Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, janeiro 22, 2012

O RECIFE (CARNAVALÍRICO) DE CLARICE

Da esquerda para a direita: Tania, Elisa e Clarice


No conto “Restos do Carnaval”, publicado pela primeira vez em 1971, Clarice Lispector , bem ao seu estilo, nos apresenta um Recife misterioso e lúdico,  introjetado, oblíquamente,  nas suas retinas de menina "gauche na vida". Esse Recife será, vez por outra, revisitado pela escritora, ao longo de sua obra. É para esse Recife, lírico e profundamente humano, que me volto nesses dias que antecedem a folia. O Recife dos Blocos de Pau e Corda, dos confetes e serpentinas, dos mascarados. Um Recife boêmio e um tanto ingênuo, apesar dos tempos, apesar do mundo, um Recife do entrudo, um Recifelírico.  (Eurico)


RESTOS DE CARNAVAL

Não, não deste último Carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao Carnaval. Até que viesse o outro ano.

E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para Carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça — eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável — e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um Carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga — talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel — resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele Carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas — à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha — mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele Carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge — minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil — fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns d0ze anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de oito anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.


Clarice Lispector
1971


O conto Restos de Carnaval faz parte do livro Felicidade Clandestina, (1ª edição Editora Sabiá, Rio de Janeiro, 1971; edição mais recente Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1998.

Fonte do conto:

http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tema-livre/restos-do-carnaval-por-clarice-lispector/


Fonte da imagem:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1016151-relato-biografico-resgata-elisa-a-irma-mais-velha-de-clarice-lispector.shtml

Ouvindo uma relíquia: Capiba, por Claudionor Germano, a voz dos frevos da minha infância:


16 comentários:

Anônimo disse...

Quantas vezes a gente sobrevive na falta de algo melhor....

[Sempre que leio Clarice me sinto
muito exposta! ]

Um beijo

tecas disse...

Um excelente texto da grande Clarice*
Nem sempre a vida é fácil. Muitas vezes em vez de se viver...sobrevive-se.
Adorei. Bem haja, pela partilha e pelos gentis comentários deixados no meu blog.
Abraço amigo e continuação de bom domingo.

Fred Caju disse...

Hoje h[a uma estátua de Clarice na Praça Maciel Pinheiro, obra de Demétrio para o Circuito de Poesia do Recife. Juntam-se a Clarice Lispector: Antônio Maria, Joaquim Cardozo, Capiba, Carlos Pena Filho, João Cabral de Melo Neto, Manoel Bandeira, Mauro Mota, Chico Science, Solano Trindade, Ascenso Ferreira e Luiz Gonzaga.

Demais por aqui!

Rejane Martins disse...

Do sul, pouco acompanhei os frevos da tua terra, Eurico, muito bom ouví-los, muito bom mesmo! Eles amarram sonoras fitas coloridas no coração.
Ler Clarice é meu sorriso nas orelhas - entro na meninice, escapo dela, aprofundo minha maturidade e voamos juntas, como as melhores viagens, sem bagagens, apenas com a roupa do corpo e um caniço - ela a me puxar pela mão, quase sempre! Em final de tarde de domingo, obrigadão por mais esta viagem, graaaande Eurico.

zhubenedicty disse...

Amo descobrir Clarice, volta e meia ela nos circunda e ficamos intensamente debruçados em suas atraentes palavras, abs.

lula eurico disse...

Pois é Fred,
tentei comentar nos teus Sábados de Caju,
mas há algo na tua página que não me dá acesso. Talvez seja o formato dos comments. Por experiências anteriores, sei que qdo o comment não está em pop-up, geralmente não consigo comentar.

Mas te mando um abraço por aqui.
Já estava te seguindo.

Abç cordial.

lula eurico disse...

Malu, amiga querida,
dia desses o Mário esteve conosco e te mandei um abraço.
Clarice captava as coisas com um olhar diferente, estranho, poético...
Gosto desse olhar, gosto do que há de histórico nesse olhar, do que ela me conta sobre uma cidade dos seus olhos, o Recife-lispector.

Abç fra/terno.

lula eurico disse...

