Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

SETE SALTOS MORTAIS

























imagem google


Exercícios de trapézio
(Contos, arranjos fictícios ou jogos de artifício.)

Editora do Autor
Recife - 1995



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Copyright © 1995 by Luiz Eurico de Melo Neto
Capa provisória
Eurico
1ª revisão
Eurico






Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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Melo Neto, Luiz Eurico de, 1955 -
Sete Saltos Mortais – exercícios de trapézio: contos, arranjos fictícios ou jogos de artifício/ Luiz Eurico de Melo Neto  1ª ed.  Edições do Autor , 2006.


1. ficção brasileira, contos
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Índices para catálogo sistemático:


1- Contos: Século 2o: Literatura brasileira
2. Século 20: Contos: Literatura brasileira


2007
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora do Autor

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Uma epígrafe




“(...) em minha contística tenho apenas três ou quatro argumentos. O que ocorre é que mudo ou combino de modo diferente alguns componentes: ou o lugar ou as pessoas ou as estratégias narrativas. O núcleo argumental poderia ser sempre o mesmo. (...)”
Jorge Luís Borges


***

Outra epígrafe
(ou uma boa indagação a ser feita em um divã)




O presente é um tecido não inteiramente são, onde áreas mortas continuam a existir, afetando as partes vivas. Como removê-las? Quantas coisas em mim posso salvar da desagregação?

Osman Lins
(In Pentágono de Hahn)

***

Epígrafe exemplar




“É que os contos, encerram e têm graça, alguns, neles mesmos; outros, no modo de contá-los; quero dizer que alguns satisfazem sem preâmbulos e mais ornamentos de palavra; outros é mister vesti-los de palavras, e, de frouxos e sem vida, com demonstrações de rosto e mãos, com mudar a voz, tornam-se agudos e interessantes, extraindo-se algo de nonada”.

Miguel de Cervantes
(In Colóquio dos Cães)





ÍNDICE

Um estranho ofício...........................................11
Fratricídio sagrado.............................................34
Dez metros por segundo ao quadrado...........................51
Cruzadas.....................................................71
De Tias Velhas e de Cágados....................................78
Sete saltos mortais..........................................88
Natureza-Morta............................................. 105



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UM ESTRANHO OFÍCIO
Ou o guardião do pomar



...........................a Rosa Menezes


Ciganos VIII

Alpondra,
alpondrinha,
deixe eu atravessar
o riacho que ainda não secou!
Alpondra,
alpondrinha,
deixe as águas passarem
para eu brincar de sonhar
Depois eu conto
de novo a história:
“Era uma vez um cigano”,
pobrezinho, diziam compadecidos uns;
rico, riquíssimo, desconfiavam outros.
Tão grande era a sua alma
que nele cabiam todas as pátrias.
Sôfrego bebia a paisagem,
sem precisar de óculos...


Bucareste, 1988
Ático Vilas-Boas da Mota
Ph D em Filologia Românica e Ciganólogo

***

Do sono aparente nasce um catálogo.
Inanimados jardins de ordem, flores de paciência.
Revela-se o parentesco infinito das séries,
Mapas, referências, dicionários,
Dos galhos pendem respostas maduras,
Todas ao alcance de qualquer,
Sob tua vista complacente, zelosa
De guardião do pomar.

Emílio Carrera Guerra




...MENINO estranho, calado, macambúzio, enclausurado em um sobrado colonial da Rua do Livramento. Atravessava as tardes com passinhos inseguros no assoalho de madeira. Longas tardes silenciosas, silenciosos corredores infindáveis; retratos desbotados que pendiam, senis, em paredes altas, muito altas. Altíssimas, as cristaleiras, guardando frágeis porcelanas, translúcidos copázios, tigelas azul-turquesa. E longilíneas portas, imensas, que se abriam em vastos salões com aquelas estantes, muitas estantes, e muitos livros, centenas de livros de capas esverdeadas, enfileirados e unidos como pelotões de soldados. Livros pesados e inalcançáveis, mesmo ficando ― ops! ― na pontinha dos pés. Livros escuros, de gente grande, nos quais não se devia nunca mexer, a não ser quando descansassem, solitários e esquecidos, sobre o escabelo do sofá...
***
...Meninice sem brinquedos de rua, sob rigores luteranos e lições de álgebra, de geometria (Há de me sair engenheiro!) e as enfadonhas declinações do latim (Quiçá, um respeitado juiz de paz!). Aos domingos, em vez de banhos de mar, as mesmas homilias com um mesmo Moisés furioso a quebrar sempre as mesmas tábuas da lei...
― Ai de mim, se não fosse uma certa tia amalucada, festeira e folgazã, dona de um sítio escondido no caminho de Jaboatão, onde, nas férias, se ia provar das saborosas mangas, jacas, pitangas, cajus e... cabritinhas. Como chegaria a me tornar o que hoje sou, e a exercer esse estranho ofício, sem os seus quitutes, carinhos, conselhos e aquelas coisas escondidas e gostosas. Dessas coisas, escondidas porque gostosas e gostosas porque escondidas, o meu reverendo pai jamais deveria saber. ...Ali, naquelas férias fecundas, sem latim ou geometria, se forjava, sorrateiramente, esse homem arrevesado e, não obstante, profundamente adaptado ao seu mister.
-- Disso, doutor, falaremos mais tarde, coisas do adulto em que todos nós, dia após dia, nos vamos transformando.

...Bem, ajuntem-se às seqüelas dessa meninice barroca ― entre a carne e o espírito, ― meninice sem jogos de rua (sabem lá o que é nunca ter armado seus próprios papagaios, jamais ter provado a emoção das folhas de seda recortadas, a goma arábica lambuzando as pontinhas dos dedos, o losango de taliscas se enfeitando para ganhar os céus, sabem lá?); juntem-se a tudo isso, uns temores noturnos, uma propensão para o desconhecido em um espírito pouco prático, dado a devaneios e sofismas; juntem-se esses traços de caráter e as, assim chamadas, circunstâncias, na alma de um menino urbano, solitário e fantasioso e, quiçá, alcancemos a compreensão dessa lida desregrada, dessa tola opção que tanto desgosto trouxe ao meu zeloso e metódico pai.

***

― Ora, se o mundo, o orbe, o universo está assentado em bases racionais, geometricamente equilibrado sobre seus eixos; se mensuráveis são as sua forças, formas e movimentos, era com a mais justa razão que o meu pai me queria fazer engenheiro. Deu-me aquelas lições de ciências, comprou-me régua e compasso e me apontou o caminho de um mundo exato em seus cálculos. No entanto, doutor, a vocação que me persegue, ― se a isso se pode chamar vocação, a essas vozes misteriosas que me atraem para o caminho oposto ao desejo de meu pai, essa força, trágica sina, quase edipiana, contra a qual não pude mesmo pelejar, ― surgiu desde a mais tenra infância:
Certa vez, lá pelos doze ou treze anos, no caminho de Jaboatão, naquele sítio onde por vezes meu pai me permitia descansar dos livros e das tabuadas, descobri, de forma misteriosa, a minha vocação para esse estranho ofício. Lembro desse acontecimento marcante que poderá nos ajudar a trazer luz sobre a origem de meus descaminhos. Espero que, ainda que não me entendam, pelo menos doravante aceitem (os meus pais), com mais compassividade e tolerância, minha total inaptidão para o mundo quadriculado, lógico, com seus colarinhos alvos e engomados, do qual me transviei.

Uma digressão:

― Que livro estranho, ― recordo agora, doutor,― repousava um certo dia sobre o escabelo do sofá. Na capa grossa, de couro, o busto de um homem em alto relevo com uma inscrição em letras douradas que dizia:
“Tão grande a sua alma que nele cabiam todas as pátrias.”
Folheei, curioso, aquelas páginas cintilantes, cheias de passagens esquisitas, exóticas, herméticas:

1 Durante muito tempo assentará diante dessa tábula com instrumentos vários:
provetas, tubos de ensaio, cadinhos, uma pequena balança;
a um canto da Oficina, a forja dormirá o sono dos dragões,
a bigorna, besta do chifre de ferro, espreitará o vão, guardiã.
2 Pesará o imponderável e forjará o que não sabe se existe. Quem do imundo tirará o puro? Nas trevas, a sua alma, vil como o mais vil dos metais, preparar-se-á para a Grande Tarefa.

***

...Naquele dia, a pretexto de algo que não me lembro agora, escapuli da enjoada escola dominical e, ― nem sei como consegui escapar, ― rumei, num trem suburbano, pro sítio de Jaboatão. Chegando lá, encontrei Balduíno, o velho caseiro bem falante, contador de causos, que, dentre outras virtudes mágicas, era o dono do pastoril que animava os presépios das redondezas do sítio. Perdoe-me, meu pai, mas lembro da raiva que tinha do senhor, quando me obrigava a assistir àquela enfadonha cantata natalina, enquanto lá no sítio a meninada se divertia com as trapalhadas do velho Badu e de suas pastoras com saias bem curtinhas, deixando entrever quase a b... ai, Jesus Menino, que tentação!
Foi o velho Balduíno quem me disse que tia Jurema não estava em casa. Tinha ido ao arruado dos Moura, ali bem pertinho, participar da festa do Cigano. Curioso, pedi para que ele me levasse até lá. Lembro que meu pai, o reverendo Abraão, sempre ralhava quando a gente queria ir pra essas bandas. “Gente perigosa, maligna, sensual!” dizia. “Não pense em se envolver com eles, Isaque! Sua tia Jurema é mesmo uma maluca de se meter com aquela gente! Dizem que têm um cotoco, um côto de rabo escondido. Vade retro!
― Aquela gente... Ah, doutor! Como eram lindas as ciganinhas do pastoril! Morenas arredondadas, bundudas. Dançavam freneticamente, remexendo as cadeiras, as mini-saias deixando ver tudo, enquanto batiam com os pandeirinhos nas mãos. Foi o som daqueles pandeiros que ouvimos ao nos aproximarmos do arruado. Eu vinha encarapitado no lombo de um jumento. O caseiro vinha a pé, arrastando um cabrito e um galo preto. Eram presentes para o Cigano. Descemos por uma ribanceira, contornamos um pequeno canavial, resquícios de um antigo banguê, e logo estávamos às portas do povoado. Ficava num vale, banhado por uma das nascentes do rio Jaboatão. Terreno fértil, entre lajedos, protegido por duas colinas e pela mata rala que sobrou das queimadas para o plantio da cana. Chamava-se Povoado dos Moura (que uns chamavam maldosamente Gomorra) porque ficava nas terras da tradicional família Gomes de Moura, descendente de alguns semitas que, na famosa batalha dos Guararapes, lutaram ao lado dos holandeses, ― a quem deviam favores, ― contra o irascível João Fernandes Vieira. Com a derrota, uns se converteram ao catolicismo, trocaram seus nomes e se espalharam pelo interior do nordeste. Outros abandonaram suas terras, fugindo para regiões mais ao norte do Novo Mundo. Aquele lugar mais que centenário era ocupado por um herdeiro distante e menos abastado, tetraneto daqueles marranos que ficaram por ali. Era, como os seus ancestrais, cheio de esquisitices. Cumpria um desígnio de seus antepassados que, perseguidos e obrigados a negar as suas crenças e costumes, desenvolveram em sua comunidade um sentimento de tolerância e fraternidade com todos os povos proscritos: durante séculos eles abrigariam todos os nômades que cruzassem suas terras. Ali viveram gitanos de Málaga, calons , boêmios e bailarinos de Granada, zíngaros romenos, turcos, ladrões de cavalo , romanichéis, cossacos, manuches, roms, beduínos salteadores e toda a sorte de giramundos, (ainda que fossem gajões) que ali pousavam e se iam ficando. Várias nações ciganas passaram por ali e foram deixando no seu rastro os costumes mais díspares. Dizem que ali se cuidava de heresias, deuses espúrios e seitas secretas, e que fundidos estavam, nesses domínios, cabala, corão e ritos egipcíacos. Muita coisa se diz do que só se conhece por ouvir dizer, no entanto, cautela: a água toma a cor de seu recipiente.

Vivia sozinho, o tetraneto dos cristãos-novos. Seus poucos parentes, pequenos comerciantes do Recife, haviam voltado pro Oriente Médio quando do advento do Estado de Israel. Ele não. Resolveu fincar ali suas raízes e, há mais de cinqüenta anos, cuidava do povoado e cumpria a sua missão. Seu nome era Francisco Modesto das Chagas Canabarro. Mas chamavam-no Chico das Chagas, Chico Judeu, Chico Cigano, o Turco, ou, apenas, “seu” Chico. Dizem que seu nome era conhecido em várias partes do mundo, sem que nunca precisasse ter botado os pés fora do povoado.
“Tão grande a sua alma que nele cabiam todas as pátrias.”

A festa do Cigano, pois, era a festa do seu Chico. Nela se cantava em várias línguas, dançavam-se as danças de vários países. Isso é o que vinha me dizendo o velho caseiro. No entanto, ali se viam misturados os rituais de todas as tribos romanis do mundo. Esse é que era o problema! Isso talvez fosse o verdadeiro motivo das preocupações de meu pai.

