Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, dezembro 31, 2011

SONHOS - Kurosawa (trechos) por uma est/ética não-anquilosante




Não penses.
Que raio de mania essa de estares sempre a querer pensar.
Pensar é trocar uma flor por um silogismo,
um vivo por um morto.
Pensar é não ver.
Olha apenas, vê. Está um dia enorme de sol.
Talvez que de noite, acabou-se,
como diz o filósofo da ave de Minerva.
Mas não agora.
Há alegria bastante para se não pensar,
que é coisa sempre triste.
Olha, escuta.
Nas passagens de nível,
havia um aviso de «pare, escute, olhe»
com vistas ao atropelo dos comboios.
É o aviso que devia haver nestes dias magníficos de sol.
Olha a luz.
Escuta a alegria dos pássaros.
Não penses...

Vergílio Ferreira

quinta-feira, dezembro 29, 2011

NADIR (ou, zoom de areia)





 









 






e esse formigamento nos olhos
e esses pequeníssimos e inumeráveis ciscos
e esses mil diminutos pontos graníticos,
e esse nadir: o avesso de milhares de miúdas estrelas,
ora esse quartzo que lateja,
ora esses prismas em mica,
e esses quase- animálculos, minúsculos
e esses esporos, áporos, inanimados,
e esses poros na pele de tudo
e essas miríades de formas no caminho
e esses fragmentos rútilos à magma
e essas retinas afadigadas
e essa sensação quase imperceptível
de rocha desagregada em sal, no solo,
nos solados ....................................................




Claude Debussy - Crepúsculo:



Fonte da imagem:
 Salinas de Uyuni

quarta-feira, dezembro 28, 2011

JAZZ EM KALDERASH

Imagem Google




















Os povos ágrafos instalam-se na sala
e criam os novos tons da nova fala.
Não mais verbetes, mas, balbucios em torvelinho
pois todo o léxico se esvaiu sobre um desvio...
No vão,
um velho-
mundo desfilia-se.
Nasce a contra/dicção;
Instaura-se uma nova i-lógica.
Cada sentido,
todo o sentido, percebe-se por música,
síncope, calafrio.
Exato agora é o tufão.

Os zíngaros sopram pífaros
e os romanis em circos
inventam novo chão
de lona,
provisório, movediço
e cada passo é falso
é mais um precipício, um início, um indício.

A aurora invade a tela.
É a primavera!
:
beduininhos, crianças gipsy, infantas dançarinas lusas, pivetes roms, childrens sioux, apaches, manuches, romanichéis, curumins tapuias, fulniôs, calons, ciganinhos judeus, negrinhos bantus, bororos, bambinas zíngaras, neo-moicanos, pastorinhas celtas, niñas bailarinas de Córdoba, de Granada, filhos de candangos, caipirinhas das Gerais, matutinhos paus-de-arara, os nordestinos... os meninos palestinos, todos dançando em círculos. É a primavera!

Eterno-ritornelo
eis o renovo,
o drão contra o dragão
o que se insurge e faz
da morta-natureza, a viva,
a que se salva, essa que jazz
e muda e se con/trai,
e vibra em bela língua,
candente, rediviva, aqui, ali, alhures,
essa língua que vlax, que não-vlax
que vive onde se esvai...



Nota do blogueiro:
(vaticínio em vísceras de galos sírios)rsrsrs

Dedicado ao poeta-amigo-irmão Waldomiro Ribeiro,
que de ribeiro só tem o sobrenome,
pois o que Miro nele é um imenso e caudaloso rio,
com cachoeiras e correntezas, com nascentes e estuários...
Abraço fraterno, Waldomiro!

Spanish Guitar - Flamenco - Al di Meola, Paco de Lucia, John McLaughlin - Jazz Latin Instrumental:


terça-feira, dezembro 27, 2011

NÚPCIAS em MERKWELT



















...o cheiro doce desse verdazul
flores do sul...
amor de aroma, imenso pomo, soma
favos e nuvem
sabor antigo, frutose e trigo
patas d’orquídea - caules de vespa

tons e afetos
a desbotada cor da sebe à sombra
o instante, o circunstante
o mundo circundante
biopoiético

delícia em eco:
um mundo-uexküll

o mel ...um nexo.






Fonte da imagem:
Nomadologia


Claude Debussy (piano) - Arabesque No.1:





Nota a esta écloga:
(agenciamento lírico em Deleuze-Uexküll) rsrsrs

segunda-feira, dezembro 26, 2011

GINETE (devir-agalopado)


Ao fundo: Paso Doble - Mantovani





eu não invento
um arte-
fato; estou 
no próprio arte-
fato
que (se) constrói
tritura
mói
rumina
depois, atiça
cospe, vomita;
estou na Liça,
isso-que-avança,
ginete e lança
guerra gregária
sou luta e dança
bellum sine bello
guerra sem guerra
em lances belos;
desejo, anelo
que se projeta
que se reinventa
sou esse estado
de sobressalto
nessa intra-estrada entre-
aberta,
cavalgo em alerta!
e enquanto troto
eu me desloco
e aloco vozes, eus
antevisões
convoco
forças plurais
pulsões
e invoco d’eus E
povoo o espaço
com multidões
faço e disfarço
forço o desforço
por todo lado
esses mil lados
esses meus lados
e em fuga, invado
a terra ao lado
uma outra terra
não mais agrária
terra não-terra
disforme e vária
e me desloco
(belo, sim, belo!)
feito um martelo-
agalopado
em campo aberto
por esse estro
lócus incerto/devir-cavalo
cruzo o deserto
cruzo, acasalo
re(po)-
voando...





