Uma Epígrafe
"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]
sexta-feira, julho 31, 2009
ATROPELAMENTO (vertigem lúcida no 12º andar)
poema dedicado a Friedrich Wilhelm Nietzsche (in memoriam)
Podem confinar-me.
Sim, hoje estou pronto para ser levado ao asilo.
Há duas loucuras profundas em mim:
A primeira é doar todos os meus parcos bens aos pobres
E ir morar às ruas, com os pedintes e bêbados.
A outra, a mais difícil e quase inexequível,
Aquela que só raríssimos loucos alcançam,
A que verdadeiramente dá-me vertigens lúcidas:
Ir arrancando de mim
cada coisa produzida pelos homens;
Roupas de grife,
Tênis da moda,
Meias-soquete,
E esse agasalho de lã sintética;
Despir-me assim de uma vez, de tudo.
Lançar fora, mais do que franciscanamente,
Não somente os bens da terra;
Mas, expulsar de mim tudo o que me representa:
Opiniões.
Conceitos.
O meu nome.
Lançar fora a minha formação intelectual.
A língua com que escrevo esse poema.
E até mesmo o tema desses versos,
esse inútil clamor, em meu imenso deserto.
Estou debruçado à janela do 12º andar.
Arquitetado na área de um antigo sítio,
esse edifício em que habito
é a fruta mais perfeita da imbecilidade humana.
Fruta de casca dura e insípida.
Fruta de que não se pode desfrutar
nem o sabor, nem a carnação, nem nada.
Lá no pátio brincam crianças.
Lá no pátio riem crianças.
Ainda as há...a brincar
Pois os portões estão guarnecidos por uma sentinela.
Estão protegidas por grades, as crianças que brincam no antigo pomar de jaqueiras.
Ao longe, um pequenino vulto cruza a avenida.
Tomo dos binóculos.
Agora contemplo melhor.
É um pequenino cão das ruas.
Ah, meu pequenino irmão!
Vejo-te, ampliadas as tuas chagas, teus carrapatos,
Com esses óculos de longo alcance.
Mas não te alcança a minha alma, tão pós-modernamente cartesiana.
Ouço os sorrisos dessas crianças...
No entorno, os carros, feia fumaça,
Homens gritando, qual britadeiras,
Uma roda viva?
Uma roda à morte.
A roda enorme do caminhão que transporta o lixo.
O caminhão que tritura o lixo dessa cidade feita de lixo.
A roda enorme do caminhão...
Ouço um ganido...
Mortal ganido.
E a gritaria dos transeuntes...
Ai, não suporto mais essa vida!
Nu dos sentidos,
Livre das normas,
Desço correndo pelas escadas desse edifício,
(Hoje me levarão para o hospício.
Mas o que importa que façam isso?)
Invado a rua, assim, despido,
Tomo-te aos braços, bicho ferido.
Tomo-te aos braços, enlouquecido.
Todo o sentido teleológico, em mim desaba:
há duas patas esmigalhadas
sobre a calçada.
Fulo da vida, nego a mim mesmo, crísticamente.
Nego isso tudo:
Prédios, fumaça, caos, britadeiras.
Pois essas patas sob essas rodas
são um libelo contra a cultura, minha cultura.
E esses dois olhos com que me fitas
com tal candura,
são aforismos de Zaratustra,
são marteladas
contra essa Ordem filha da puta!
Assim te entendo, aqui, nu e louco;
Assim te entendo nessa hora angusta.
Mas não me entendo nessa Babel:
Tu representas os seres mudos e indefesos da criação?
És, nos meus braços, meu semelhante, como a novilha dos indianos?
Cachorro louco, feio, fedido, faminto, sujo e estropiado,
irmão dos homens abandonados, que vivem ao léu,
És um holocausto, tosca oferenda,
que, transtornado,
hoje, ergo aos céus.
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Fonte da imagem:
Quem é o irracional da foto?
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Cliquem em Resenha Poética para lerem algo referente a esse atropelamento das minhas idéias.
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28 comentários:
Adorei o poema. Uma sensatez, uma discernimento que só a vivência pode dar. Hoje somos prisioneiros das grades de nossas casas, não temos tempo para a caridade, para a comoção. Vivemos em busca do progresso, pisando por cima dos quintais de sentimentos de cada um.
Parabéns, seu texto me tocou profundamente.
Beijo.
Oi Eurico.
Na sua justa indignação o poeta deblatera contra o mundo e seus iguais. Talvez seja hora de reiventar-se e construir um mundo novo.