O Povoado dos Moura era um lugar pequeno pra comportar tanta história e tanta ebulição. Na realidade havia ali uma única rua de casinhas conjugadas, parede meia, todas com calçada alta e frontão português. (Os povos que durante séculos por ali passaram, não costumavam construir mais do que tendas). No fim do arruado, a casa grande de seu Chico: a única que possuía quintal, terreno largo e bem varrido. Naquele dia, o quintal estava especialmente embandeirado. Era o dia da festa. No centro do terreiro um mastro comprido de sucupira, brilhando de banha, escorregadio como o quê. Era o pau-de-sebo. Num dos cantos, a corda estendida e o pote do quebra-panelas. Tudo preparado para uma festança. Contudo, uma coisa foi logo me intrigando ao adentrarmos aquele arraial. Não eram as ciganinhas do pastoril que estavam batendo os pandeiros que ouvimos ao longe. Eram algumas velhotas vestidas de baianas e uns xibungos, nus da cintura pra cima, usando umas saias brancas rodadas. Esse fato me causou estranheza. Fiquei mais intrigado ainda quando percebi que eu era a única criança naquele lugar bizarro. Onde andaria a meninada?

Tia Jurema apareceu na porta do casarão, toda enfeitada, pulseiras e colares azuis, vermelhos, um carnaval. Logo sumiu pelo corredor. O caseiro nos levou, a mim, ao galo preto e ao bodinho e deixou-nos a um canto da sala. “Fique aqui, garoto, não saia até ser chamado”. Pela fresta da porta, vi uns xibungos com túnicas brancas, carregando um grande alguidar e colocando-o no centro do terreiro. Outros traziam um feixe de lenha seca como quem vai armar uma fogueira junina. Que é isso aqui? perguntava a mim mesmo, desconfiado. As pessoas se movimentavam numa azáfama de quem prepara uma cerimônia solene. Enquanto isso adentrava o pátio um cortejo de homens pretos, carapinhas de algodão, conduzindo um andor nas costas. Acima deles balançava um monstrengo feito de barro, todo enfeitado com grinaldas, parecia um pequeno buda, ou um santo dos que eu via passar nas procissões católicas da rua do Livramento. Lembrei-me, naquele instante, de uma lição de História que eu havia decorado antes das férias:
As festas pagãs dos fenícios, celebradas em Byblos anualmente, tratavam-se de cerimônias fúnebres nas quais se expunha o esquife do deus Adônis, levado solenemente pelas mulheres através das vielas da cidade, entre cantilenas e lamentações. Mais tarde juntava-se ao cortejo fúnebre um rito alegre para celebrar a sua ressurreição.

Cantavam também os pretos velhos, tristemente, carregando seu deus de massapé, da mesma maneira que, mal comparando, cantavam os devotos naquelas festas da Conceição, cujo andor esquisito eu me havia acostumado a ver passar na minha rua.
Por que se parecem tanto, meu Deus, em lugares e épocas distantes, esses mitos, esses ritos hierofantes? Haverá uma base psíquica comum a todos os humanos, que se reproduza em suas imagos, seus deuses, seja nos sonhos das pessoas comuns, dos reis ou dos sábios, nas lendas, nos delírios dos loucos e nas religiões que arrastam as massas?
Crescido no piedoso bairro de São José, (lugar piedoso, mas, carnavalesco, é bem verdade, entre o sagrado e o profano) tantas vezes assisti, como Luciano em Byblos, as devotas do Coração de Maria, todas de preto, cruzarem o pátio do Terço, carregando o Senhor Morto entre rezas fúnebres e hinos merencórios. Na minha porta também desfilavam os seresteiros notívagos e os cordões animados de Vassourinhas e dos Batutas de São José. Todavia, o cortejo que vi naquele dia tinha algo estranho e macabro. Na minha mente de menino assustado, talvez tenham restado imagens distorcidas e dúbias. Mas, em verdade, aquele cortejo era diferente. Não era apenas triste como o das devotas de Maria, nem profano como o dos animados Batutas. Ali havia algo sobrenatural.


Outra digressão:


Era um códex, uma brochura antiga com iluminuras medievais, numa linguagem cifrada, quase ininteligível:

3 Mil anos de luta aguardam sua hora. Uma guerra sem testemunhas. Caminhará sozinho e às cegas. Uma águia sobrevoará sua cabeça comendo as próprias asas. Terá seus sonhos sobressaltados;
4 No laboratório da alma, em seus recantos mais sombrios, abrir-se-á uma porta, estreita porta, sobre a Noite Original.
5 Aí encontrará a sua Sombra, o Nigredo, o lado escuro da mente. Se for a sua hora, libertará a alma do mundo, anima mundi, que estará aprisionada na Matéria. Com o fogo derreterá o metal e sua alma profunda regressará a si mesma.

***

O cortejo estacou no meio do terreiro, onde uma espécie de ara foi erguida com seixos enormes. Os pretos velhos colocaram o andor sobre aquele rústico altar de seixos que eles chamavam peji. Trouxeram o cabrito e o amarraram ao pé daquela estatueta com cabeça de barro, olhos e boca feitos de mariscos, com pedacinhos de metal espalhados pelo seu tronco disforme. Chamava-se, o pequeno deus, Elegbará, que, anos depois, eu viria saber que se tratava de uma divindade totêmica afro-brasileira, usada em certos rituais de feitiçaria. O bodinho, pressuroso, ficou me olhando como se fossemos cúmplices naquele infortúnio. Quieto em meu cantinho, -- também tinha vindo até ali arrastado, arrastado pela minha desobediência – eu espiava, com meus olhos de criança assustada, aquela estranha liturgia. Cadê tia Jurema? O que é que eu vim fazer aqui nesse lugar tão esquisito? perguntava-me, já arrependido da trela.

Agora entraram com o galo preto, as asas amareladas pela farofa de dendê. Alguém sussurrou em meu ouvido numa língua desconhecida: “Do-ú, doum.” O bode começara a berrar e dois negros fortes desfechavam pancadas vigorosas em enormes tantãs. Eram os ogãs que percutiam, com raiva quase lasciva, os tambores da festa...Meu Deus! Tia Jurema! Meu pai! Foi à tua revelia, meu pai, que eu achei de dar com os costados nesse antro barulhento! A cerimônia estava começando e algumas mulheres de vestes coloridas, ouvindo os atabaques, começaram a rodopiar no terreiro. A mais velha entre elas vem ao meu encontro. Eu me encolho todo. Ela me ergue em seus braços e me joga no rosto uma, duas, três, quatro, baforadas de seu cachimbo fedorento. Tento escapar, esperneio. Não consigo. Sinto o mundo girar. As outras então desatam num coro jubiloso:
“São Cosme e Damião,
Do-ú, doum,
Doum, do-ú,
São Cosme e Damião.”
Uma delas, saia vermelha, cabeça raspada, cai de borco à nossa frente, atirando-se aos pés da velha que me agarrava, a pulso, com seus braços corrugados. “Mel, Do-ú quer mel!” grita a velha para as outras dançarinas. Um pote de mel de engenho é trazido rapidamente. A careca derrama o mel sobre a cabeça, lambuza-se toda, depois me oferece. “Do-ú quer mel?” Dou um golinho, atemorizado. Ela começa a se despir. Tiram também a minha roupa. Vertem mel sobre meu corpo nu. A velha aplica-me mais cachimbadas fedorentas. Procuro, desesperado, Tia Jurema, entre as dançarinas. A fumaça do cachimbo me enceguece. Agora os tambores rufavam feito taróis. A ialorixá, já despida, nua e linda, canta uma linha malemolente. Sua voz, em solo agudíssimo, me dói nos ouvidos até agora. Um canto sensual em uma língua incompreensível. As outras baianas também começam a despir-se. Por que não me põe no chão, essa velha asquerosa? Nu, e todo lambuzado de mel, sinto-me envergonhado e desprotegido como aquele cabritinho amarrado ali no centro do terreiro. Que hão de fazer conosco, meu bichinho? Essa gente maluca irá nos fazer algum tipo de maldade? Vem-me à lembrança, doutor, como em uma anagnosia, frases de um livro antigo:

6 O peso do martelo retumbará na bigorna. Para onde fugirá o teu espírito? O teu caminho foi medido. Medida está a tua andança. A tua tocha difusa arderá nas duas pontas.

Os tambores agora tocam um batuque frenético. As filhas de santo me envolvem numa túnica branca e me deitam sobre o feixe de lenha. E a leitura supranormal me anuncia:

7 A lua regerá a tua dextra e alumiará tuas núpcias com a Rainha das Sete Faces, a Pomba, a Ninfa, a Mulher, o Albedo.

Uns homens trazem o grande alguidar e o deixam perto de mim. Trazem o bodinho e o galo preto. Tia Jurema, em transe, sai de uma casinhola, toda nua, o corpo alvo depilado, usando apenas as pulseiras e os colares de continhas coloridas no pescoço. Na cabeça, um cocar feito de penas de pavão. Os xibungos vêm dançando em volta dela. Vejo em sua mão um enorme cutelo. Avança em minha direção, os olhos esbugalhados. Estremeço de pânico.

8 Estremecerá no seu ventre a semente do mal, que será separada e lavada e cozida e queimada e fundida. Uma pedra nascerá dessa torpe fusão. A pedra de si mesmo, o albedo-rubedo, o sinal de seu proprium, a Labuta Maior.

Desato a gritar por meu pai, por minha mãe. Um dos negros tapa-me a boca. Outro arrasta o cabritinho pelos chifres. Grito eu, berra o cabrito...

― Creio eu, doutor, que alucinado entrei a delirar, (quem sabe movido pelo remorso por ter traído a confiança de meu pai) olhei para o alto e vi um enorme pássaro, um gavião, um carcará, girando em círculos sobre mim, como fazem os abutres. Girava cada vez mais rápido, deixando atrás de si um rastro azulado parecido com o da esquadrilha da fumaça. Começa então a desenhar meu nome no firmamento. Isaque. Nesse instante, não sei por qual artifício, vejo o céu se abrir como uma tela de cinema. A cena que surge ante meus olhos é quase real. Meu pai, com as vestes dos magos caldeus, um turbante negro na cabeça, manda um serviçal me deitar sobre um feixe de palha seca e diz: “Deite fogo na palha! Queimada a palha queimar-se-ão os pecados do menino!” Fico desesperado. Tento fugir. Grito por mamãe. Não a vejo. O que vejo são os olhos de Tia Jurema. Ela ergue o cutelo até a altura da fronte. A lâmina prateada brilha ao sol. Ouço um coro de arcanjos. Terei morrido de alguma forma ali, doutor?

Um sacerdote ergue a hóstia consagrada até a altura da fronte, os sinos repicam, os coroinhas balançam os turíbulos, sente-se um cheiro acre de fumo de rolo, e o incenso invade a nave sacra. O santo padre repete as palavras da última ceia. In memoriam. Abaixa as mãos. Agora ergue o cálix e diz as palavras litúrgicas. É o momento eucarístico. Todos os fiéis se ajoelham. O padre parte a hóstia, embebe-a no vinho, como fez o Cristo com o pão que deu ao Judas Iscariotes e, reverentemente, mastiga-a. Eis o mistério da fé.

Tia Jurema fecha os olhos, inspira fundo e, enquanto solta um grito lancinante, enterra a lâmina afiada na jugular do bodinho.

Vejo as devotas do Coração de Maria. Todas de luto, vão cantando pelas ruas do Recife. Os fiéis conduzem o corpo do Senhor Morto pelas ruas de Byblos. Os Batutas de São José surgem no pátio do Terço usando trajes fenícios. Deliro. A deusa Istar vem à frente do bloco aspergindo a todos com a água da Vida. O deus Tamuz regressa do reino dos mortos. Ouve-se o frevo Vassourinhas. É o sábado de Aleluia. Depois, chocolates, vem o domingo de Páscoa. O velho do Pastoril passa abraçado a um orixá de Umbanda.

A ialorixá de cabeça raspada salta sobre o bodinho, babando e uivando. Ajoelhada, ao modo muçulmano, a bunda enorme à mostra, deita o rosto ao solo e suga na jugular do bicho que estertora. O sangue esguicha da artéria do cabrito e vai escorrendo pela boca da moça até encher o alguidar.
 Acredito, doutor, ter visto, mesmo entre o pavor e a luxúria que me tomavam, um côto de rabo naquela linda bunda, nua e negra.
Nesse instante, o sol escurece e eu desabo do feixe de lenha onde me haviam deitado. Acordo no meio da noite. Ouço minha mãe ralhando com a sua cunhada maluca por me ter levado, sem o seu consentimento, à festa do orixá Ibeji Dois-dois, no terreiro de Chico de Omonolu.

Adentra o terreiro, o Cigano: Francisco das Chagas Modesto Canabarro. É a hora da festa! Assobia três vezes e a criançada, que estava escondida, surge de todos os lados, invadindo o arruado deserto. São meninos e meninas de todas idades, cores e raças, saindo da mata, falando todas as línguas indizíveis da infância universal: gugus, dadás, mamãs, papás, risos inocentes. Outro assobio: quebra-se o panelão das guloseimas, as crianças vibram e o bodinho se transforma em uma gaita de fole. Todos começam a dançar em círculo, como a cirandar:

beduininhos, moleques do sítio, infantas dançarinas lusas, pivetes roms, childrens sioux, apaches, manuches, romanichéis, curumins tapuias, fulniôs, calons, ciganinhos judeus, negrinhos bantus, bororos, romanis, bambinas zíngaras, , pastorinhas celtas, niñas bailarinas de Córdoba, de Granada, filhos de candangos, matutinhos paus de arara...e eu.

Meu avô Chico das Chagas abre solenemente um livro de páginas reluzentes e lê Ibn Sina pra mim. Todos os outros netinhos sentados no chão, ao seu redor, escutam-lhe o sermão:

Hoje ganhaste um novo nome. Serás chamado Ismael. Como o filho da minha amante, aquele que eu não acolhi, serás um novo “arif”.