Fonte da img:

sábado, dezembro 24, 2011

UMWELT (poema-conceito)


















Solar Voyage IV - Tangerine Dream Jean Michel Jarre:
(tentando fugir do feérico ritornello das músicas natalinas...)






“Um dia terá que ser admitido oficialmente que o que temos batizado realidade é uma ilusão ainda maior do que o mundo dos sonhos.” (Salvador Dali)




Cada olho, ventre,
cada olho, verte-se
cada olho in/verte
Cada olho:
Um vórtice,
toda impossível luz.


Ponto, linha, ponto.
Dobra, curva, canto
níveis superpostos:
esse plano e o espanto.


Cada olho, v/entre
cada olho, a/gente.
Cada olho:
Umwelt,
d'eus em vertiginosa luz.




Fonte da imagem:

quinta-feira, dezembro 22, 2011

CAMPO MINADO















Passeiam, plácidos,
cordatos semantemas,
e há um relvado remanescente (das serras).
O horizonte, curvo e calvo.
O tempo se inclina em cerca viva.

Tudo (e nada) mera perspectiva.


Serpeiam flácidos fonemas
na pedra, ou por entre
o que há de arborescente.
O limo aqui leva a um di/lema:

Não há qualquer rota de fuga.

O Mundo,
Ó Ra(imundo)
não está raso ou profundo.
Está na rima.
E a noite ainda planta minas
sob as gramíneas...




Fonte da img:
http://farm2.static.flickr.com/1057/751121752_2b0a902c78.jpg

Mercedes Sosa - Como la Cigarra: (gracias, Rejane Martins)

terça-feira, dezembro 13, 2011

DO ESCRITOR (Deleuze, em A de Animal)

























"(...) O que me fascina no animal? Meu ódio por certos animais é nutrido por meu fascínio por muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca em um animal, a primeira coisa é que todo animal tem um mundo. É curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm mundos. Um mundo animal, às vezes, é extraordinariamente restrito e é isso que emociona. Os animais reagem a muito pouca coisa. Há toda espécie de coisas...

Essa história, esse primeiro traço do animal é a existência de mundos animais específicos, particulares, e talvez seja a pobreza desses mundos, a redução, o caráter reduzido desses mundos que me impressiona muito. Por exemplo, falamos, há pouco, de animais como o carrapato. O carrapato responde ou reage a três coisas, três excitantes, um só ponto, em uma natureza imensa, três excitantes, um ponto, é só. Ele tende para a extremidade de um galho de árvore, atraído pela luz, ele pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbívoro, um bicho passe sob o galho, e então ele se deixa cair, aí é uma espécie de excitante olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este é o segundo excitante, luz, e depois odor, e então, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a região com menos pêlos, um excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele não dá a mínima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona três coisas.

CP: É este seu sonho de vida? É isso que lhe interessa nos animais?

GD: É isso que faz um mundo.

CP: Daí sua relação animal-escrita. O escritor, para você, é, também, alguém que tem um mundo?

GD: Não sei, porque há outros aspectos, não basta ter um mundo para ser um animal. O que me fascina completamente são as questões de território e acho que Félix e eu criamos um conceito que se pode dizer que é filosófico, com a idéia de território. Os animais de território, há animais sem território, mas os animais de território são prodigiosos, porque constituir um território, para mim, é quase o nascimento da arte. Quando vemos como um animal marca seu território, todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as histórias de glândulas anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu território. O que intervém na marcação é, também, uma série de posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de cores, os macacos, por exemplo, as cores das nádegas dos macacos, que eles manifestam na fronteira do território... Cor, canto, postura, são as três determinações da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas animais são, às vezes, verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. É a arte em estado puro. E, então, eu me digo, quando eles saem de seu território ou quando voltam para ele, seu comportamento... O território é o domínio do ter. É curioso que seja no ter, isto é, minhas propriedades, minhas propriedades à maneira de Beckett ou de Michaux. O território são as propriedades do animal, e sair do território é se aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge, o reconhecem no território, mas não fora dele.

CP: Quais?

GD: É uma maravilha. Não sei mais que pássaro, tem de acreditar em mim. E então, com Félix, saio do animal, coloco, de imediato, um problema filosófico, porque... misturamos um pouco de tudo no abecedário. Digo para mim, criticam os filósofos por criarem palavras bárbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por determinadas razões, faço questão de refletir sobre essa noção de território. E o território só vale em relação a um movimento através do qual se sai dele. É preciso reunir isso. Preciso de uma palavra, aparentemente bárbara. Então, Félix e eu construímos um conceito de que gosto muito, o de desterritorialização. Sobre isso nos dizem: é uma palavra dura, e o que quer dizer, qual a necessidade disso? Aqui, um conceito filosófico só pode ser designado por uma palavra que ainda não existe. Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras línguas. Por exemplo, depois percebi que em Melville, sempre aparecia a palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio mal, você corrige, outlandish é, exatamente, o desterritorializado. Palavra por palavra. Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos animais, para a filosofia é surpreendente. Precisamos, às vezes, inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte. Tudo isso acontece nos animais. É isso que me fascina, todo o domínio dos signos. Os animais emitem signos, não param de emitir signos, produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo, uma aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela reage a signos. E eles produzem signos, por exemplo, os famosos signos... Isso é um signo de lobo? É um lobo ou outra coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caçadores, não os de sociedades de caça, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por ali, aí eles são animais, têm, com o animal, uma relação animal. É isso ter uma relação animal com o animal. É formidável.