Um abraço.
OI, Claudinha,
é a sensatez dos loucos, das crianças, dos poetas e dos bêbados... há também os ébrios, como Spinoza, ébrios de Deus.
Mas, de que adianta apenas enlouquecer e nada fazer.
Falta-me algo para que me sinta digno dessa passagem pela Terra. Falta-me o amor, aquele de Cor. cap. 13. E, sem ele, não sou absolutamente nada... como disse um dia Pessoa, "à luz de uma vela subitamente antiquissima"...
Paz e fraternidade.
Jens, amigo.
Sabes que que falo "vermelho e quente", como me aconselhou um sábio professor de Filosofia. E isso me lembra alguma coisa. Nunca torci por outro time além de meu Sport, mas estou solidário com a nação colorada. A tua amizade me ensinou esse bom caminho. rsrsrs
Bem, isso pq estou cansado do tal eixo Rio-Sampa. Em tremos de futebol, bem entendido, gente. Só no futebol. No resto, tudo é Brasil!
Bem, gostei do verbo deblaterar. Aliás, os gaúchos preservam palavras de um Português avoengo e terrunho, que emerge das lutas pela formação dess Brasil do Sul. Gosto delas, dessas palavras arcaicas, desusadas, isso está claro no que escrevo. Nelas "repoisam" sentidos perdidos, semantemas musealizados pelo desuso. Deblaterar, que palavra forte! Ainda a usarei num poema.
E chego já na Toca do Lobo. Um chimarrão bem que me poderá aquentar a alma, nessa noite chuvosa cá do Recife.
Abraço fraterno.
"...atropelamento de idéias", intensidade de sentimentos: aflora, em mim, o querer pulsante de resgatar a simplicidade na complexidade de busca para se tornar gente. E,insisto...acredito. Tornaremos Gente.
Beijo
Eurico!
Que desabafo em forma de versos, amigo. Bela poesia! Confesso, fiquei triste ao lê-la, talvez um pouco mais do que hoje já estou.
Saudades!
Sempre fico impressionada com seus poemas Eurico.
Bjs.
Oi, Eurico, estou de volta a terrinha.
Comentava hoje a tarde com mamãe a irracionalidade do homem, a burrice (sem ofender o animal o burro) do ser humano. Preso a futilidades, vivendo de aparência, sofrendo por besteiras, valorizando o inútil.
Esse aflição existencial as vezes pode nos deixa enlouquecidos.
abraços
Paulinha, seja bem vinda.
É verdade. E um eu-lírico enlouquecido é capaz de tudo.
Mas, para onde caminhamos?
O que nos faz agir desse modo?
Por que escolher esse modo absurdo de extermínio da própria espécie?
Perguntas que deveriam nos atormentar a todos... mas, estamos anestesiados. Não enlouquecemos de verdade por conta da an/estesia, da indiferença, que temos por tudo o que nos cerca.
Mas, hoje é domingo.
E o dia estava lindo!
Abraço fra/terno.
salve, querido poeta, que este seu poema é daqueles que lemos e nos vemos como autores coletivos, porque nos inscrevemos em sua pele sem roupa, porque desmetafísica o humanismo ocidental-civilizacional, com suas roupagens de engrenar mortes.
belo poema.
saudações,
luis de la mancha
Marcos, digo, Luis,
da cá um abraço ecossolidário, ou ecossocialista, como queira.
É meu amigo, urge que neguemos isso tudo, desde os alicerces, pois a construção está condenada à autodestruição. Como desrealizar esse projeto civilizacional, sem cometer a implosão de si mesmo?
Transvaloração da cultura?
Creio que só nos resta chorarmos, nietzscheanamente, abraçados ao pescoço de um cavalo chicoteado.
Isso já seria um bom começo...
Q foto frte! Que poema forte! Lindo!
Com certeza nos encontraremos no Almirante em breve. Eu sempre volto! É muito amor! Hehehe! Tô só esperando os ensaios começarem!
Abração!
O que, vc irá ao Almrante, amiga "P!"???
Vá mesmo moça. Estou cheio de idéias para a comunidade. Mas falta gente com vontade de se doar.
As portas estão abertas...
Maracatu é vida, é dança, é liberdade!
Vermelho-bravio-bradando... E as idéias atropelando e as palavras articulando a insanidade em tudo e a lucidez desse teu 'atropelamento das idéias'.
