos Coríntios" ...
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...
Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
"Se eu não tivesse a caridade."
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre...
"Se eu não tivesse a caridade..."
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade! ...




Fonte da imagem:
http://8e.img.v4.skyrock.net/8e8/priscilamachado/pics/1945701817_small_1.jpg

quarta-feira, novembro 17, 2010

HERESIAS nº4 (final)





Lutei.
A luta é vã
e eu rendido estou.
Tudo é permitido ao Amor.

Brindo às Bodas em Caná.
Deleitosa é a apostasia,
em que se erguem as taças.
Abandono-me ao Caminho,
profunda/mente livre,
dos heresiarcas.

Fonte da imagem:

segunda-feira, novembro 15, 2010

HERESIAS nº 3





Vencido está
quem de teu brilho sabe.
Tua força é madre
e em ti revive o orbe.
Trazes saltérios, flautas
e essa dança
num Reino governado por crianças:
És o Caminho
da vida em abundância.



***


Fonte da imagem:

HERESIAS nº 2




Avia-te, ó Bardo!

Estás na humilde trípode
e em ti se evocam as vozes femininas
dos arcanos celestes.

Não és mais teu.
E os orbitais
das cousas indizíveis
invadem-te as sinapses.


Avia-te!
E retoma o Caminho.






Fonte da imagem:

domingo, novembro 14, 2010

HERESIAS nº 1



Uma infinidade de justapostas (in)certezas
formam em minhalma um instável mosaico.

Mil ritos sufocam-me
e a profusão de verdades litúrgicas engessa-me a emoção.

...Sonho a liberdade de uma Samaria proscrita...


Já não temos poços, nem cântaros;
A brisa sopra onde quer.
Beberei das nuvens que escorrem
das Tuas Mãos em concha.

Retomo as minhas pegadas nesse oculto Caminho do Interior.







Imagem recolhida do Google.

segunda-feira, novembro 01, 2010

PELEJA

























Acender uma fogueira
Sobre os destroços da fúria:
Dizer o dom mais terrível
No tom da mais vil ternura.
Por monossílabos vastos
Cantar o avêsso, a feiúra.

Atravessar a existência,
Esse fado, essa caatinga,
Com a Língua ressecada
E o estio dentro da fala.

Domar a Onça suasssuna
Da Vida graciliana,
Inda que o peito lanhado
Pela palavra, cardeiro;
Pela palavra, essa morte.

Aboiar angustiado,
Rumor de vozes queimando:
Viver é ser renitente,
Acender uma fogueira
Sobre os destroços, os destroços,
(...ai, que légua tão tirana...)
sobre os destroços da fúria.



Luiz Eurico de Melo Neto
(3º Lugar no Salão Pernambucano de Poesia – 1994)


Fonte da Imagem:
Ruínas da Capela de Canudos

Nota do blogueiro:

A mesma República positivista, que via os nordestinos como uma sub-raça,
hoje é obrigada a repensar suas teses: o maior líder desse país é um sábio e valente nordestino, que traz no sangue a estirpe dos bravos, dos renitentes, dos que superam a escassez e a fome, dos que jamais desistem de sua peleja.

Essa postagem homenageia os nordestinos, que, por votação histórica, pelejaram contra os adversários do bem comum, como um dia lutamos em Canudos. Estamos refazendo os caminhos da história e "acendendo uma fogueira sobre os destroços da fúria."


Em tempo:
e para fazer justiça ao povo fluminense e mineiro, quase metade do povo de Sampa e do Rio Grande do Sul, e metade das demais regiões deste Brasil que votaram na primeira mulher presidenta; ao mesmo tempo abraçar os que votaram na oposição, por entender que somos uma só nação, fraterna, cordial, solidária (basta lembrar da ajuda aos desabrigados das enchentes do nordeste), por tudo isso quero saudar a democracia, a liberdade e a sabedoria de todos os que escolheram manter a atual política, que diminui os extremos, que distribui renda, que dá início à construção de um Brasil com mais igualdade entre as regiões, que é bom pra todos os brasileiros e brasileiras.