CP: É essa emissão de signos, essa recepção de signos que aproxima o animal da escrita e do escritor?

GD: É. Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.

CP: Como o escritor?

GD: O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É evidente que estamos à espreita. O animal é... observe as orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranqüilo.

Ele come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, se acontece algo atrás dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita. Você faz a aproximação entre o escritor e o animal.

CP: Você a fez antes de mim.

GD: É verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os leitores, ou seja, "para uso de", "dirigido a". Um escritor escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor também escreve pelos não-leitores, ou seja, "no lugar de" e não "para uso de". Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de". Artaud escreveu páginas que todo mundo conhece. "Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas". Faulkner escreve pelos idiotas. Ou seja, não para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam, mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. "Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos". O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa dessas? "Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos". É isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando se escreve, não se trata de história privada. São realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade literária de todos as épocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua história de amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...

CP: É escrever "para" e "pelo", ou seja, "para uso de" e "no lugar de". É o que disse em Mil platôs, sobre Chandos e Hofmannsthal: "O escritor é um bruxo, pois vive o animal como a única população frente à qual é responsável".

GD: É isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem simples. Não é uma declaração literária a que você leu de Hofmannsthal. É outra coisa. Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que separa a linguagem do silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música, que separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso.

CP: Mas de jeito algum o latido?

GD: Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um escritor que conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka é A metamorfose, o gerente que grita: "Ouviram, parece um animal". Piar doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. Não são os homens que sabem morrer, são os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como bichos. Aí voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vários gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja, vi o que muita gente também viu, como um bicho procura um canto para morrer. Há um território para a morte também, há uma procura do território da morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava se enfiar em um canto, como se para ele fosse o lugar certo para morrer. Nesse sentido, se o escritor é alguém que força a linguagem até um limite, limite que separa a linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se então dizer que o escritor é responsável pelos animais que morrem, e ser responsável pelos animais que morrem, responder por eles... escrever não para eles, não vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem é levar a linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito humano, há relações animais com o animal. Seria bom se terminássemos com o A...(...)"



Fonte do texto:
O ESTRANGEIRO: Abecedário de Deleuze - compilação de entrevistas em vídeo.


Imagem:
Aranha Saltadora

segunda-feira, dezembro 12, 2011

SOBRE O DÉSIR (Deleuze e Guattari)





“(..)Queríamos dizer uma coisa bem simples. Tínhamos uma grande ambição, a saber, que até esse livro ( O Anti-Édipo), quando se faz um livro é porque se pretende dizer algo novo. Achávamos que as pessoas antes de nós não tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa tarefa de filósofo, pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas, quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não remeta a determinações não filosóficas, é simples, é bem concreto. Queríamos dizer a coisa mais simples do mundo: que até agora vocês falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que é, supostamente, objeto de seu desejo. Então podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e aquilo. E nós dizíamos algo realmente simples: vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto. Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há pouco sobre o álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. Não há desejo que não corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol…

CP: De uma mulher.

GD: De uma rua. É isso. O agenciamento de uma mulher, de uma paisagem.

CP: De uma cor…

GD: De uma cor, é isso um desejo. É construir um agenciamento, construir uma região, é realmente agenciar. O desejo é construtivismo. O anti-Édipo, que tentava…

CP: Espere, eu queria…

GD: Sim?

CP: É por ser um agenciamento, que você precisou, naquele momento, ser dois para escrever por ser em um conjunto, que precisou de Félix, que surgiu em sua vida de escritor?

GD: Félix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a relação da filosofia com algo que concerne à amizade, mas, com certeza, com Félix, fizemos um agenciamento. Há agenciamentos solitários, e há agenciamentos a dois. O que fizemos com Félix foi um agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, são fenômenos físicos, é como uma diferença, para que um acontecimento aconteça, é preciso uma diferença de potencial, para que haja uma diferença de potencial precisa-se de dois níveis. Então algo se passa, um raio passa, ou não, um riachinho… É do campo do desejo. Mas um desejo é isso, é construir. Ora, cada um de nós passa seu tempo construindo, cada vez que alguém diz: desejo isso, quer dizer que ele está construindo um agenciamento, nada mais, o desejo não é nada mais.

(…)

In: Gilles Deleuze em entrevista a Claire Parnet, em 2005, sobre sua obra e parceria com Félix Guattari.