“O arif procura a verdade, e a quer por ela mesma e não por qualquer outro motivo. Não há nada que ele prefira a este conhecimento profundo: e ele não presta culto senão a ela, e não por ardente desejo ou temor. O arif é alegre, de bom humor, sorridente, honrando o pequeno além de sua modesta condição, como honra o grande. Diverte-se com o homem obscuro tanto quanto com o personagem célebre. (Zé Buchudo ou Jesus Cristo). E como não seria alegre quando a verdade e todas as coisas o enchem de alegria, porque em todas as coisas ele vê a verdade? E como não poria todas as pessoas num mesmo pé de igualdade, desde que para ele todos são iguais. (judeus = palestinos), objetos da misericórdia divina, depois de terem sido ocupados com futilidades? Do mesmo modo é-lhe igual por vezes ter o hálito fétido ou exalar um perfume, e escolhe, de preferência cheirar mal quando lhe vem ao espírito o desprezo pelo que não é a Verdade.”

O reverendo, doutor, me mandava repetir o Ato de Contrição, a contragosto. Os colegas de escola, todos sentados na primeira bancada da Capela, caçoavam. Meu pai me fitava, sobrecenho carregado. Todos rezavam uma Salve Rainha. O coroinha balança o turíbulo e eu começo a tossir com aquela fumacinha. Minha mãe me acode com um leque. Antes de encerrar a liturgia eu desmaio de fome, de raiva, cansaço e descrença.

― Por isso eu venho aqui...


Fecho a porta da biblioteca que herdei de um bisavô. Atravesso o longo corredor, passos firmes no assoalho de madeira. Na parede, a foto de meu saudoso pai. Seu olhar segue-me ainda sobre os pincenês. Saio de casa e alcanço o pátio do Livramento, hoje deserto e silencioso, sem a algazarra habitual dos camelôs. Uma voz ultrafanica, vinda dum tempo remoto, ecoa dessas pedras carcomidas. “Ecoa em minh’alma uma voz, ou oiço a voz vazia de nonada?”

9 revolverás os vales e aluviões das correntes das águas; à busca das areias auríferas, explorarás as preciosidades da gleba e da língua; com a batéia, gamela afunilada dos tolos, lavarás todo o cascalho do ser com semicúpios, pedilúvios, banhos de cheiro,
10 banhos turcos seguidos de duchas frias, fricções n’alma com panos molhados em águas radioativas, e todo o emprego terapêutico da água que era usado pelos roms do vale do Nilo.
11 registrarás vozes eólicas, o troar das catadupas, o trom e o silvo da procela, mesmo que te chamem louco ou raca, mesmo que te creiam néscio. Eis tua sina, eis o teu fado. Avia-te, ó bardo!




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UM FRATRICÍDIO SAGRADO
(ou uma história de pescador)


A primeira vez que vi gigantes foi em um dos rolos veneráveis da Torá:
Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens, e delas geraram filhos.
Aqueles seres híbridos, nascidos do cruzamento das mais formosas filhas dos homens com os filhos de Deus, pertenceriam a uma geração de gigantes, tão colossais e valentes, -- sendo alguns, como Nimrod, caçadores tão violentos e cruéis --, que foram chamados varões de fama. Dizem, até, certos estudiosos, que, tempos depois, essa raça teratogênica ousaria erguer uma torre que alcançasse os céus, tendo Deus os castigado, misturando as línguas do mundo.
Tornei a avista-los, segunda vez, nas planícies da Mancha, em pleno campo de Montiel. Ao longo deste descampado, encontrei, na linha do horizonte, as silhuetas dos moinhos farinheiros, lançando suas aspas giratórias ao acaso.
“Nas aspas giratórias desses moinhos
agita-se uma alusão a braços briareus.”
Não eram moinhos, e, sim, gigantes. E, creiam-me, tão grandes e tão verazes quanto os da Bíblia.
Creio, em vista dessas coisas, não ser de todo infundada a idéia de um certo Erich Von Däniken, perseguidor de ovnis e seus quejandos, que viu nesses bíblicos filhos de Deus, não anjos, como soem enxergar alguns teólogos, e, sim, extraterrestres.
A verdade ou a ilusão da interpretação do ufólogo von Däniken e da crença angelical dos teólogos, baseia-se, a meu ver, na mesma premissa filosófica, tão bem estudada por Julián Marías, que, em um luminoso ensaio, analisou, com sua costumeira mestria, uma questão formulada por Ortega y Gasset em suas Meditaciones del Quijote, sobre os moinhos famosos da obra prima de Cervantes.
Deixemo-lo argumentar:
“(...) sobre a linha do horizonte levantam-se os moinhos farinheiros com suas aspas; esta ‘realidade’ tem um sentido, quer dizer, tem que ser interpretada; um desses sentidos ou interpretações é a que projeta sobre eles Dom Quixote: são gigantes. Que Dom Quixote esteja louco, quer dizer, que nós desqualifiquemos esta interpretação – segundo a nossa –, não afeta em nada o seu caráter interpretativo nem seu mecanismo interno. Ao contrário, planteia o problema em todo seu rigor e agudeza; por isso Ortega prossegue perguntando: Concordemos em que esses gigantes não o sejam. Mas... e os outros? Quer dizer, os gigantes em geral? De onde tirou o homem os gigantes? Porque na realidade nem há e nem houve nunca gigantes... Sempre se trataria de uma coisa que não era gigante, mas que, contemplada em sua vertente ideal, tendia a fazer-se gigante. (...)”
Sobre essa vertente ideal, encontramos também o relato de um certo Adso de Melk, monge da Idade Média, que, dirigindo-se ao claustro com seu mestre, ao contemplar o torreão da abadia, fincado na rocha íngreme de uma montanha, fez uma reflexão, que continha essa interessante analogia:
“(...) vista de baixo, parecia que a rocha se prolongava até o céu, sem solução de tintas e de matéria, e virava, a uma certa altura, fortaleza e torreão (obra de gigantes que tinham grande familiaridade tanto com a terra como com o céu)”.
Enxergaria, o santo monge medieval, com os mesmos olhos do Quixote, plantados que estavam, ambos, no topo do Renascimento? Falaria Adso de Melk dos mesmos filhos de Deus que desafiam teólogos e intrigam ufólogos, modernamente?
São questões que ficaram suspensas no ar, entre o céu e a terra, até que algum neto do fidalgo manchego, tome sobre os ombros essa tarefa de gigantes...
Essas meditações orteguianas sobre eólicos motivos me levariam a abraçar, não sei se por diletantismo ou rigor científico, uma profunda exegese de textos antigos, compulsando volumosos tratados e manuscritos sobre o tema pouco usual da gigantografia...
Desde há muito, então, ando por este vasto mundo de meu Deus, buscando esses seres incomuns, mas perfeitamente possíveis em sua existência. Ou compossíveis, como queria Leibniz: o compossível é o que se encontra em perfeita conexão com as leis naturais. Pois a existência de um centauro, por exemplo, é possível, mas não compossível, já que não o tolera a biologia. Os gigantes, pois, são tão reais e compossíveis quanto os juízes hebreus, os místicos e inspirados da hagiologia, e os heróis do panteão greco-romano. Digo-lhes mais: os lilliputianos, do médico Lemuel Gulliver, mesmo imaginários, são compossíveis, e têm a mesma porção da realidade dos pigmeus africanos; estes, habitantes famélicos de um mundo absurdo, mas real. É que o compossível abarca tudo o que pode existir de acordo com a natureza.
Todavia, a história que vou lhes contar tem coisas tão desproporcionais e insólitas, quanto todas as façanhas bíblicas, todos os heroísmos de Ulysses,(o de Joyce ou o da Ilíada, que no fundo possuem a mesma origem, são filhos da louca da casa, fantasmagorias), e tão verossímeis quanto as proezas da epopéia de Gilgamesh, que dizem ser a mais antiga da raça humana. Minha história, decerto, pode estar cheia de fatos reais, apesar de assombrosos. Desde que não achemos tão assombroso o fato de o homem, esse animalzinho minúsculo, ter alcançado o solo da Lua, gastando cifras astronômicas, uma fortuna que daria para erradicar do mundo a miséria e a fome, não há porque, então, motivo para surpresa e espanto...
Vou lhes contar, e não lhes tomo mais tempo, a história de como encontrei um gigante de verdade. Para mim, depois desses fatos que lhes relato a seguir, nem mito, nem falácia, o gigante é uma evidencia apodítica.
Como cheguei até ele?
Como encontrei tão raro espécime?
Já lhes digo:
Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela antiga, e já extinta, Escola do Recife, especializei-me em Direitos Humanos. Lá estudara comigo um fulano que, depois, enveredou pela carreira diplomática e percorria, devido à sua atividade, muitos lugares do mundo. Tempos depois, estando já eu aposentado, vivendo de pescarias em Maria Farinha, e ocupado com meus estudos sobre Gigantografia, recebo missiva da Embaixada do Brasil na cidade de N’djamena, no Chade, país miserável da região do Sahel, palavra árabe que quer dizer “orla” ou “costa do deserto”, área de transição entre a savana e o Saara africano. Lugar de poucas chuvas e de gente desnutrida, que lembra o sertão nordestino, tão conhecido por nós.
Meu amigo diplomata, sabedor de meus estudos sobre coisas exóticas (nessa época ainda eram exóticos pra mim os gigantes), convidava-me a ir à África em uma missão de apoio à sua Embaixada. Eu iria como pesquisador, com despesas pagas. A carta era estranha e falava da possibilidade de “encontrarmos por aqui os gigantes que você tanto procura”. Pensei que era uma brincadeira, ele era muito espirituoso, mas, com tudo pago...não pensei duas vezes.
Fui então dar com os costados no continente africano, bem ali, no nascedouro de toda a raça humana e de sua cultura. Várias coisas estranhas e terríveis havia eu de encontrar por lá, mas por enquanto vou lhes fazer um relato dessa que mais me impressionou. O meu encontro real e definitivo com um gigante, havia de se dar no lugar onde menos se esperava encontrar um desses seres extraordinários: em meio a duas tribos de pigmeus africanos.
O que vou lhes contar deu-se nos setentriões africanos, lugar perdido na vastidão das estepes do Sahel, nas cercanias do lago Chade, que lembra a região semi-árida que circunda o lago de Sobradinho, cá no nosso sertão nordestino. Lá existiam duas tribos nanicas, que viviam sempre em pé de guerra: os g’habirus e os j’abirus. Em tudo semelhantes, esses povos irmãos: altura, compleição física, cor da pele, pés chatos, cabelos crespos, e na descendência de um mesmo patriarca, pai Gj’aborão, diferindo apenas, aparente e nominalisticamente, nas consoantes gê e jota e na ausência de um h mudo, que havia no nome de uma e não da outra tribo. Decerto essa diferença mínima não seria o motivo para as guerras. Havia uma outra coisa que distinguia os povos das duas tribos irmãs.
Essa era a diferença fundamental.
Os j’abirus criam em muitos deuses, e os g’habirus, em um só deus. Por essa e por outras questões menos absurdas, como, por exemplo, o controle das fontes de água potável, a posse dos rebanhos e das terras férteis da região do lago Chade, eles viviam em uma guerra santa, estúpida e fratricida.
Mas, um dia, um massacre sem proporções iria por fim àquele conflito de gerações. Foi o resultado terrível dessa guerra que nós presenciamos naquele ano.
Os j’abirus, povo mais fraco, porém ordeiro e pacífico, construíram uma espécie de paliçada em torno de suas terras. Era como que uma rústica muralha, feita de barro a cuja massa se misturavam restos de tudo – ossos, conchas, pedaços de cerâmica, troços de ferro, ripas e varas dos arbustos das savanas – para lhe dar consistência. Tinha o aspecto das paredes de nossas casa de taipa interioranas, essa fortificação, que levara anos sendo erguida pelos pigmeus. Com essa fortaleza pretendiam ter paz e dar uma trégua às batalhas constantes que iam, pouco a pouco, arruinando os dois povos.
Mal sabiam eles que os g’habirus guardavam em suas hostes uma arma mortal. Vinham, durante anos a fio, criando, em segredo, um homenzarrão de quase três metros de altura e que pesava uns trezentos quilos: o incrível gigante G’shua. Sim, senhores, crescia um gigante entre os pigmeus. Creio que não era assim tão descomunal a sua altura, mas a lenda que se formou em torno de sua figura, nos fala de que era capaz de arrancar sozinho um baobá de suas raízes. Nascera de alguma disfunção genética de uma das mulheres da aldeia g’habiru. Foi esse gigante, que, a bem da verdade, não vi, quem fez, em luta desigual e sanguinária, um estrago terrível ao povo j’abiru.
Nossa missão chegou ao local dois dias depois do sangrento e derradeiro combate.
Os g’habirus atacaram de surpresa, ajudados por uma prostituta j’abiruna, chamada J’aab, que traiu seu povo, dando-lhes a beber de uma erva sonífera. Os invasores acreditavam que o gigante era um enviado de deus, e por isso o haviam escondido durante anos, esperando seu completo crescimento. Ensinaram-lhe a odiar, em nome de seu deus, o povo da outra tribo. O gigante aprendeu a matar, destroçando bisões nas planícies da região. Dizem que se atirava aos búfalos com a ira dos deuses,( digo melhor, de deus, já que ele era monoteísta, sendo g’habiru) e, com um soco, os derrubava, arrancando os seus chifres com as próprias mãos. Era essa a força incomensurável daquele monstruoso gigante.
Não sei se era apenas lendária a fúria e a força daquela criatura infra-humana, mas o que encontramos no cenário da luta foi aterrador. Depois de derribarem o paredão com a ajuda do monstro, os g’habirus, avançaram, em nome do deus único, sobre tudo o que tinha vida na tribo inimiga. Destruam tudo o que tenha vida, dizia-lhes seu deus. Enquanto o gigante G’shua estraçalhava os pequenos guerreiros, sonolentos e aturdidos, lançando pedaços de seus corpos em todas as direções, os g’habirus matavam velhos, mulheres grávidas, crianças, animais domésticos e até mesmo, as plantas. Só deixariam com vida a família da prostituta J’aab, porque os ajudara, traindo, covardemente, o seu próprio povo.
Depois dessa chacina fratricida, eles levaram tudo que era de precioso no local para adornar o altar vitorioso de seu deus. O gigante, que sempre portava um holifante, um enorme berrante de marfim, começou a soprar, a todo pulmão, aquela buzina roufenha. O zumbido alucinante e macabro se ouvia por milhas de distância. Tão forte era o sonido do holifante que os outeiros das proximidades começaram a tremer e fumegar.
Se Von Däniken, o nosso engenhoso ufólogo, presenciasse esse pequeno tremor de terra, diria prontamente que uma nave sideral estava decolando dos planaltos fumegantes, que a fumaça saía do escape de suas turbinas atômicas e que G’shua era, na verdade, um daqueles extraterrestres bíblicos, que ora voltava ao seu planeta, no céu.
Não seria de todo inacreditável ser o gigante um ser sideral ou até mesmo um anjo decaído a tocar sua agourenta trombeta; e, -- espero que todos creiam --, o som daquele holifante fora tão forte, que podia ser como um silvo de turbinas ou de trompetes celestiais. O certo é que esse sonido, ou seu ecoar, ainda se ouvia horas depois, quando o nosso jipão se aproximava daquele funesto local.