Rejane,
há mais brasis entre o Oiapoque e o Chuí do que imaginamos.
Dia desses vc compartilhou o Milongueando uns Troços.
Era outra língua. E era um Brasil.
Pois te digo que esses frevos de Capiba ecoam na alma de algumas gerações de pernambucanos. Era um tempo em que se arrastavam os sofá para as crianças cairem no passo, no frevo.
Vivi, vivo isso com intensidade. Mas esse Recife pelos olhos da Clarice é mágico. Como é mágica a Bahia do Jorge Amado, do João Ubaldo.
Só que a magia da Clarice é lírica, dorida, enviesada. Há uma poesia nos olhos daquela menina estranha em terra estranha. Forasteira dentro de si mesma. Os olhos dela, suas lembranças, sua imaginação-lembrada, essas coisas que só ela sabe dizer são instigantes.
Vivo umas semanas carnavalíricas, cheias de saudável nostalgia, quando se aproxima o carnaval.
E tento ver com os olhos da Clarice, o que hoje acontece nesse nicho de folia em que produzo e brinco: os blocos carnavalescos líricos.
E esse carnaval transfigurado pelas retinas da menina Clarice é o carnaval que eu sinto, pressinto, percebo, eu, não sei os outros foliões sentem isso. Mas eu sinto.
Apesar de que o conto em questão fala de uma alegria contida, clandestina, de uma alegria quase-dor.
Mas a festa... a possibilidade da alegria que seduzia a menina Clarice,
que seduz as crianças de hoje,
é essa festa que eu procuro preservar, feito quem preserva aves raras e em extinção.
Por isso componho dolentes frevos-de-bloco, letras simples como cantigas de roda. Minha intenção: captar a sintonia dessa festa melancólica que é o carnval dos blocos líricos. Apesar desse tom menor, há muita gente jovem e muita alegria nos blocos. Há algo meio "lispector" no ar...

Abraço cordial, minha amiga.

Rejane Martins disse...

Sim, muitos são os brasis e sempre muitos foram brasis.
É lindo ver o Brasil em teus olhos, Eurico, é confortante ver o Brasil na tua ação concreta.
um abração e bom dia por aí.

Unknown disse...

Eurico!

Fico com mais vontade de conhecer minha terra. Papai adorava o Carnaval e contava as suas aventuras com uma fantasia que não lembro o nome, acho que era "cloves", que assustava as pessoas.

Clarice, sempre Clarice!

Excelente!

Beijos

Mirze

lula eurico disse...

Mirze,

creio que o Cloves ou Clóvis, é nome derivado de "clown"(palhaço), usado no Rio de Janeiro.
Teu pai deve ter se referido aos grupos de "palhaços" e "almas", que ainda resistem na brincadeira olindense. Olinda, seu povo, guarda essa tradição, quase em extinção na cidade do Recife. Morei 3 anos no sítio histórico da velha MArim dos Caetés e por lá via as famílias fantasiando os filhos e filhas como belíssimos palhaços. Hoje não são mais horripilantes como dantes, mas são fantasias belíssimas, e os grupos disputam, vaidosamente, a ver quem faz mais bonito pelas ladeiras da cidade alta. É lindo ver os palhaços percutindo suas castanholas ciganas e trocando de voz para não serem reconhecidos.
Meu pai também tinha um grupo de palhaços que saia no tradicional bairro da Boa-vista, no Recife.
Creio que "puxei" ao meu velho, pois sou louco pela cultura do carnaval das antrolas. hehehe


Abraçamigo e fraterno.

Unknown disse...

Obrigada, Eurico!

Quase acertei o nome, mas a dele, segundo ele contava era horripilante e ele saía de Recife pata Olinda mesmo!

Grata, poeta!

Beijos

Mirze

Dauri Batisti disse...

Isso, ser outro que não eu mesmo, no carnaval, nos livros que lemos, nos poemas que compomos, nas histórias que criamos. Ser não o mesmo, outro, outro que conhece a magia dos encantos. Mas,
o jogo de dados do destino nem sempre sorteia nossos desejos e sonhos, ah, ao contrário, muitas vezes vem roubá-los. Mas, o que fazer? reconhecer no retalho,nos fiapos, o bordado todo, aquele com fios dourados que desenhava um largo horizonte e um sol nascente.

Tania regina Contreiras disse...

Parece lugar-comum, Eurico, dizer que Clarice traduz a minha alma, os meu carnavis de infância, a melancoloia eterna que cedia lugar, por uns dias, a uma alegria estranha de poder...ser outra ou eu mesma - nunca soube! Confete, serpentina, lança-perfume. Parecem palavras que nomeiam existências passadas. Trazem à superfície sentimentos esquecidos. Mas, enfim, não conheço o Carnaval do Recife, mas dentro de mim sinto que essse é o Carnaval que resistiu aos tempos. No mais, parece que por dentro de muitos existem clarices ávidas por encontrar seu reflexo cá fora. Lê-la é isso: espelhar-se.

Beijos, querido!

Tania regina Contreiras disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Clarice sempre me corta, não há como ficar impune diante da leitura: minha alma se extravia,


grande abraço