Fonte do texto:
Definição de Desejo (Deleuze)
Para ler a entrevista na íntegra, (vale a pena) clique aqui.
Ou, em O ESTRANGEIRO

sábado, dezembro 10, 2011

DÉSIR




















Estar...
Uma imperceptível corda
alçada sobre nonada,
de que se evola um tênue arpejo,
indefinível coma,
em que antevejo
(isso que assoma)
o imponderável drama,
entre o instante e o ensejo
:
Estou esse desejo...




Fonte da imagem:
FORA DE MIM


Curtindo Time - Pink Floid


quinta-feira, dezembro 08, 2011

LINHA DE FUGA (ou, notas para uma poética não-anquilosante)

“As nossas convicções mais arraigadas, mais indubitáveis, são as mais suspeitas.
Constituem o nosso limite, os nossos confins, a nossa prisão.
Pouca coisa será a vida
se nela não arfar um esforço formidável
de alargamento das suas fronteiras.
Vivemos na proporção em que ansiamos por viver mais.
Toda a obstinação que procura manter-nos
no interior do nosso horizonte habitual
significa debilidade, decadência das energias vitais.
O horizonte é uma linha biológica, um órgão vivo do nosso ser;
enquanto gozamos de plenitude,
o horizonte emigra, dilata-se, ondula, elástico,
quase ao compasso da nossa respiração.
Em contrapartida, quando o horizonte se fixa,
é porque se anquilosou e nós entramos na velhice.”


...................................................Ortega y Gasset











quarta-feira, dezembro 07, 2011

DO MÉTODO (para uma gnosiologia do sensível)

















O vento sobre o molhe extenso...
Algo revolto.
O vento...


Sentir?
Pensar?


Os olhos sabem a luz.
Plurais ou azuis;
Os pés, dois aprendizes na areia.
E esse descompassado palpitar.


Intensidade?
Imensidão?


Caminhar.
Isso clareia, coração.
Mas cada passo é um mar.



fonte da img:
ARARÊ


Debussy: Dialogue du Vent et Mer

segunda-feira, dezembro 05, 2011

DA ÓTICA (para uma teorética do sensível)






















Quando um poeta diz
bonina
diz/simulando,  apenas,
esse mundo sensível,
em que habita
dos olhos a menina.

Seria a poesia
a mera luz sobre a retina?

Quando um poeta diz
grená
e o som acaba
de brotar,
bruto,
dos lábios,
trata-se do inútil traduzir
o que há
nos pequeninos vasos
que irrigam isso que se chama
olhar...

Poesia é só o sangue a/tingindo um capilar?

Quando um poeta diz
magenta
eis que algo na massa cinzenta,
talvez um nervo-estético,
acorda em nós,
uma voz num vão secreto:
é a genetriz da cor,
a mãe,
a cor-da-cor...

Poesia
é só o ser sensível
que transborda e
acorda?

[Acorda]


Fonte da imagem:
Os nomes e as cores
Scienceblogs.com.br

domingo, dezembro 04, 2011

DE LÍRICA (para uma metafísica do sensível)





















Subindo para o geral, sem jamais se desprender do ponto de partida, a ascensão metafísica é similar ao papagaio de papel a subir sempre mais sem desprender-se do cordel de quem o puxa; somente sobe porque está preso à terra. O metafísico, homem pequenino a puxar pelo cordel de suas idéias, atira o seu pensamento para as alturas; com as idéias intencionalmente nas nuvens, subirá sempre mais, à medida que der impulso a partir dos dados primitivos de sua própria metafísica.
(Evaldo Pauli)



Luzeiros na noite escura.
A chuva em que viça a flora.
Deliciar-se em doçura.
A tua presença agora.
Súbita flor na planura.
Uma ária ao romper da aurora...

Pobres dos que não os percebem!

Antes, os bêbados,
os clowns,
os birutas,
os poetas...
(Todos os que não padecem
da abulia que acomete
os normais e os exegetas.)

Mas, o que é isso, de fato?
Isso, indizível, mas, evidente,
que, vez em quando,
invade, lírica, a mente?

Flor, luzeiros,
chuva, aurora,
viço, doçura, presença...

Brilha nisso, simplesmente,
um indício in/ato,
de certa instância:
a estesia.
Pulsa um Ser, em entreato,
pulcro e abstrato:
A poesia.



Villa Lobos, Bachiana nº 5, Amel Brahim:


 
Fonte da imagem:
DELÍRICA

sábado, dezembro 03, 2011

BALADA PARA UM LOUCO






Num dia desses ou, numa noite dessas
você sai pela sua rua ou, pela sua cidade ou,
ou, sei lá, pela sua vida, quando, de repente,
por detrás de uma árvore, apareço eu!!!

Mescla rara de penúltimo mendigo
e primeiro astronauta a pôr os pés em Vênus.
Meia melancia na cabeça, uma grossa meia sola em cada pé,
as flores da camisa desenhadas na própria pele
e uma bandeirinha de táxi-livre em cada mão.
Ah! ah! ah! Você ri... você ri porque só agora você me viu.

Mas eu flerto com os manequins,
o semáforo da esquina me abre três luzes celestes.
E as rosas da florista estão apaixonadas por mim, juro,
vem, vem, vamos passear.
E assim meio dançando, quase voando eu
te ofereço uma bandeirinha e te digo:


Já sei que já não sou, passei, passou.
A lua nos espera nessa rua é só tentar.
E um coro de astronautas, de anjos e crianças
bailando ao meu redor, te chama:
vem voar.