Passados muitos dias daquela chacina fratricida, levaríamos ao governo daquele país as conclusões da nossa missão. Os altos dignatários do palácio em que morava o seu rei, ou seu presidente, não me lembro bem de seu posto, o que é agora de somenos importância, fizeram pouco caso de nosso relato. Disseram-nos, a uma só voz, que essas tribos se matavam há séculos e que, jamais, um país do ocidente se havia preocupado com essas pequenas tribos primitivas e insignificantes. Depois, já em Haia, na Holanda, apresentando, o meu amigo diplomata, o mesmo relatório, em que pedia a intervenção naquele país, já que seu governo não podia resolver e punir os autores daquela horrenda matança, um diplomata africano riu, e com ele todos os presentes, argumentando, pasmem os senhores, que não havia gigantes, e, em não os havendo, a quem deveriam punir.
O argumento era hipócrita e falacioso:
-- Tragam-nos o gigante e o puniremos exemplarmente!
Pasmem os senhores, de novo, pois, no mesmo dia, fui chamado de louco por um dos delegados da ONU. Era uma necedade, disse-me ele, ocupar-me com as coisas de um povo tão insignificante e, mais tolice ainda, dedicar a minha vida a estudar essa pseudociência, --palavras suas--, a Gigantologia. Citou-me, rindo disfarçadamente, o fato de que, meses atrás, também teria vindo do Oriente Médio, um outro advogado desmiolado, como eu, pedindo que se apurasse uma outra guerra, ocorrida há mais de dois mil anos, que envolvia outra chacina atribuída a um gigante, contra uma pequena tribo que habitava a região onde hoje fica a cidade de Jericó. O delegado disse-me que achava quase impossível a ONU interferir em assuntos dessas pequenas tribos de lugares tão remotos e inexpressivos, como a dos povos nômades da África e do Oriente. E, lembro-me de suas palavras finais, que ali não era lugar para quixotismos aventureiros e que gigantes só existiram nas mentes de debilóides como a do pobre fidalgo de la Mancha.
Abandonei, em seguida, aquela missão diplomática e resolvi nunca mais confiar nos gigantes da Terra.
De regresso ao Brasil, voltei a pescar e, regularmente, fazer minhas visitas vespertinas à Biblioteca Pública, naquele prédio majestoso, erguido no não menos belo Parque 13 de Maio, pulmão verde do Recife. Lá, encontrei o Dr. Alberto, estudioso dessas mesmas tolices, que me surpreendeu ao apresentar-me um tratado arqueológico sobre a África pré-histórica. Tratava-se de um estudo minucioso dos povos que viveram ao redor do lago do Chade. De onde? perguntei-lhe embasbacado. E, com detalhes, relatei toda a aventura que tinha vivido naquele remoto país, mais ou menos da forma como acima lhes contei. O Dr. Alberto ficou arrepiado e falou-me de macabras muralhas de barro, que eram construídas usando cadáveres de crianças sacrificadas para lhes dar consistência; de urnas funerárias parecidas com nossas jarras; e, finalmente dos Saôs, os legendários gigantes da África pré-cabraliana.
Transcrevo aqui, com certo assombro, o que se achou no Chade, antes de por lá aportarem os marinheiros lusitanos, segundo a palavra abalizada do dileto amigo Alberto, que merece nosso crédito, por ser doutor honoris causa pela Universidade Obafemi Awolowo, de Ifé na Nigéria, devido ao seu trabalho de aproximação entre os povos da África e do Brasil. Não estranhe, leitor, tantas transcrições sem indicação de fontes, nesta breve história de fatos quase mitológicos. É que quero evitar que se tome por fantasia o resultado de minhas humildes investigações e conjecturas, embora não tenha lançado mão das referências, que me pareceram estranhas ao gênero do contador de histórias. Julgo, assim, dirimir as possíveis suspeitas sobre a veracidade dos fatos narrados aqui por esse velho rábula aposentado, que, por andar ocioso, findou por tornar-se um pescador:
“(...) Ao sul do Chade os potes eram conhecidos como as jarras d’água dos Saôs, ou Sôs, os lendários gigantes que substituíram os gueguéis e que eram tão altos que as aves de rapina vinham fazer ninho em seus cabelos. Esses gigantes eram considerados divindades entre os pigmeus e eram chamados os Senhores da Terra. Diz uma lenda das estepes africanas que um deles ascendeu aos céus em uma estranha biga flamejante.
Da argila os Saôs fizeram tudo: muralhas e casas, panelas, quartinhas, pontas de flechas, brinquedos, fornos, trempes, esculturas de antepassados, e estatuetas de animais. Mas foi como construtores de muralhas que passaram os Saôs à tradição (...).”
***
Algumas questões me ficariam no espírito de pesquisador, depois de ter concluído a leitura do tratado sobre aquela África pré-cabralina, celeiro de lendas e mitos que enformariam todo corpo da cultura de nosso tempo. Aqui vos deixo algumas dessas indagações.
Seria o gigante G’shua, o derradeiro de sua linhagem, vinda desses seus antepassados Saôs? Guardará o deserto africano, escondido em seus grotões, uma raça de colossos que um dia invadirá o Ocidente?
Quem sabe se um dia, os delegados das Nações Unidas terão uma desagradável surpresa, vinda daquele continente de nanicos desnutridos e miseráveis, excluídos de toda a riqueza global, e descobriremos, no futuro, que o super-homem nietzcheano, o homem acima do bem e do mal, será negro e não ariano, como supunha a horrenda ideologia que arrastou o planeta para uma guerra fratricida...
Quem viver verá...




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DEZ METROS POR SEGUNDO AO QUADRADO
Ou, de como cometer suicídio sem sentir dor.




Manhã de segunda-feira.
Cruzo a ponte Maurício de Nassau, distraidamente. Vou ruminando o insólito Recife osmaniano que acabei de ler:
A caminho da Delegacia Fiscal, atravesso a Avenida Rio Branco e vejo uma aglomeração perto da ponte Buarque de Macedo. Automóveis e ônibus arrastam-se em marcha lenta. Ouço comentários esparsos na esquina do Niágara... há um corpo estendido sobre o calçamento do cais do Apolo. De que morreu? Sabe-se quem é? Um desconhecido, o rosto coberto por jornais. Suicídio ou acidente?
Afasto-me pensativo a caminho do cais do porto. Leões osmanianos zumbem entre os sobreviventes apressados. Zumbem leões dentro de mim.

***

...Anteontem, depois de ter lido e relido, várias e demoradas vezes, a carta do afamado beletrista, Dr. Abdenego M. de Souza, resolvi ir até o ateliê do Mestre Pacceli. Estava deveras perturbado. Não imaginava – santa ingenuidade! – que a minha obra seria tão destratada. Pus-me a caminho do ateliê, ruminando essas coisas. Era de tarde e o sol ainda estava alto. Procurava, como de costume, a proteção das ruas ensombreadas da Boa-vista. O mestre Essênio Pacceli já havia mudado do velho endereço da rua dos Prazeres, 50. Alugara um sobrado antigo e espaçoso na Leão Coroado. Ficava no 1º andar e tínhamos de subir uma escadaria de madeira. Não havia ainda a campainha e nós gritávamos bem alto da calçada em frente. Eu e o Mestre andávamos tão sintonizados que muitas vezes ele punha a cabeça na janela antes mesmo que eu o chamasse. Dizia que percebia meus fluidos ao longe. Nunca liguei muito pra isso. Mas hoje estou mais próximo de crer. Minha mente está em um estado próximo dos êxtases místicos. O estado de numinoso jungueano. Era talvez por esse tipo de ligação que eu estava indo procurar o Mestre naquela tarde. Precisava de alguém que me ajudasse a fazer uma sincera autocrítica. Causou-me um choque a carta do eminente doutor. Tantos meses de trabalho. Dura rotina diante de uma máquina de escrever. Dores nas costas e outras algias incômodas. Meses de pesquisa. E como é difícil a pesquisa de um autodidata! É um tal de procurar aqui e ali. Escreve pra um. Aborda outro nos congressos, nos vernissage, palestras. Uma luta! Pra depois...isso. Uma crítica demolidora! Aviltante! Conversar com o Mestre me faria bem. Ele sabia como ninguém levantar o nosso astral. Era uma grande alma! Um mahatma! Seu pensamento esferista me abria a mente. A ele, de certo modo, devia a sustentação teórica de meu trabalho. Embora não fosse escritor, suas meticulosas argumentações sobre a arte me moviam a pena. Era plural, o velho bruxo da Boa-vista. Era, como ele mesmo gostava de dizer, esférico...
-- Porque tu falas tanto na morte em teus textos, Jorge? A morte é apenas uma passagem para outra instância. Como uma mudança de estado na matéria. Somos imperecíveis, meu amigo. O ser é indestrutível. Nada verdadeiramente se destrói. Tudo está mergulhado no transformismo fenomênico. Falas de uma entidade que não tem existência em si mesma.
-- Mas eu não falo da morte em meus textos, Mestre. Pelo menos diretamente. Tudo o que faço, penso ou escrevo, busca algo que está na morte e que, no entanto, não é a morte. Minha linguagem é a economia-do-medo-de-findar-no-sem-sentido. Em todos nós habita, de algum modo, esse projeto, secreto e inútil.

Minha mãe me dava muitos livros. Meu avô me dava muitos livros. Eu então me trancava no quarto. O meu quarto era o dos fundos, o que dava pra Pitombeira. Ali os sorvia, cada capítulo, frase por frase, com uma avidez estranha. Quase em transe! Foi por esse tempo que comecei o meu projeto. Secretamente, transformei a arquitetura do quarto. Construí portas secretas que davam pra outros mundos. Janelas que davam pra amplidão. Mamãe me via escrevendo e dizia que era melhor que eu cuidasse de estudar e parasse de copiar modas. Modas, quer dizer, modinhas, canções. Na época eram populares os jornais-de-samba, folhetos com as músicas preferidas do rádio. Não, Dona Joaninha, não eram modinhas. Não se preocupe, Seu Cabral, seu filho não é um maricas. Não eram modas, eram poemas. Os mesmos que eu um dia iria queimar em uma de minhas crises depressivas. Poemas fugazes de paixões mais fugazes ainda. Alguém me disse, foi um desperdício, a cremação. Deveria ter queimado meus desencantos por dentro. Ora, meus desencantos só findariam se eu me atirasse às chamas. Eu era covarde demais para o ato. Tremi. Não era ainda meu dia... Menino, abre esse quarto! Ó Jorge, apaga essa luz!...

Dezessete andares, possui o prédio do Banco. Construção dos tempos milagrosos da ditadura, ergue-se, imponente, entre o rio e o mar. Daqui de cima pode-se ver todo o Recife Antigo. A brisa do Atlântico sopra forte e faz tremular a bandeira azul e branca que foi fincada aqui na cobertura. Lá estão os rios de minha terra! Encontraram-se por trás do Palácio do Governo e seguem abraçados para encontrar o paredão do cais do porto. Conseguiria eu, ajudado pelos ventos do oceano, conseguiria eu, num salto-pássaro-audacioso, alcançar os cães implumes, mergulho profundo nos rios-irmãos?


Sempre amei o rio, a lama, o manguezal. Pensava em misturar-me ao povo ribeirinho. Lá estão as baiteiras! Olha lá! Meninos pardos mergulham cinzentos na lama escura para apanhar mariscos cor-de-chumbo. Vida sem cor dos miseráveis! Do Olimpo, espiam indiferentes os demagogos e os tecnocratas. Dói ver a indiferença dos deuses...

Houve um tempo em que me afastei do convívio dos intelectuais e artistas que freqüentavam o ateliê do Mestre. Busquei a amizade dos pescadores. Conversas de aprendiz com os mestres-de-barco. Farras com os lúmpens das palafitas da Ilha-sem-Deus.Tentativa inútil de me sentir povão. Mas, sou um homem marcado. Indigno de viver entre os humildes. Confesso-me um forasteiro entre os simples. Um espião no meio do povo da maré. Um fingidor! E os que lêem o que escrevo sentem bem, a dor lida. Não a minha dor, fingida, mas a dor que eles não têm...

