Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sexta-feira, março 11, 2011

A FUNÇÃO DIONISÍACA DAS RUAS (Carnaval, Clarice Lispector e Chico Buarque)

Rua do Sol e Av. Guararapes, em dia do Galo
(imagem Google) 


Retomo aqui, de impressionado que fiquei, a mesma epígrafe de Clarice:


“E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu".

 Clarice Lispector



A função dionisíaca das ruas: essa foi a descoberta de Clarice Lispector. Nem Lúcio Costa, o arquiteto da cidade sem esquinas, tampouco o nosso Joaquim Cardoso, engenheiro e poeta, alcançaram essa iluminada antevisão. Mas só a menina Clarice, a mulher além do seu tempo, o ser humano perto do coração selvagem, só ela poderia perceber, liricamente, ou seja, com a abertura da emoção, a que se destinam as ruas de uma cidade.

Conheço bem essa agitação interior que antecede as festas de rua. E conheço isso, enquanto menino suburbano: De manhã, as senhoras recortavam bandeirolas e as iam esticando em cordões finíssimos, primeiro pelo chão, depois esticados nos postes, pelas varandas, em um colorido ziguezague. A rua ficava numa feliz agitação. Meu coração de menino disparava no peito. Era a festa chegando! Era dionisos!
Mas eu nunca saberia colocar palavras nessa alegria, sem ler Clarice. Sem ler o mundo-Lispector.

Hoje eu sei que o mundo se abre em botão, em alegre vermelhidão, em grande rosa escarlate. Nada há de mais lírica do que essa apreensão da realidade. E essa realidade, em que se agitava Clarice, era a festa: o carnaval.
Era a passagem dos cortejos animados, com o ruge-ruge dos anônimos foliões, nesse autêntico e ancestral entrudo, que o Recife preservou. E era nessa órgica cantata popular, que as ruas revelavam “a capacidade de prazer”, que em tantas mulheres era secreta, naquele começo de século XX.

E essa é mesmo a função das ruas: abrir passagem ao que está contido. Deixar fluir o povo, com suas emoções desabridas, flor sem redoma; o povo-fluxo, em dionisíacas pulsões. Uma função lírica, dionisíaca.

Salve, pois, a menina Clarice, que exsurge das reminiscências da Clarice adulta, para nos revelar o lirismo do carnaval, mesmo que o lirismo mais cru, mais selvagem e pagão.
Aliás, como conter essa torrente das ruas, como conter isso que, vida, flui?
Já dizia o poeta, nos versos da verdadeira catarse, que é o samba, Apesar de Você:



(...) Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia
Como vai proibir quando o galo insistir em cantar
Água nova brotando e a gente se amando sem parar
(...)
Você vai ter que ver a manhã renascer a esbanjar poesia
Como vai se explicar, vendo o céu clarear de repente, impunemente?
Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?(...)


 
Fonte do samba: http://letras.azmusica.com.br/Q/letras_quarteto_em_cy_35213/letras_otras_23823/letra_apesar_de_voce_1307465.html


Eurico, lírico, rsrsrs

Que se proibam os galos de cantar,
e o povo de frevar!!! rsrsrs

5 comentários:

Ilaine disse...

Eurico! Imagino a emoção desses dias para quem viveu a festa escarlate já desde menino, como você. Em minha infância, lá no interior do RS, o carnaval inexistia, praticamente. Hoje, também longe, adoro o Carnaval do Rio e imagino a festa em Recife e Salvador, mesmo sem nunca ter participado. Clarice, como sempre, acertou na escolha das palavras. A imagem fala por si... Linda! Beijo

Jens disse...

Oi Eurico.
Também já fui um folião de rua. Quando pequeno participava de um bloco infantil que infernizava a vida dos moradores da rua Mario de Andrade (bairro Ipanema, em POA). A bateria era formada por latas vazias de azeite e queronese, massacradas com entusiasmo. Certa vez substitui a minha lata por um tambor que o pai, numa ação impensada, me deu de presente de natal. Foi um momento de glória.
As fantasias eram variadas. Um amigo saiu (des)vestido de Rei das Selvas. Usava um calção, uma coroa na cabeça e carregava um tijolo em cada mão, para demonstrar sua força descomunal. Para que ninguém tivesse dúvida de quem se tratava, gravamos, com tinta amarela (a óleo!) no peito magro, nu e negro: TARZAN! Quem não gostou foi a mãe dele.
De minha parte, permiti que a sacana da mana Rosa, mais velha, fizesse com uma tesoura caminhos de rato no meu couro cabeludo, a fim de ficar parecido com o último dos moicanos. Desta vez quem não gostou foi a minha mãe.
Um abraço.

zhubenedicty disse...

Como sempre uma redação arrebatadora e instigante, amo as letras em Clarice e Chico abs.

zhubenedicty disse...

Amei o texto. Amo Clarice; abs.

Rejane Martins disse...

Teu texto me fez rever, além da Clarice neste fundo de tela... as garrafas de náufrago e as rosas partindo o ar.
Feliz idade, Eurico.