Já sei que já não sou, passei, passou.
Eu venho das calçadas que o tempo não guardou.
E vendo-te tão triste, te pergunto: O que te falta?
...talvez chegar ao sol, pois eu te levarei.
Ah! Ah! Ah! Ah!

Louco, louco, louco! Foi o que me disseram
quando disse que te amei.
Mas naveguei as águas puras dos teus olhos
e com versos tão antigos, eu quebrei teu coração.
Ah! Ah! Ah! Ah!

Louco, louco, louco, louco, louco!
Como um acrobata demente saltarei
dentro do abismo do teu beijo até sentir
que enlouqueci teu coração, e de tão livre, chorarei.


Vem voar comigo querida minha,
entra na minha ilusão super-esporte,
vamos correr pelos telhados com uma andorinha no motor.
Ah! Ah! Ah!

Do Vietnã nos aplaudem:
Viva! viva os loucos que inventaram o amor!
E um anjo, o soldado e uma criança repetem a ciranda
que eu já esqueci...
Vem, eu te ofereço a multidão, rostos brilhando, sorrisos brincando.
Que sou eu? sei lá, um... um tonto, um santo, ou um canto a meia voz.


Já sei que já não sou, nem sei quem sou.
Abraça essa ternura de louco que há em mim.
Derrete com teu beijo a pena de viver.
Angústias, nunca mais!!! Voar, enfim, voaaaarrr!!!

Ama-me como eu sou, passei, passou.
Sepulta os teus amores vamos fugir, buscar,
numa corrida louca o instante que passou,
em busca do que foi, voar, enfim, voaaaarrr!!!
Ah! Ah! Ah! Ah!...

Viva! viva os loucos!!!
Viva! viva os loucos que inventaram o amor!
Viva! viva! viva!



Composição: Astor Piazzolla / Horacio Ferrer
Versão - Moacyr Franco

quarta-feira, novembro 30, 2011

PROF. BARKOKEBAS, UM ANTÍSTITE


Ginásio Pernambucano, um monumento às margens do Capibaribe.



















O maestro Miguel Barkokebas era um mestre exigente, como de resto eram todos os do Ginásio Pernambucano. Confesso que não estava na lista dos que eu mais me lembrava, dentre tantos professores "catedráticos" daquele centro de excelência em educação. As estrelas eram Hilton Sette, José Brasileiro Vilanova, Cláudio Estelita, entre outros. Mas, dia desses, pesquisando sobre antigas agremiações carnavalescas do Recife, encontrei uma paixão que nos aproxima. O nosso querido mestre, como eu, também era um aficcionado dos blocos líricos. Compositor de hinos sacros para a Igreja do Rosário, no Bairro da Torre, ele não resistiu ao lirismo do Bloco Apois Fum, e dedicou-lhe a marcha "Esse Bloco é Meu". (vide João Montarroyos,  Bloco Apois Fum: O lirismo e a ousadia de Momo).

Mas, o que tem a ver essa reflexão com poesia, que é o motivo principal deste blogue?
Tem tudo. Tudo a ver com a poesia e com as palavras.

Durante as animadas aulas de canto orfeonico, o prof. Barkokebas nos ensinava, como era de praxe naqueles anos de chumbo, todos os hinos pátrios, com aqueles versos solenes, quase sempre com sujeito posposto e recheados de palavras arcaicas. É claro que entremeava aos hinos cívicos, as suas modinhas e canções, sendo a que mais gostávamos, o dobrado Pindorama , com uma sequência em tons graves demais para nossas vozinhas infantis:

"Sou Tabajara nessa terra de Tupã
que tem arara, papagaio, maracanã
Eu tenho o céu, tenho os pássaros do céu
que mos deu foi Tupã,  foi Tupã, foi Tupã..."


Sem esquecer da sua obra prima, o belíssimo hino dedicado ao Ginásio Pernambucano. Era na letra desse hino que estava, muito bem encaixada, apesar de proparoxítona e no fim de um fraseado musical, cheio de fusas e semifusas, a palavra antístite. Cantávamos de cor, o Hino do GP, num coral de fedelhos na faixa dos 12 ou 13 anos. Alguns se entreolhavam, com algum pasmo, ao solfejarmos aquela frase de difícil dicção, que dizia, mutatis mutandis:

"Ginásio Pernambucano (...)
por ti passaram Presidentes e Antístites"


Antístite: essa palavrinha misteriosa me acompanha até hoje, perfeitamente acoplada à sua frase musical. O mestre, que nos fazia repetir a melodia até a exaustão, também está em mim e na minha poesia. Ao engastar aquela proparoxítona, incomum e arcaica, no hino do colégio, ele sutilmente me ensinava a compor. Ritmo, sílabas tonicas, síncopes frasais, melodia... tudo estava inserido nessa frase musical que hoje emerge do fundo do meu subconsciente, ou, como diz o Caetano, do fundo dessa "força estranha que me leva a cantar" e que me fez compositor e letrista, desde os 16 anos, e, de lambuja, também me despertou a Poesia. Eis a força de um educador!