Entre mim e o rio quantos metros? Quantos segundos? Dez metros por segundo ao quadrado. Entonteço. Vertigem. Ânsia de saltar, pássaro breve. Impulso Livre era o título de um de meus poemas adolescentes. Falava de um salto: a queda em liberdade, o vazio e a brisa, breve carícia em minha face. Dez metros por segundo ao quadrado. Deliciosa, a gravidade; poética, a impulsão...saltei?
O herói aristotélico é um homem bom que comete um erro trágico (hamartia). Caminhar cegamente (peripetéia) é o erro trágico: pretende alcançar um certo resultado e consegue o oposto. Finalmente, chega à percepção da verdade (anagnorisis), ao abrir de olhos, ao tardio clarão que ilumina a escuridão, e reconhece o que fazia a si mesmo.

...Saltei. E o Capibaribe, ou o Beberibe, cães sem plumas cabralinos, estão margeados por faces estupefatas. Capivaras? Rostos estranhos na calçada à cabeceira da ponte Buarque de Macedo. Os passantes me apontam narizes curiosos. O que é que vocês fazem nessa loucura de vida? O que busca essa manada? Ouço o tropel de mil reses, mil, desgarradas. Os filmes que vi na infância. Epopéias sádicas de colonos bretões. Massacres de apaches desarmados. Velhos índios decrépitos, mulheres grávidas e pequenos peles-vermelhas dizimados pela briosa cavalaria americana...

O Capibaribe passa lentamente arrastando consigo o Beberibe vagaroso. Os carros passam lentamente. O tempo escoa, o tempo escapa, o tempo escorre lentamente, segunda-feira abaixo. Escorre o sangue de uma ampulheta, vagarosamente, e vai tingindo a calçada em frente ao Banco. Rente ao meio-fio desliza um veio, rubro veio, lama sanguínea, escorre pela sarjeta. Sinto na boca um estranho gosto de sal. Ouço, (ou evoco), uma lenta sinfonia ao longe: “A Vida do Herói, Poema Sinfônico, Opus 40, de R. Strauss”. Andamento grave, solene. Às vezes a música vai sumindo, vai sumindo, sumindo, sumindo, até que... ...reaparece em uma finíssima flauta. Finíssimo flautim em meus silêncios. Morrer deve ser assim: uma pausa no andamento imprevisto dessa sinfonia. Haverá um Maestro a reger tudo isso com sua inexorável batuta? Em certa fase de minha vida preocupei-me em demasia com isso. Aos poucos aprendi a conviver com o transitório ser sinfônico em que habito. Mansamente começa a cair uma chuva fina sobre a Mauritztad. As pessoas buscam as marquises do Banco e... ...a música cessa.
...Chove em algum lugar dentro de mim. E os pingos da chuva em minhas vidraças soam música. Dança na chuva um casal. Nas ruas da cidade dentro de mim, dança um casal. Mas, de repente, como em uma antiga película já desgastada pelo tempo, a música some. Dança o casal, mesmo sem música, ainda dançam, mas agora lentamente, slow motion, quase parando...Ouço então uma voz longínqua como um silvo, acutíssima. Uma voz? Um apito estridente? Uma sirena!
Ah, é uma sirena! Veio crescendo-me dentro, contínua e aflita, uma sirene agudíssima. Uma ambulância. Os esgotos sangram e avermelham a água dos rios que passam no Cais do Apolo. Há abelhas nas flores vermelhas do velho flamboyant. Explode branca, a ambulância. Os policiais espantam as abelhas e os curiosos. Deixam ficar apenas, vitoriosa e branca, a ambulância. Que é que essa gente tanto procura sob os jornais ensangüentados? Vejo, entre esses olhos curiosos, dezenas de olhos curiosos e estranhos, os olhos marejados de minha mãe. Que faz aqui dona Joaninha com esse olhar vazado?...Uma mosca irritante pousa em meus lábios. Tento afastá-la inutilmente. Começo a tomar consciência de meu estado. Essa mosca, tão frágil e diminuta, é, nesse instante, mais poderosa do que eu. Eu, --um legítimo representante de Homo Sapiens--, impotente diante de tão irritante criatura. Dominador dominado. Escravo. Entendo agora com clareza o que dizia Voltaire: “Em que consiste, pois, a vossa liberdade, senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia, com absoluta necessidade?” Mais livre do que eu, esse inseto. Irritantemente livre ao esvoaçar sobre meu rosto. Mas, o que digo? Será livre o irracional? Não sei suficiente metafísica para responder-me essa questão cartesiana. Mas, que importa agora a metafísica? Arre! Irritação fascistóide: vontade inútil de poder parar as asas rápidas dessa moça. Dessa moça? Ato falho. A impossibilidade é uma prisão terrível, moça. E acabo de tomar consciência de minha impotência diante de uma pequenina mosca. Vitoriosa, pousa sobre o meu nariz a mosca. Nada posso fazer nesse momento. A moça branca em trajes brancos troca por alvos lençóis esses jornais. Percebo, com alívio, o pequenino ponto esvoaçante afastar-se ante essa branca e providencial presença. Seus olhos me fitam com angelical ternura...

Os olhos vazados de minha mãe. Lembrança ruim: cuidava da enorme palmeira do quintal da casa de Tejipió, quando um dos talos, uma haste esverdeada, espetou-lhe o olho esquerdo (ou foi o direito?). Era danada pra se acidentar, Dona Joana. Outro dia prendeu o dedo na espreguiçadeira do terraço. Foi um Deus nos acuda! Ainda bem que morávamos na rua do Pronto-socorro. De casa ouvíamos as sirenes nervosas das ambulâncias chegando e saindo. Era uma correria como essa: a mesma pressa e o mesmo nervosismo. Pra que tanta correria, minha gente? O pior já passou. Nunca gostei de pressa. Nada para mim era urgente. Isso desde a meninice. Tempo bom, o da meninice: tardes bucólicas com cantar-de-galos, sítios com mangas no Sancho... rio do Paul, rio Triângulo, -- piabas e traíras, águas tranqüilas --, passavam lentos pelas campinas-hoje-favelas. Tantas lembranças agora, por que? Parece até que um filme de minha vida rola, instantâneo, diante de meus olhos. E essa ambulância que não pára de correr? Será que não alcancei meu objetivo? Dezessete andares e uma rua com vento a favor.Não devia ter ousado. O nome desse cais não trazia bons presságios. Por que não Dionísio ao invés de Apolo? Seria mais aprazível à alma. Alma? Que alma?
Alma: do latim anima, o princípio espiritual do homem, concebido como separável do corpo e imortal.
Alma...sou uma?
Por coincidência, hoje é segunda e minha mãe dizia ser bom acendermos velas para as almas nesse dia. As almas carecem de luz, dizia-me.
Ouvindo o som estridente dessa sirene, creio que, antes de luz, as almas carecem é de silêncio. De silêncio e de paz...

Mandam-me flores. Coroas-de-flores, cravos, rosas, flores perfumadas, corbeilles. Meus pais as recebem sem a alegria de quem recebe flores. Alguns dos que as trazem conversam baixinho pelos cantos da casa. Mas,...foi por causa dela? Ela era apenas mais uma entre tantas na vida do Jorge. Uma entre tantas? Tento retrucar. Ninguém me ouve. Não. Ela não foi apenas uma mulher. Foi a afirmação de minha fragilidade como homem, de minha limitação enquanto pessoa. E não pensem que isto que digo (será que me ouvem?) trata-se apenas de autoflagelação. Não. É pura constatação de fatos. Ela surgiu nessa história em um momento incomum. Veio ao encontro de um processo que evoluía dentro de mim. Não era apenas Mulher. Era Signo. Trazia Cabala. Guardava, em suas mãos franzinas, o Destino. Não era apenas Mulher, mas Sortilégio.
Mandam-me, os parentes e amigos, muitas flores, coroas. Coroai-me de rosas, como na Grécia, dizia o poeta português. Coroai-me de rosas – rosas que se apagam em fronte a apagar-se tão cedo! Coroai-me de rosas e de folhas breves. E basta...

Alguém sugere a leitura de algum de meus poemas. Mas, os poemas...Eu os queimei. Vocês não sabiam? Perguntem ao Mestre. Foi anteontem. Estava em uma crise depressiva.. Pensando mesmo em desistir disso tudo. Então fiz uma fogueira lá atrás do Mercado da Boa-vista. Não foi, Mestre? Talvez tenha ficado algum dentro da velha agenda verde. Creio que essa agenda perdeu-se. Ou ficou com ela? Tive vontade de queimá-la, mas não a achei. Uma agenda pode ser algo cortante. Reabre cicatrizes. Abrir uma agenda é desejar viver o que já passou. E aquela era uma agenda feita de sonhos, doridos sonhos. Devia mesmo era ter queimado essas lembranças...

Mamãe achou a agenda verde. Meu Deus! Não estava com ela! Devia tê-la queimado. Não gostaria que todos aqui soubessem de seu conteúdo. Pra que recordar essas bobagens? Poemas, velhas anotações para um romance esferista, planos de obras nunca acabadas, minha guerra sem testemunhas, minhas coisas: minha nudez. Essa agenda realmente me desnuda. Um poeta se veste de palavras para ficar mais nu, dizia o Mestre. E tinha toda a razão. Véus ou nudez, a Palavra? indagava-me, certo dia, o poeta Getsêmane Barros, entre cervejas, no bar da Algaroba. Hoje, impotente diante dessa agenda em mãos alheias, chego à conclusão que procurávamos. Véus e nudez, a Palavra, Getsêmane, véus e nudez...

As alunas do Mestre Essênio chegaram, trazendo rosas amarelas. Dizem que simboliza a amizade. Os artistas-plásticos gostam desses detalhes. Simpáticas e esteticamente perfeitas essas rosas, formando uma circunferência amarelo-ouro, solar. Circunferências lembram-me sempre as nossas fecundas discussões sobre o Esferismo. Deliciosas conversas etílicas nas tardes da Boa-vista. Sempre achei o Esferismo muito parecido com o Perspectivismo de Ortega y Gasset. Mas achava indelicado sugerir isso ao nosso generoso e sexagenário Mestre Essênio Pacceli. Bons tempos...mas o grupo Esferista se dispersou. O Getsêmane depois que mudou pro Ibura, anda meio sumido. O Zenóbio e seus Fractais, quem viu? O Serpa Lopes, figura esguia e quixotesca, já o vi pelos cantos da casa, Poliana chorosa. Concha, sempre calada. As colegas da Faculdade também chegam, trazendo rosas nas mãos. Lembram-me os funerais do Claudionor: dei uma rosa vermelha a cada uma delas. As rosas ficaram sobre seu túmulo, inúteis. Mas que assunto triste é esse agora? E por que vocês estão me olhando desse jeito?

Os círios à minha dextra quase se apagam. Alguém, sacando um isqueiro, acendeu cada um, reverentemente. A pequenina chama tremeluziu, frágil, fugaz. Nós todos naquela saleta tremeluzíamos, frágeis, fugazes. Meu pai aproximou-se de mim, fugaz e frágil. Seu hálito familiar: já tomou uma! Beijou-me a face, coisa rara em seu Cabral. Não era dado a carinhos comigo. Não que não me estimasse. Fazia-me notar seu amor de outras maneiras. Era um abraço, um tapinha nas costas. Mas, beijinhos só nas meninas, Elaine e Dinéia. Eu era o machinho da casa. Ah, seu Cabral, por que não me beijou em outro momento? Mamãe se aproxima de nós com o meu Mestre do lado. Meu Deus, vão ler mesmo a agenda. Pra que reler esses poemas?
“Incumbimos dessa leitura o senhor Essenio Pacceli, pela proximidade que tinha com o nosso Jorge...”
...Faz-se um silencio sepucral. Mestre Essênio abre a agenda em sua primeira página. Todos entreolham-se curiosos e reverentes. A sombra do Mestre projeta-se, gigantesca, na cumeeira. Ouço um dobrar de sinos. Há uma igreja aqui perto? Desabam sobre mim as palavras do Mestre, marteladas, as palavras, retumbam em uma bigorna. Caem pesadas, as palavras. Pancadas de aldrava em nossos tímpanos. A dútil voz do Mestre rasga uma trilha no silêncio. Ecoam as palavras, minhas palavras, dentro de minhas recordações. Façam-no parar! Não me façam reviver essas dores. Estão surdos? Não quero ouvir isso! Nesse instante, ouve-se lá fora um bate-estacas. Escuto, aliviado, o bate-estacas. Breve erguerão um novo prédio no terreno baldio defronte à casa de meus pais. Ouço o ruído das máquinas. Ruídos modernos da vida. Eh, mundo lá fora cheio de vida! Vozes álacres crianças jogando bola, buzinas, o pio das aves! Salve os ruídos do mundo! Mundo and roll! Pedras rolando! Rumores, canos-de-escape, locomotivas, pedreiras, soam sirenes, cargueiros, mundo lá fora rugindo, ciciando, estrugindo, ferreando! Invadam-me sons do mundo! O bate-estacas enterra estacas em minha alma. Sou um terreno baldio de mim mesmo em frente à casa paterna. Ritmado, o bate-estacas bate estacas. Ritmada, a voz do Mestre recitando. Por favor, parem com isso. Por favor, ninguém me ouve?...
***
Apesar da sombra benfazeja desses oitizeiros, jambeiros, mangueiras; arvoredo secular de aparência tão grave e imponente quanto a dessas edificações neo-clássicas onde abunda o mármore de Carrara; apesar disso não gosto, nunca gostei, de entrar aqui. Desprezo esses funcionários municipais, cabotinos, com ar fingidamente respeitoso, reverência mal-disfarçada, hálito de aguardente. Se eu pudesse nunca entraria nesse lugar. Tudo aqui me deprime. As flores ficam tristonhas nesses quartinhos contíguos e mal-asseados. Desolados e desoladores os cortejos atravessam o pátio arborizado. Os mais velhos persignam-se defronte da capela de Santo Amaro das Salinas. Um dos cortejos caminha em meu encalço, mas sem muita pressa, andar pausado e grave no átrio silente. O silêncio amplifica cada ruído. Piam bem-te-vis nas copas dos oitizeiros. Ouve-se um choro de mulher carpindo. Jogam-se flores sobre a terra revolvida de uma escavação recente. O que irão semear nessa abertura? Meu pai pede a pá ao funcionário de macacão azul. As pessoas começam a atirar, solenemente, uma após outra, várias pás de terra fértil sobre os cravos quase murchos. Estranha semeadura! Ouço uma voz familiar lendo um de meus mais tristes poemas... afasto-me compungido por entre as árvores frondosas. Tento conter as lágrimas quentes. Lágrimas fundas e purificadoras.
Do lado de fora desses átrios a cidade ruge. Rumores da vida lá fora me chegam da praça que há ao lado. Taxistas e floristas conversam sobre o tempo. Os ônibus, superlotadas esperanças, atravessam ruidosos a avenida da Saudade. Hoje é terça-feira nessa cidade das pedras que seguram o mar. Meus amigos e parentes mais humildes voltam pra casa a pé. Meu nome está nos corações saudosos.
Quem diria? Domingo ele esteve comigo no ateliê. Eu senti que ele não estava bem. Subiu as escadas mais devagar do que sempre. Dirigiu-se ao sótão, cabisbaixo. Um silêncio de impressionar. Pouco depois desceu, ainda calado. Pediu-me um café. Falou-me de uns originais recusados por uma editora. Estava meio ressentido com um certo beletrista. Despediu-se de forma estranha. Levava consigo um saco plástico cheio de papéis, que imaginei serem os seus manuscritos. Vi, de relance, meio escondida, uma garrafa de álcool.
-- Pra que esse álcool, Jorge?
Não respondeu. Desceu lentamente as escadas e seguiu na direção do mercado da Boa-vista. Depois disso não mais o vi. A notícia chegou-me através de Tia Morena, que mora aqui perto, nos Coelhos.
-- Seu Cabral ligou pra você. Notícia ruim. Morreu um amigo seu. O filho dele, o que trabalhava no Banco, aquele... o poeta...



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CRUZADAS



Penhorou seu mais precioso bem: a clarineta.
Voltava pra casa, cabisbaixo e taciturno. Um vazio n’alma sob o braço. Acostumara-se ao contato aveludado da caixinha do instrumento. Arma, com a ponta dos dedos no antebraço, um melancólico lá menor. Dedilha um relativo, uma preparação, todo o intervalo e volta ao tom menor. Há um samba triste ecoando em seu ouvido. Um samba-canção. A voz é de Baracho, o Expedito, não aquele da ciranda; a música é de Capiba: “...as tuas palavras caíram bem dentro de meu coração...”. Dedilha no antebraço e vai assobiando melodiosamente, chamando a atenção dos transeuntes. Está em plena Rua Nova, um pouco triste, mas aliviado.
Pelo menos me vi livre dos credores, resignava-se. Como cobriria aquele cheque emitido sem a devida provisão de fundos? Dois meses de aluguel, escola das crianças, feira, água, luz, há três meses sem uma tocata, carnaval ainda longe...o jeito foi se desfazer de seu estimado “Bicudo”.
Começa a chover e ele percebe a melodia dos guarda-chuvas se abrindo. Ruflam como asas negras por toda a Rua Nova. Seu ouvido absoluto ouve a música dos pingos d’água. A percussão das sombrinhas se abrindo. Sobe num banco de jardim. Abre os braços e começa a reger a orquestra de guarda-chuvas. Sua alma voeja sobre os transeuntes espantados. Os guarda-chuvas sobem e descem, como pistos, a seu comando. Fecha os olhos e toda a Rua Nova, as transversais, a Imperatriz, toda a cidade lhe obedece, qual filarmônica, as batutas imaginárias.
Atravessou a ponte, em um adagio. A multidão o arrastava, allegro ma non tropo, na calçada. Trazia a música n’alma, vivacce, nos músculos, no sangue. Tinha algo a comprar que não lembrava... Ah! remédios para a esposa. Anticoncepcionais. Humm! palavras-cruzadas e cigarros, sim, um maço de cigarros. Ela iria gostar. Gostava mais de palavras-cruzadas e cigarros do que de fazer amor. Ficava horas na cama, fumando e decifrando charadas. Se ele esquecesse dos cigarros dela, seria o seu fim. Que mulher briguenta, meu Deus! Tão diferente de mim. Se não fosse sua mania de gastar, seu consumismo desenfreado, eu talvez nem tivesse penhorado o Bicudo.
Desceu pela Imperatriz e rumou para a Boa-vista, flanando pelas lojas e bancas de jornal. Viu algo na vitrine do “Ao Rei dos Violões” que lhe chamou a atenção. Ficou ali parado, boquiaberto. Ainda regia, distraidamente, a sua orquestra imaginária. As pessoas passavam por ele sorrindo.
-- Um songbook do Pixinguinha! Meu irmão!
De repente, em um movimento inadvertido, desceu da calçada. Ainda ouviu alguém gritar, numa voz distante, em um falsete:
― Ei, moço, cuidado... o caminhão!
***
Era um Mercedão novinho em folha. Valeu a pena dar duro anos a fio naquela pedreira. Com uma pequena ajuda de seu pai e com as economias que guardou dos bicos que fazia no fim de semana com o ‘baú’ da transportadora, agora tinha comprado o seu próprio caminhão. E nada melhor para comemorar o momento do que sair com sua amante. Hoje beberiam até passar da conta, depois ainda esticariam até aquele motelzinho da beira da estrada. Hoje ela ia gemer na sua mão. Ah se ia!
***
Ligou para a vizinha da amante e, como sempre faziam, marcaram em um bar afastado. Ela era casada, mas eles já saiam há vários anos. Morena clara, bem feita de corpo, muito fogosa e não se dava bem com o marido na cama. Coisa de pele, de química, dizia. Então divertiam-se juntos, ‘ficavam’, sempre que podiam. Por uma casualidade dessas qualquer que o destino nos apronta, inventaram de passar na casa de uns amigos no centro da cidade. Tudo ia tão bem: caminhão novo, seu amor do lado, umas cervejas...quando, de repente, aquele maluco desceu a calçada numa rua estreita do Pátio de Santa Cruz. A traseira do caminhão jogou-o longe. Não deu tempo de freiar.
― Severino, você bateu no homem!
― Não deu pra desviar dele. A rua era estreita demais. V’ambora, Ivone! Era só um bêbado!

***

Ficou ali agonizando, enquanto os populares fizeram uma roda em torno dele. Um dos curiosos foi chamar a PM. Nem vira como foi aquilo. Chegou logo o socorro e o meteram no primeiro táxi que apareceu. Em poucos minutos adentrava a emergência de um hospital público. Doíam-lhe as pernas, os braços, as costelas. Parecia que uma manada de elefantes furiosos havia passado por cima dele. Sentia um gosto salgado de sangue na boca. Tentou abrir os olhos. Estavam opados. Mal conseguia enxergar. Deitaram-no no chão de um corredor e ali ficou por horas, até que um enfermeiro lhe injetou uma agulha grossa em sua veia. Adormeceu mansamente...Antes de morrer balbuciou uma frase enigmática. Na boca, um sorriso sereno: ...quatro romanos e um inglês, uma e duas...

***

Apesar do acidente com o homem bêbado na rua, a tarde foi deliciosa. Tiveram orgasmos múltiplos e, no fim do dia, entre beijos, a amante decidiu contar tudo pro marido. Não dava mais pra continuar naquela situação. Seria melhor assim. Jamais conseguira um único orgasmo em casa. Seu esposo não sabia lhe fazer vibrar as cordas mais íntimas. Gostava de homens rudes. Muito educado pro seu gosto, o clarinetista.
Ao chegar em casa deram-lhe a notícia: o marido fora atropelado, hemorragia interna, coitado, não resistiu. Ao que retrucou, levemente compungida: Deus sabe o que faz e o guardará em bom lugar...era um bom pai e bom marido, generoso e pacato.
As lágrimas correram pelo seu rosto, sinceras, mas, levemente agradecidas.
Ao baixarem o caixão, um amigo do morto solfejava o chorinho Lamento, de Pixinguinha...outros, tímidamente, aplaudiam.



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DE TIAS VELHAS E DE CÁGADOS




As palavras não são meros veículos de comunicação,
mas, também música e símbolos mágicos...
(J. L. Borges, in Ficções)



Vestia-se à moda africana: pano da costa envolvendo a cabeça, caindo sobre os ombros seminus. Um rosário de contas azuis, pingente do pescoço, segura o patuá que descansa no encontro dos seios. Atado à cintura um raminho de arruda, e o imprescindível Santo Lenho. A saia é comprida e frouxa, -- com alegres estampas florais, rosas vermelhas, dálias --, e sempre sem nada por baixo, costumes ancestrais dos xucurus. Dizia-me, sem aparentar nenhum pudor, ter muito fogo nas partes e alergia a calcinhas. Quando calor, abanava-se com a barra das saias, deixando entrever as coxas morenas de uma pelugem negra e aveludada.

***

O cágado andava mansamente pelos cômodos da casa, esgueirando-se por trás dos poucos móveis. Um sorriso cínico na pequena fenda entreaberta na ponta do pescoço avantajado.

― Deixa ele solto pela casa, tia?
― E porque não? Protege contra a zipra e afasta a minha dor no espinhaço.

Algo de enigmático me atraía na sua pessoa. Os olhos profundamente negros. Um negror da noite nos cabelos lisos, asiáticos. Aparentava uns quarenta e poucos anos. Não era uma velha, portanto. Filha de fim de rama de meu avô materno, em segundas núpcias, era ainda uma mulher viçosa, atraente. Uma cafuza, negra insinuante/índia sedutora, que mexia com minhas emoções adolescentes. Por isso não sei se devo atribuir aos meus hormônios em sua juvenil efervescência, o fato de que as lembranças daqueles momentos me vêm envoltas num certo alumbramento. Até hoje não sei o que delas são meras conjecturas, ou o que realmente vivi.
Lembro-me que os meus parentes mais velhos tinham uma certa rejeição aos costumes trazidos da aldeia por essa tia cafuza. Costumava receitar mezinhas antigas para aliviar dores crônicas. Criava bodes e cabras sempre de cor preta. Tinha um pombal e muitas galinhas, todas de cor preta. Coisa esquisita. Contudo o que mais os incomodava era aquele cágado solto pela casa, bicho libertino, debochado, senhor de tudo. Parecia mesmo ser o dono da casa. Era o xodó da cafuza, que acreditava piamente no poder curativo da presença do animalzinho.
Alguns parentes, os mais pragmáticos, viam nisso nada mais que uma tola superstição.

--Bobagens de velha.
--Crendices.