Salve o mestre Miguel Barkokebas, um verdadeiro antístite! Grato pelos duros carões que nos passava, quando errávamos a pronúncia daquela célebre frase do Hino do Ginásio Pernambucano. Serei teu eterno aprendiz!
Evoé, Mestre!























Miguel Barkokebas, pianista, mestre de música do Ginásio Pernambucano, Colégio Salesiano e outros educandários do Recife.
Nasceu no Rio de Janeiro, em 22 de maio de 1902, sendo filho de turcos, Ali e Rosa Barkokebas.
Radicado desde a juventude no Recife, fez toda sua vida no magistério nesta cidade, onde deixou uma família de doze filhos, 54 netos e três bisnetos, quando seu falecimento, em 14 de agosto de 1978, no bairro da Torre, onde sempre morou.
Compôs para canto coral e, muito especialmente, para um repertório de música religiosa, que ele todos os domingos apresentava na missa das 9 horas na igreja de Nossa Senhora do Rosário da Torre.
É autor de verdadeiras jóias da música sacra - Achei Jesus; Bendito seja o santuário; É todo meu -, mas não resistiu ao apelo do Bloco Apôis Fum e, sob o pseudônimo de João sem nome, compôs Esse bloco é meu, além  de outras composições no mesmo gênero.


Fonte : História Social dos Blocos Carnavalescos do Recife, Leonardo Dantas Silva, 1998.


Fonte da imagem:
http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Miguel+Barkokebas<r=m&id_perso=1930

Imagem do Ginásio Pernambucano (atual):
http://sp5.fotolog.com/photo/37/3/50/recife/1207975454_f.jpg


Etimologia:
Antístite: do latim Antistes, "chefe, o principal"; ou, ainda, do latim Antius, "o que está na vanguarda.
OBS.: no trecho do Hino do Ginásio, acima citado, significa  chefe eclesiástico, pontífice.
Fonte: Revista eletronica PUCRS

segunda-feira, novembro 28, 2011

AVES HERMÉTICAS (da leitura dos motes e das coisas)



Essas palavras apenas vozeiam,
distraídos bandos sintáticos,
por pura obediência
às leis do ritmo e da contigüidade.
Nada pretendem dizer além do vôo.
Não fazem metáfora, nem mistério.
Vozeiam, simplesmente.

Mas eu as persigo
como um gavião faminto
persegue a sua presa
para renovar a (minha) vida...

Inútil,
esse (meu) desesperado afã de compreensão:
Herméticos, (as coisas, os motes),
milhanos, num vórtice,
devoram-me...



Fonte da imagem:
Aves atacam predador


Sounds of Nature - Forest Piano:

domingo, novembro 27, 2011

Mais um excerto do Livro do Desassossego



Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.
Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.
Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?



s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

- 85.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
índice •

Fonte do texto:
http://arquivopessoa.net/textos/2206
Nota do blogueiro: o padrão ortográfico é do sítio original.

E oiçam mais um fado da Mariza: Vielas da Alfama.

sábado, novembro 26, 2011

LIVRO DO DESASSOSSEGO (excerto)



Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito. E acho que tudo é nulo e mais valera que eu o não houvesse feito. As coisas conseguidas, sejam impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela pior parte das coisas reais, que é o sabermos que são perecíveis. Não é isto, porém, que sinto e me dói no que fiz, nestes lentos momentos em que o releio. O que me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo.
Tudo quanto buscamos, buscamo-lo por uma ambição, mas essa ambição ou não se atinge, e somos pobres, ou julgamos que a atingimos, e somos loucos ricos.
O que me dói é que o melhor é mau, e que outro, se o houvesse, e que eu sonho, o haveria feito melhor. Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensámos em fazer. Desdiz não só da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só à regra do que deveria ser, senão à regra do que julgávamos que poderia ser. Somos ocos não só por dentro, senão também por fora, párias da antecipação e da promessa.
Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irónico me julguei poeta da minha prosa, no momento alado em que ela me nascia, mais rápida que os movimentos da pena, como um desforço falaz aos insultos da vida! E afinal, hoje, relendo, vejo rebentar meus bonecos, sair-lhes a palha pelos rasgos, despejarem-se sem ter sido...

Bernardo Soares


s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
- 321.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

Fonte do texto:
http://arquivopessoa.net/textos/1689

Ao fundo ouve-se algo como "O Deserto" - Mariza (in: Fado Curvo)

domingo, novembro 13, 2011

d'AS COUSAS (e d'Os Motes)




se há poesia
em buscar vozes ao dicionário?
se há beleza em formar cores na paleta?
se na pedra já habita a forma inata?
Quem sabe...
Mas todas essas cousas
mesmo as que em desuso emergem
as mais obsoletas
querem um lugar ao sol
e mostram suas faces ávidas
essas cousas assim despercebidas
esse vaso vazio
essa cousa pressentida
essa idéia de vida
o poeta escava fundo e também lavra
essa palavra...




Eurico
Poema dedicado a alguém que me questionou sobre certas palavras
arcaicas em meus poemas.
Não são palavras, são cousas vivas, evidentes e presentes. Antigo é o sentido que se lhes dava.  rsrsrs

sexta-feira, outubro 21, 2011

Tijolinho (in memoriam)




















I
Desci a ponte apressado,
perdi o bonde das cinco.
Volto pávido pra casa.
Mas não perdi a esperança.