Esses me pareciam estúpidos, néscios, toupeiras. Jamais perceberiam nas entrelinhas da alma o poder da efabulação, a força da lenda, das parlendas, do mito. Julgavam que a atividade mental do homem fosse suscitada apenas pelas necessidades materiais da existência. Eram o lado terra-a-terra da família. Esqueciam, esses sabichões, as idéias de intelectuais do quilate do Sir Albert Towers, a dizer-nos que a atividade mental do ser pensante recebeu seu primeiro impulso das criações da imaginação, dos sonhos, mitos e legendas.
Decerto, a necessidade material força o homem a buscar soluções para seus problemas mais imediatos. No entanto, não rasteja, o homem, em um mundo sem símbolos, sem lirismo, sem magia.
§
Magia, eis a palavra!
§
Desde os primeiros passos da humanidade, ainda nas cavernas, já tentava, aquele incipiente animal semi-racional, afugentar seus inimigos com mágicas inscrições rupestres, transferindo para as figuras, por uma estranha força simpática, por analogia, as vicissitudes de sua vida frágil, diante de mastodontes e tiranossauros. Era a mágica primeva, impulsionando a mente do homem para os saltos, possíveis apenas com o uso da imaginação.
A fragilidade diante do ambiente hostil: eis o que até hoje move os homens e os faz pensar, ponderar, imaginar. No caso em questão, o da tia índia, o que há de hostil já não é a fauna paleolítica, mas um monstro ainda mais aterrador, que, como dizia Nietzche, nos surprende com suas botas envernizadas, e invade nossa privacidade, nossa vida: o Estado superpoderoso e concentrador da riqueza. O que leva milhares de pessoas ao uso de uma farmacopéia bárbara e irracional, mezinhas, simpatias, fetiches e outras soluções menos ortodoxas, para seus males do corpo e da alma, nos nossos dias, tem um nome diferente: miséria. Filha desse Estado nietzcheano e teratológico, a miséria despoja os homens de toda a possibilidade de acesso aos bens e ao progresso da ciência. Daí a busca da cura para os males do corpo e do espírito pelos caminhos escusos da feitiçaria, das rezadeiras, dos charlatães.
***
Nunca pude esquecer a casinha humilde da minha tia cafuza. A parca mobília: bancos de três pernas, uma jarra. A cama. Sim, era uma cama-de-lona, frágil e rústica, aprumada a custo em seus instáveis pés em xis. Naquela choupana às margens do rio Pina, há muitos anos, vivi uma incrível experiência. Contava eu uns dezesseis anos, ela, com já vos falei, quarenta e uns. Dizem os mais velhos, e creio, com muita sabedoria, que quem conta um conto aumenta um ponto. Pois, ciente desta admoestação dos antigos contadores de causos, tentarei rememorar o que me restou daquela noite singular.
Sim, pois era noite. E a lua brilhava em plenilúnio sobre os quintais arborizados. Estava eu a caminho de casa, voltando mais cedo do colégio, quando resolvi passar na casa da tia Jarina. Assim ela se chamava: Jarina, vocábulo tupi que significa, em vernáculo, Flor-do-campo. Morava naquele casebre tão desprovido de tudo, mas recebia as visitas com surpreendente fidalguia.
-- Ser pobre não é defeito, dizia-me.
Adorava minhas visitas. Era um dos poucos da família que ia vê-la de vez em quando. Nessas ocasiões, servia-me mangas e cajus colhidos no quintal. Ás vezes, um chá delicioso, com ervas que dizia serem afrodisíacas. Nossa conversa girava sempre sobre trivialidades. O tempo, as chuvas, as marés altas de agosto, a estação das frutas. Depois enveredava pelo seu assunto preferido: as moléstias e a sua cura por meio de encantamentos. Filha de índios, tinha o sonho de ser morubixaba. Trazia esse anelo secretamente, desde menina. Amava a feitiçaria, a pajelança: os cantos, o baticum, a melopéia encantada. Ia falando e seu semblante se iluminava. Os olhos ausentes, falava e balançava o corpo, como se estivesse na taba, no meio do toré, dançando nua e livre. De repente sua voz ia ficando rouca, roufenha mesmo, gutural. Começava a discorrer sobre uma farmacopéia bárbara e escatológica. Descrevia-me, em transe, uma rústica etiologia de doenças rurais. Falava e me mandava anotar uma nomenclatura arcaica de moléstias, uma classificação digna dos boticários e físicos dos tempos coloniais. Quebranto, dor-de-veado, mau-olhado, maleita, vento encausado, catarrão amolinado, morrinha no corpo, estupor, fuleimação danada, espinhela caída, fraqueza do sangue, zipra, puxado do peito, cobreiro, carne trilhada, desmentimento, carnegão, impingem, dordói, terçol, galos, frieiras, tosse braba, dor no espinhaço, nervo retorcido, barriga d’água, papeira, unheira e chicotinho.
Em seguida, com aquela voz engrolada, sempre que encerrava o transe, me mandava escrever uma oração que usavam os bandeirantes quando se embrenhavam pelos sertões a dentro:

“Em nome do Deus padre, Filho e Espírito Santo,
ar vivo, ar morto, ar de estupor, ar de parlesia,
ar arrenegado, ar excomungado, eu te arrenego
em o nome da Santíssima Trindade...”

Naquela noite enluarada, depois de servir-me o chá, ela me chamou até o quintal. Acocorou-se entre os arbustos e disse algumas palavras cabalísticas. Depois atirou, com as mãos em concha, uma porção de farofa de dendê no meio do terreiro. Assentando-se sobre a farofa, estalou os dedos, como quem chama as galinhas:
-- Tss. tss. tsss.
Chamou uma, duas, três vezes até que alguma coisa se mexeu entre umas touceiras de capim santo, no recanto mais úmido do quintal. A tia esboça um riso safado no canto da boca. Olha pra mim e olha pro mato, como se me convidasse a assistir àquela cena insólita. Eis então que, arrastando-se de dentro do mato, surge o enorme cágado. A lua brilhava nas dobras de sua carcaça arredondada. Enquanto andava, sua cabeçorra alongada e fálica entrava e saia da carapaça. Tsss, tsss, tsss, chamava a tia índia com certo frenesi. O cágado vinha vindo, voluptuosamente, com seu andar malandro e arteiro, na direção da cafuza. Ela então puxa a barra da saia até os joelhos. Sentada quase de cócoras, sua vulva peluda aparece inteira e entreaberta. A índia em gesto ritual espalha a farinha amarelada nos lábios enormes da xoxota. Do canto de onde eu espiava senti um arrepio por todo o corpo. Excitei-me. Era uma situação estranha e lúdica. O cágado apressou o passo, esticou o imenso pescoço corrugado, mergulhando-o na farinha. Num vai e vem sensual, a cabeça, ora estendida ora recolhida, entrava e saía com sofreguidão naquele mar amarelado de pêlos pubianos e de farofa. Por alguns instantes, uma magia encantatória se apossou de mim. Senti-me estremecendo de gozo. Alguma virtude anímica me dava a impressão de que eu estava no corpo daquele animalzinho e que o meu membro endurecido era mesmo o seu pescoço agigantado. Ouviam-se na noite enluarada os gemidos da tia índia, os meus gemidos. Em êxtase, desmaiei sobre o corpo moreno avermelhado de Jarina, Um aroma afrodisíaco de flores silvestres invadiu o meu ser.
Acordei espichado em uma esteira, o cheiro de chá quente em minhas narinas. Minha tia me olhava, sorriso enigmático e sonso, dizia-me:
-- Gostou?
-- Ahn...
-- Gostou do cházinho de tia, meu caboclinho?



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SETE SALTOS MORTAIS
(um conto circense)



Dizem que em certa região da Ásia sul-ocidental, conhecida por Costa de Malabar, entre os cabos de Comorín e Deli, porção da então chamada Índia Britânica, os aborígines desenvolveram especial aptidão para um curioso tipo de entretenimento. Esses autóctones, que fundariam uma civilização material das mais avançadas, costumavam distrair-se com a formulação artificiosa de conceitos, abstrações e de engenhosos problemas com coisas palpáveis ou impalpáveis de difícil solução. Havia neles um instintivo e ancestral prazer da disputa. Mas o que disputavam? O poder através do equilíbrio, da destreza e da simetria. Criavam os artifícios mais diversos de que lançavam mão para lidar com coisas instáveis, incertas e difíceis. Inventavam assim suas originais competições. Eram os chamados jogos malabares.
Por estarem submetidos ao rigoroso sistema de castas indiano, cada grupo social ou religioso enveredou por uma distinta forma de criação de seus lúdicos exercícios. Os malabares da mais alta hierarquia e mais refinada educação tornar-se-iam filodoxos, coisa semelhante aos nossos filósofos, criando cada competidor as cosmogonias mais complexas e os mais intrincados problemas de lógica e ontologia, com a mera finalidade de confrontar opiniões e vangloriar-se. Eram especialistas em retórica e gabavam-se do número de citações em línguas mortas Deve-se ressaltar que filosofavam em inglês, estando sob domínio britânico. Divertiam-se, com isso, negando a bazófia heideggeriana de que só se pode filosofar em alemão.
Até hoje existem universidades e outras instituições por todo o mundo que funcionam nos moldes dos filodoxos do Malabar, construindo dezenas e dezenas de teses e teorias acadêmicas complexas que comprazem-se num estranho jogo de palavras, geralmente, solenes e perfunctórias.
A casta intermediária, espécie de classe média, composta de profissionais liberais e militares, convivendo sempre em contato com os ingleses e outros ocidentais ociosos em tempos de paz, inventaram os jogos de salão, os chamados pachisis ou ludos, precursores dos nossos baralhos, damas, xadrez e gamão.
A casta inferior, o povão, essa, a mais autêntica e espontânea, gerou, com a inventividade que emana das classes populares de qualquer parte do planeta, a mais extraordinária das atividades lúdicas do mundo moderno: o malabarismo. Uns se tornaram contorcionistas habilidosíssimos, e outros tantos, exímios equilibristas. Todos dedicados a posições e movimentos os mais complexos, exóticos e extravagantes. Alguns indivíduos dessa casta inferior, os mais fanáticos, se tornaram faquires. Sobre esse grupo cabe aqui fazer uma observação. Desde as épocas mais remotas a Índia conheceu essa espécie de santos que hoje chamamos de faquires. Adeptos do nudismo, das auto-flagelações, meditações extáticas e suicídios pela prática de jejuns de trinta dias, muitos desses ascetas tinham nessas penitências, finalidades sublimes e espiritualizadas. No entanto, uma grande parte deles perseguia apenas objetivos temporais, prestígio e o domínio de poderes mágicos, dentre eles, a hipnose. O legado desses santos-feiticeiros foi desenvolvido no ocidente por diversas sociedades teosóficas e esotéricas.
Não cuidemos, no entanto, que os jogos malabares das castas inferiores eram meramente físicos. Suas contorções eram calculadas minuciosamente, com os mais abstratos recursos matemáticos e geométricos. Malabarismo, entre eles, desde então, se tornou uma expressão que significava exatamente essa aptidão superior para lidar com o instável, o incerto, o imprevisto. Mesmo assim, devido ao preconceituoso “sistema de castas” que subsiste silenciosamente nos meandros da civilização ocidental, as atividades malabares são, até os nossos dias, exercidas sempre pelas camadas menos favorecidas da população. É o povo, a gentalha, o lúmpen proletariado, quem traduz em suas habilidades, algo arcaico e milenar: o malabarismo remanescente dessas culturas excêntricas da Ásia oriental, que encontraremos preservado na vida circense de qualquer lugar do mundo.

***
I

...NO PICADEIRO, o Espanador da Lua!
Estranha criatura, magérrima e descomunal.
Pendem-lhe dois braços enormes de um fraque surrado e azul. As mãos molengas balançam como as de um boneco gigante dos carnavais olindenses. Brinca, desengonçado, com dois outros bufões. Divertem o público com pilhérias e momices, chutando uma enorme bola colorida. A bola atravessa o vão das suas canelas finas, longilíneas. “Passou debaixo das saias”. As crianças riem, gargalham, mostrando nas boquinhas banguelas, felizes, mas, anêmicas, as gengivas descoradas. Enquanto isso, a bandinha -- um tarol, um tambor e um pequeno fole de oito baixos – (ah, e os pratos, o anãozinho com os pratos!) vai tocando um dobrado mal ensaiado e barulhento. Uma marchinha junina. A molecada, raquítica e feliz, aplaude:
Longe vão os tempos em que a platéia era dos Joões, Josés, Antonios e Severinos. Das Marias e Josefas e Quitérias. Hoje as mãozinhas dos Andersons, Clayssons, Evertons, Kellys e Raíssas é que aplaudem os corrupios e bundacanascas dos bobos no palco.
O circo vai resistindo a essa invasão cultural que batiza nossos Jocas e Zézinhos com esses nomes estrambólicos cheios de kás e ipisilones. Os invasores já não ocupam pelas armas, mas por instrumentos menos palpáveis e difíceis de serem percebidos. São invasores culturais. Lembro a reflexão osmaniana em trecho de um certo livro de Julia Marquezim Enone:
Matias de Albuquerque punha sentinelas nas elevações de Olinda, para anunciar os mastros inimigos. Mas quem vê as forças que hoje nos invadem?


II

O aspecto é de extrema penúria. A lona possui várias brechas por onde espiam os que não podem comprar os bilhetes. Mas, hoje não há espiões. Hoje é de graça! Apesar da extrema pobreza que é a vida dessa trupe mambembe, uma cortesia de Valtencir, o pançudo apresentador do espetáculo, abriu as empanadas para a meninada da favela. Crianças humildes e esquálidas, pés descalços, assistem ao espetáculo vespertino. Hoje é de graça!
-- Não foi ele, o Pançudo, quem liberou as entradas, cochicham alguns na platéia. Foi a filha, Dona Malu. Ela, sim, é que é bondosa. Apesar da tristeza depois da viuvez, ela continua sendo uma menina de ouro!



III

Chama-se Luiz, o Espanador da Lua. Desde de criança equilibra-se nessas pernas-de-pau. É o melhor palhaço equilibrista do Circo Mayra Luana. Ou melhor: Gran Circo Diversional Mayra Luana. Faz também acrobacias no arame e no trapézio e naquele velocípede de uma só roda, o monociclo. Contudo o que gosta de fazer mesmo é palhaçadas lá do alto. Pernas de sucupira. Pernas-de-pau. Há dezoito anos vive disso. Desde aquele ano em que conheceu sua Lu...


IV

Um circo havia acampado nas cercanias de Olinda. No lugar chamado Bonsucesso. Um largo bem em frente à sede do Homem da Meia Noite, calunga do carnaval. Eu tinha apenas dezessete anos. Fiquei fascinado! Toda aquela gente feliz, roupas multicoloridas, uma festa! E os trapezistas, que coragem! Saltos mortais sem a rede de proteção. Fiquei irresistivelmente preso àquela gente. Resolvi fugir de casa. Com eles eu queria conhecer todo o interior do nordeste e algumas capitais do Brasil. Comecei como tratador dos cavalos amestrados e logo passei a trabalhar com os palhaços, na abertura do espetáculo. Poucos meses depois, o dono do Mayra Luana descobriu minha habilidade com os equipamentos circenses. Todos. Desde o monociclo até o trapézio. Percebera que eu era melhor do que o César Augusto, o principal trapezista e marido da minha Lu. Nasci com o dom, pois era neto de artistas. Meu avô paterno fora malabarista. Eu sentia que era melhor do que o César. Mas, como eu o invejava... Ele era loiro, alto, carismático. Fazia sempre o número final. E depois ia deitar com a esposa, a “minha Lu”, filha do seu Valtencir, o Pançudo, dono do circo.
Dizem que a inveja é um dos sete pecados capitais. Mas, na minha vida, foi muito mais do que isso. Foi a força que me impeliu para ser o melhor artista daquele pequeno circo mambembe. Treinei muito, meses a fio. Até que um dia Seu Valtencir me colocou lá no alto. Passei a ser equilibrista. Andava no arame como se estivesse no solo. Fiz mais: levei o monociclo lá pra cima. Fiquei de pé em cima dele. Aos vinte anos era eu e não o César, a maior atração do circo. Mas enquanto ele era o galã, a paixão das mocinhas da platéia, eu fazia tudo com roupas de palhaço. As crianças me adoravam. Eu era a alegria do circo. No entanto, ele era a alegria das mulheres e especialmente de uma: da minha Lu. Isso foi o motivo daquela rixa que me levaria à loucura quase homicida. Dolo, culpa: sinceramente, desconheço essas palavras. Não me arrependo do que aconteceu. Não matei ninguém. Tenho quase certeza...