II
Sei que os gatunos já espreitam
na Estreita do Rosário,
Os bêbados
Os operários
que jogam com palitinhos.
Aqui se dorme cedinho.

III
Conheci um motorneiro
cujo nome, Tijolinho,
sempre me cai na cabeça.
Meu pai, dizia: não desça,
antes de Tejipió.
Primeira vez, eu, no bonde,
andei só.

IV
O bonde aberto do lado.
Eu fora, dependurado,
com o guarda-chuva na mão.
Eu, de volta.
Eu, cansado.
Eu, eus, múltiplo, multiplicado.
Mil rostos,
mil e um pecados.

V
Eu, do Recife,
eu do umbigo mundo.
Eu, tão ambíguo, no mundo.
Vrrrummm! no bonde, um giramundos!

VI
Fui consultar u'a vidente.
Queria ver meu passado.
Meus trilhos. A ubiquidade;
Eu, tríbio.
Eu, sem idade.

VII
Num bonde andei.
Mas brincava sobre uma placa flutuante.
Um bonde é antes brincante,
f(l)ui, passageiro,
Eu passei...



Viagem poética, criada a partir de uma viagem real,
que fez o meu pai, Elias Eurico de Melo.
Meu velho, 86 aninhos, me conta seus causos d'infância,
nesses dias frios de 2010 em que, juntos, cuidamos
dos nossos corpos (e almas), alquebrados, mas serenos.


Fonte da Imagem:
Bonde de Tejipió
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1112501


Nota do blogueiro:
A reedição dessa postagem é em memória
do Sr.Elias Eurico de Melo  (31/08/1924 - 17/10/2011),
meu querido paizinho, que nos deixou saudosos.
Ao fundo, Taiguara - O Velho e o Novo:


Deixa o velho em paz
Com as suas histórias de um tempo bom
Quanto bem lhe faz
Murmurar memórias num mesmo tom


A sua cantiga, revive a vida
Que já se esvai
Uma velha amiga, outra velha intriga
E um dia a mais


Vão nascendo as rugas
Morrendo as fugas a as ilusões
Tateando as pregas
Se deixa entregue às recordações


Em seu dorso farto
Carrega o fardo de caracol
Mas espera atento
Que o céu cinzento lhe traga o sol


Ele sabe o mundo
O saber profundo de quem se vai
O que não faria
Pudesse um dia voltar atrás


Range o velho barco
Lamento amargo do que não fez
E o futuro espelha
Esse mesmo velho que são vocês


quarta-feira, outubro 12, 2011

QUE AS CRIANÇAS CANTEM LIVRES!


Crianças de Gaza olham por buracos em muro.















O tempo passa e atravessa as avenidas

E o fruto cresce, pesa e enverga o velho pé
E o vento forte quebra as telhas e vidraças
E o livro sábio deixa em branco o que não é


Pode não ser essa mulher o que te falta
Pode não ser esse calor o que faz mal
Pode não ser essa gravata o que sufoca
Ou essa falta de dinheiro o que é fatal


Vê como um fogo brando funde um ferro duro
Vê como o asfalto é teu jardim se você crê
Que há um sol nascente avermelhando o céu escuro
Chamando os homens pro seu tempo de viver


E que as crianças cantem livres sobre os muros
E ensinem sonho ao que não soube amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro
Que não dormiu e preparou o amanhecer...




Tinha eu 16 anos, quando ouvi essa canção pela primeira vez.
Estávamos em plena ditadura. Taiguara, sem perder a ternura,
já me ensinava que o lirismo pode ser contestador. Ouçam:


Taiguara ao piano - 1973

terça-feira, setembro 27, 2011

TRICICLOS

Cilium Velocipede by Jessica Ward





















O que dizer do brilho
dessas coisas em cinemascope?

Que a vida é apenas movie?
Que agitam-se os seres
aquecidos?

(O Sol também me a/tinge,
mas, uso cremes medicinais)

Entretanto, Ísis avança,
em physis, viçosa e indene.

Quase criança,
Ísis,
flor entreaberta sobre um velocípede.

Uns dizem disso:
É a primavera.

Eu quase digo:
respira e espera...



Fonte da imagem:
http://www.jessicawardart.com/2010/06/25/cilium-velocipede/

domingo, setembro 25, 2011

BICICLOS



















Se Ísis ressurge sempre
nesse equinócio e acende
o Sol, deslizando em patinetes,
de um azul ciano, celeste,
por que fica essa escória
escura sob os ciprestes?
Por que, em vez de orvalho, chorume,
e em vez de flores, estrume?

No pátio, as sucateadas palavras
gastas e o eterno
retorno da pátina
que invade parques e praças;
Mas, Ísis surge com graça,
deslizando em patinetes,
e vem mascando chicletes,
os seus cabelos ao vento...

Respiro fundo: é setembro.
Quem há de parar o tempo?




Fonte da imagem:
Niño em patinetes

sábado, setembro 24, 2011

CICLOS

























Tudo fenece no pátio de manobras.

O zinco ferruginoso dos autos abandonados
denuncia um mundo perecível;
Deu em nada o fundo eterno dos gregos
e o ser espinozano ainda persevera em ser.

Mas o orvalho
molha o asfalto
e escorre,
escuro e impune,
pela linha d’água.

Ainda resiste a physis,
em circ’los,
em ciclos.

Todos os raios giram sobre o eixo vazio.

Ísis ressurge,
montando sua bicicleta bela e azul.



Fonte da imagem:
Moça e bicicleta

domingo, setembro 18, 2011

O ARQUIVISTA





















O arquivista cofia os bigodes
na incerteza se pode,
na certeza que não pode
forjar aquilo que acode
ao seu instinto de ordem.
E sente na alma, fria,
a estranha melancolia
do anseio da simetria
que faz do caos harmonia.

O arquivista avalia
e seus bigodes cofia:
será a ordem doentia
e a métrica antipoesia?

Em ordem, Olavo escandia
e, pasmem, estrelas ouvia
naquela monotonia
ritmada, mas vazia,
mais parnaso que poesia.

E o arquivista debalde
procura a normalidade
que em seu cérebro havia;
como o herói de Cervantes,
surtado, avista gigantes
entre as estantes esguias...
(Que bela patologia!)



Fonte da imagem:
http://storage.mais.uol.com.br/357613.jpg?ver=1

segunda-feira, setembro 05, 2011

BRASA E MEL (renova-se a physis)

















A criança vê fundo e antes,
um mundo feito em relações desconcertantes.
Faz a eternidade,
agarra o instante,
consegue ver até, olhos ausentes,
o modo sutil,
em que do sono da brasa, latente,
brota o mel...

A criança é mãe do sonho,
sabe os secretos sentidos,
tem a ciência da fauna
e a presciência da flora.
Conhece o segredo antigo
que da pequena semente
faz surgir o baobá.

Os gregos chamavam physis
e os romanos, natura;
e a criança, sem dar nomes,
brinca com as coisas futuras;
desmonta o reino dos homens,
governa o reino do céu,
paira com Deus sobre as águas,
toma banho de chapéu.

A criança doma o medo,
rasga o finíssimo véu
sobre o sentido da Vida:
Só ela sabe o segredo,
o indizível segredo,
com que a brasa gera o mel.





**********************


Eurico
(de uma conversa no ateliê

do Eugênio Paxelly)
**********************


A foto é da minha sobrinha
Allana.

sexta-feira, setembro 02, 2011

FLOR DO NADA (ou, physis pra Mirze)


As coisas todas brotam de outras coisas...

As rosas,
surgem das rosas
Idéias
nascem de idéias.
Azaléias, flores simples,
surgem dentro de azaléias.
Tudo isso que nós vemos
vem à luz como aletéia,
desde que em seu ventre haja
um fundo idêntico a si mesmo...

Mas, um verso, flor de nada,
emerge espontaneamente,
disso oco e sem sentido
que existe dentro da gente.
Sua forma, (isso que lemos,
esse agora, esse presente),
é o fundo igual que aflora,
é o ser passando a ente.




Fonte da imagem:
http://bloguidonoleari.blogspot.com/2009_01_01_archive.html

quarta-feira, agosto 31, 2011

POEMA QUASE NU



Caminhar nada mais é
do que um pé alçado
e outro no chão.
O movimento é meramente o ritmo
de alternar os pés.
Andar, portanto, não carece de metáfora
nem de alusão.



Assim é este poema
Umas parcas linhas escritas
e outras não.
Alternam-se, ora as entrelinhas,
ora os signos.
Nada no poema move-se
para além do caminho que persigo.

Passos perdidos...

Eis a ilusão:

O adjetivo.






Fonte da imagem:
Passos

terça-feira, agosto 30, 2011

POEMA QUASE NOIR




















Não levarás mistério às coisas que fenecem.
Um por do sol é apenas o sol a se por.

Se houver um branco níveo nos cabelos,
abdica do espelho
ou da lembrança.

Faz quase escuro...
e a hera já entretece todo o muro.







Fonte da imagem:
Recanto de jardim

Abanca-te, a ouvir Sogno, por Andrea Bocceli:

sábado, agosto 20, 2011

AUTO-RETRAÇO

(ou fábrica de espelhos)





















É pra nos vermos, sim, é pra nos vermos
Que fabricamos
essas poças d'água contra o sol.
De vidro, todos os poemas
teoremas
apotegmas
todos os di-lemas.
Di-frações
Lentes espelhadas

(Luz, quero luz...)

Todas as pedrinhas lançadas no espelho d’água
E a flor das ondas reverberando...
Tudo isso, e ainda querer dos filhos
que sonhem como um dia sonhamos.
E que enxerguem o mesmo mundo que vi(ve)mos

Ajustar o foco,
Olhar nos próprios olhos
E revelar que não te amo.
Em verdade, eu me amo em ti.


Todos os postulados
Todas as teses
Os aforismos
Os vaticínios.
Sim, esses poemas,
vitrais,
bulbos de vidro soprados de dentro da alma,
São a maneira de re-ver
nesse afluente heraclitiano
que leva, sempiternamente,
Essa imagem, essa imago...
Esse auto-retraço.
Esse Eu.


Eurico
fev/2008
(A imagem é o Narciso de Caravaggio.)