V

Por que cuido delas? Me perguntam às vezes por que cuido delas, meu amigo. Eu nem sei direito, Lulinha. Talvez seja essa minha solidão, a falta que eu sinto dele. Mas, não é só por isso...Eu sei que você me entende, não é? Você era a pessoa mais próxima dele. Estava lá naquele dia terrível pra nós todos... Sabe, Lulinha, eu cuido delas porque não tive a chance de ter filhos. Ele morreu cedo demais. Faria agora cinqüenta nos. Morreu aos trinta e dois. Jovem e em plena saúde...
Elas vêm chegando, sofridas, perebentas, com olhinhos carentes e eu vou lhes dando abrigo, carinho, comida. E elas ficam por aí. Foi assim com você, não foi. O César até nem queria que você ficasse. Teve um mau pressentimento ao ver você. Depois vocês ficaram tão amigos. Não foi? Eram como irmãos. Brigavam, discutiam, se metiam naquelas apostas malucas, mas, depois, estavam rindo. Ao te ver eu lembro sempre dele rindo... Adoro abrir as portas do circo para as minhas crianças. É o meu jeito de ser um pouco feliz...

***

Movimentos pendulares. Os corpos arremessados no espaço, balé sincrônico e gracioso. A vida em risco. Audácia e beleza. Ao fundo a música, o suspense. A proeza insuperável. A busca do limite do homem, do pássaro, do malabarista. Sete saltos mortais.

***

Por que, desde tempos imemoriais, os homens se digladiam? Combateram sobre bigas na Roma Imperial, disputaram nos torneios de cavalaria; embates pueris naqueles jogos de péla, citados por Cervantes no Dom Quixote; duelaram pela honra com esgrimas ou pistolas, e até nas tribunas políticas ou religiosas, numa estéril logomaquia. Às vezes, sozinho em meu quarto, diante da televisão, assisto ao futebol, tentando um olhar distanciado. E os vejo, os vinte e dois contendores, paramentados como numa liturgia. Adentram ao lugar da luta e desandam a correr atrás daquela esfera cheia de ar comprimido. Uma correria sem nexo aparente, lançando com a ponta dos pés a pelota em direção às redes armadas nas extremidades do campo. Olhando dessa maneira, o jogo, a partida dos pebolistas, não é muito distinta de outras disputas entre irracionais, como nas rinhas de galos ou de canários. Não faz nenhum sentido aquela correria. Mas, por que disputa o homem? Se ao menos fosse pela sobrevivência de uma das facções, como na célebre peleja machadiana que cunhou aquela frase final de humanitas: “Ao vencedor as batatas”. Ou lutasse pelo milenar motivo troiano, do amor e da mulher, que pode até esconder outros motivos menos românticos: o poder e a conquista. Por que disputam, afinal, os seres humanos?

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Palhaço moço:
“Por uma mulher. Foi por ela aquela disputa. Eu os ouvi discutindo. Parecia um duelo. Augusto desafiou Luiz para uma espécie de duelo. Isso mesmo, um duelo. Talvez eles não tivessem consciência do que ali estavam jogando. Não era o prestígio pessoal, a posição de melhor malabarista no trapézio. Não era nada disso. Por trás de tudo estava a disputa silenciosa por ela, pela mulher”.



Palhaço velho:
“Acho muito romântica essa sua visão. Que nada! Uma mulher é muito pouco para uma luta surda e cruel como aquela. Eles eram vaidosos ao extremo. Não foi por ela, coitada da viúva. Creio que a disputa, a competição em si, está na alma dos homens, como um prazer luciferino. O homem sempre quis superar-se, vencer suas limitações. Esse é o motor da civilização. Começou lá no Éden. O primeiro homem tentou superar a própria divindade, roubando-lhe os segredos das duas árvores. Primeiro a do conhecimento do bem e do mal e logo após, a árvore da vida. Não logrou êxito, segundo essa mitológica narrativa judaica. Porém, logo em seguida, tentou construir uma torre que atingisse o firmamento. O que queriam aqueles desgraçados povoadores de Babel, instigados pelo gigante Nimrode? Ser deuses? Talvez. Vaidade, meu amigo, vaidade! No âmago do homem há prometeicas aspirações. Mas o castigo divino é pior do que a morte. O castigo é que sempre haverá um limite a ser alcançado, e depois outro e outro e mais outro. E toda vez que se chega lá no topo ilusório da montanha, teremos que descer como Sísifo, para rolar novamente a pedra. Jamais nos livraremos dessa punição. Acorrentados ao outeiro das expiações, um abutre virá todos os dias roer nossas vísceras. Esse abutre é a nossa finitude, a nossa humana limitação. Jamais seremos perfeitos, nem eternos. Os jogos são uma forma de nos iludirmos dentro desse espaço limitado em que a divindade nos enclausurou. Perdoe-me, meu amigo de picadeiro, mas eu já faço momices há mais tempo por aqui...e, talvez por isso, não seja mais romântico como você.”

***

Eu me lembro bem daquele dia. Bem cedo, já havia reprovado e até proibido aquela aposta sem sentido. Era a minha obrigação como dono do circo. Augusto não tinha mais elasticidade pra executar aqueles movimentos. Mas, ele não se importava. Não aceitava o fato de que o Luiz, o palhaço, o ridículo Espanador da Lua, o superasse em técnica e agilidade. Eu pressentia o pior. Todos no circo sabiam que ali havia mais coisa. Havia mais do que a vaidade. No fundo Augusto devia desconfiar da verdadeira adoração do Luiz pela Malu. Desde adolescente que esse menino a seguia feito um cachorrinho. Gastava todo o dinheirinho que eu lhe pagava pelos espetáculos com presentes pra tia Lu. Era uma obssessão. Ele cresceu, ficou aquele homenzarrão. Bem, aquilo já não era certo. Creio que minha filha nunca percebera aquela platonica afeição. Pensava que eram criancices do Lulinha. Brincadeiras. Afinal, ele era um palhaço de circo. Vivia lhe fazendo momices, pregando peças nos outros. Mas eu, eu creio que era amor. Só não posso provar. E, naquele dia fatídico, o meu coração pressentiu a desgraça. Augusto queria humilhar o rival, mesmo sendo o desengonçado Espanador, pois não aceitava a sua concorrência no amor e na profissão. Nunca saberemos com certeza o que se passava em sua alma. Aquela seria a sua última exibição...

***

Não fui culpado. Mas, sabia que ele não conseguiria. Subi primeiro e saltei. Tomei impulsão e joguei o corpo: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete voltas sobre mim e...zás. agarrei-me ao trapézio que voltava. Retornei graciosamente ao topo da torre. Lá embaixo o vazio, o picadeiro sem redes. Essa era a aposta. Lembro do gordo Valtencir a gritar lá embaixo: “Parem! Parem com isso!” Mas ele já havia saltado. Ninguém pode me culpar de nada. A minha Lu passou um tempo me evitando. Mas eu a convenci de que foi ele que me desafiou. Parecia que queria morrer! Eu, hein! Não sinto nenhum remorso. Já não suportava espionar os dois fazendo aquelas coisas no caminhão. Todos os dias eu olhava pela fresta. Minha Lu, minha bailarina, frágil, franzina, sendo coberta feito as éguas amestradas de Seu Valtencir. O César montava nela com a brutalidade de um garanhão. Não sinto remorso algum! Hoje ela está livre de homem. Vai envelhecer sozinha. E eu serei seu escravo, seu guardião. Também não me casarei. Já estava mesmo acostumado à vida solitária e a gozar vendo seu gozo com aquele imbecil. Agora ela vive só e não goza mais. Eu também não gozarei. Vou envelhecer sózinho. Minhas mãos ainda são ágeis e fortes, mas com o tempo enfraquecerão...Um dia, quem sabe, saltarei como ele saltou. As minhas mãos tremerão como as dele e eu cairei no picadeiro vazio. Isso, um dia...mas, hoje, eu sou Luiz, o Acrobata, o melhor malabarista do Circo Mayra Luana! Já não sou aquele desengonçado Palhaço Espanador. Daqui a pouco subirei à torre central e mais uma vez demonstrarei a minha habilidade no ar. O público prenderá a respiração ao me ver girando sobre mim mesmo, por sete vezes. Sou o acrobata Luiz, o trapezista dos sete saltos mortais. Por isso, não devo sentir remorso. O remorso é indecente...e quem se arrepende é fraco duas vezes.
Um malabarista não pode pensar muito. Pensar é vacilar. Da mesma maneira, a vida é pra ser vivida. Vivi e estou vivendo. Podia ter caido, mas não caí. Na vida não há ensaio, como no teatro. A gente entra em cena e pronto. Não há tempo pra refletir sobre o que poderia ter sido. Vivo como salto, sem vacilações. Até o dia em que o abismo me engula, com sua boca banguela e ôca. Quando chegar esse dia já não serei mais eu, e nada me importará. De que adianta eu ser eu sem existir o circo, a platéia tensa que me aplaude, e, principalmente, a minha Mayra Luana. Viver é como saltar no vazio todos os dias. Mas a minha vida só se encheu de sentido neste circo. Saltarei sim, todos os dias, mas com a graça e a leveza dos saltos ornamentais. Até que chegue o instante em que mergulharei no vazio...e o fim.



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NATUREZA-MORTA



“sois, apenas, como neblina que
aparece por instante e logo se dissipa...”
(São Tiago 4:14)



Pernoitaram sobre a mesa, aquelas bolotas vermelhas, deixadas em uma vasilha de ágata. Algum sortilégio noturno, algum miasma, perpassou-lhes as polpas carnudas, e eis que amanheceram assim, bolorentas e maceradas. Aquele viço apetecível, aquela aparência rubra e suculenta se esvaiu. Um sopro letal deve haver na noite, no sereno. Algo imperceptível, que necessita das horas silenciosas da madrugada, para atingir o cerne vital das frutas, das flores...de tudo...
Contemplá-las, ao desjejum, nessa manhã introspectiva, traz à alma um estranho pesar. Há pouco, no lavabo, o espelho deixava entrever os inúmeros fios brancos que em mim despontam, que desapontam. Sinto-me frágil infrutescência, pênsil e pingente, feito fruto maduro. Atravessei, sem perceber, as noites frias desses últimos cinqüenta anos. Alguma substância elemental me vai atingindo o âmago da vida. Uma informação incrustada em minhas moléculas diz, em código: és finito.
Agora os sonhos ainda estão por sonhar, e as gavetas estão prenhes de projetos. O vento, vindo da Sé, balança as frondosas mangueiras do Horto Del Rey. Levanta a poeira na estrada que vai dar ao Sítio das Quintas. Os dolbermans do casarão ao lado apóiam-se na muralha, e espiam os garotos que jogam bola. Aqui, parece que o tempo não passou e as crianças ainda brincam na rua. Bola de pé, bola de meia, bola de gude.
Os galos já descansam de suas saudações ao dia de hoje. Já há mangas maduras caídas ao chão. E as pessoas já vão passando, apressadas em cumprir os seus deveres, os seus desígnios...
Olinda acorda aqueles que dormiram e encontra os notívagos que buscam a manhã. Os ateliês da Cidade Alta abrem as janelas e deixam que a brisa lhes sopre a tinta fresca das telas. À mesa, o artista solitário fita as acerolas murchas no vaso. Seus pensamentos vacilam como as asas de uma mariposa fatigada, depois de lutar a noite toda tentando desprender-se das teias de uma aranha. Mais do que as idéias, vacilante está o seu corpo franzino. Suas juntas rangem como velhas cancelas. Pronuncia algumas palavras ao acaso. Saem de sua boca pássaros flácidos, que esvoaçam a custo, rente ao chão.
Encanecido. Um ser cansado e encanecido exala o cheiro fúngico dos velhos alfarrábios...
Sedentário. Só e sedentário. Desistiu das coisas mais comezinhas – desistiu da ação.
Hoje quedou-se a meditar diante da terrina de ágata. As acerolas, ontem vermelhas e macias,...antes suculentas e saudáveis...ah,...o tempo...
...o tempo é um escultor de máscaras mortuárias...
Recolhe os seus pincéis... a paleta treme entre seus dedos. Cores desbotadas, boninas, tons crepusculares, uma monocromia em pálidos tons de vermelho...pintava uma natureza-morta...
A sombra passageira de uma nuvem encobre os pardieiros da cidade. Exausto, deita-se mansamente sobre o assoalho. Balbucia uma prece sem sentido... então, uma profunda e melancólica agonia o faz desfalecer...

***

Concluídos em 06.12.05, com o conto olindense.
Horto del Rey, Olinda.
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