Ando cada vez mais cativa de tuas idéias, palavras,força.
Abraços, amigo.
Essa tua indignação é tão coletiva; como sobeviveremos à , essa sociedade que tudo destrói, tudo corrompe, tudo nega, sonega, e joga tudo fora todo dia? Atropela-se gente, bichos, nada sobra, nada tem valor.
Fiquei um bom tempo aqui lendo-te, relendo-te e me perguntando como chegamos a esse estado de barbarismo? Respondo imediatamente a mim mesma: é porque nunca saímos dele.
Cheiro para vocês, Compadre-vizinho.
Nada mais triste. Realmente me emocionei com isso.
Um ato tão puro, o mais sincero que jamais existirá.
Lindo.
Beijos
Mai, amiga.
A força está na adesão e na compreensão de quem lê. Mas essa energia que anda me descortinando isso é vital. É positiva. É desejo de vida e vida em abundãncia. Vida coletiva, utópica, dolirida, mas vida para todos.
Abraço fra/terno.
Boca amiga,
havemos de sobreviver. Em tempo daremos a guinada para uma vida saudável para nós e para o planeta. Eu sonho, ainda...
Érica,
bom te ver por aqui. Gosto de interagir com o Recife virtual. São tão poucos que conheço.
Mas se vc se identificou com o texto, e olhe que é dito por um eu-lírico, é que ainda há chance para o planeta e para a espécie, eu diria, para as espécies que nele habitam.
Abraço fra/terno
Ahh, mas eu nunca vou lá de óculos!!! Hahhaha!!! Talvez vc se lembre do meu marido, um alto magrinho q Teté vive atrás e apresenta pra todo mundo! Eu sou tímida mesmo e converso pouco com o pessoal, deve ser por isso q vc nao se lembra de mim. Mas na festa q teve depois do carnaval eu estava lá. Acho q te vi lá.. Bem, fico feliz em saber que há tantos projetos encaminhados pro Almirante. Se precisarem de uma força da um toque! ABraço!
Lula,
Nunca me canso de dizer que os teus poemas são fantásticos!
Este não é excepção!
Já vi que gostas de Pessoa e dos seus heterónimos: também aprecio imenso Fernando Pessoa.
Bem, estive fora quase um mês (de férias) mas agora estou de retorno :D!
Um abraço
Outro abraço, Max.
E, grato pelas tuas palavras tão generosas.
Estou passando para te deixar um abraço... Saudades!
Beijo
Eurico, volto aqui e vejo pelas notícias que tudo correu bem. Saúde e paz, recupere-se e volte. Poemas nascerão aos montes, cuide da recuperação e nos brinde com eles depois! Beijo!
Oi, Claudinha,
muito grato. Estou ainda convalescendo, mas creio que tudo estará bem. Cicatrização está boa. Mas é difícil ficar parado. rsrsrs
Lição de paciência, é essa recuperação.
Abraço fra/terno.
Nietzsche é o filósofo mais li. Exageradamente até. No tempo em que estava me libertando dos cabrestos religiosos. Tudo era novo, um mundo novo, tudo era libertador, eu me sentia como uma criança diante do mundo, redescobrindo-o, e cada vez mais com vontade de me desmascarar.
Comprei livros atrás de livros (uns seis). E pesuisava, queria entendê-lo. E apesar de o acusarem de ateu, ele me fez converter, e querer superar os meus limites, transbordar.
O seu poema é um desmascaramento, um desvestimento das fantasias pós-modernas. Faz jus ao dedicado.
Éverton, grato, meu jovem.
Sempre agradeço pela existência dessa rede, que nos permite contatos jamais possíveis no mundo real. Vc é um deles. Jovem, inteligente, estudante de uma ciência que admiro demais, que vai cuidar das pessoas aí no norte do país. Jamais eu teria a chance de conhecer alguém assim. Moro praticamente numa favela, urbanizada, mas favela. E sou um autodidata. Não passo nem perto dos acadêmicos daqui, e, creio que eles nem me veriam, sou invisível pra maioria deles rsrsrs.
Mas aqui tem doutorandas, tem mestras, tem de um tudo. E eu no meio, de enxerido rsrsrs E, graças a Deus, bem recebido por todos vocês.
Mas tb li muito Nietzsche. E creio que a sua utopia era tão radical que o levou à loucura. Comparo a sua loucura à "loucura do amor evangélico". Sim, aquela em que se dá a vida pelo irmão, em que se ama até, e prioritariamente, o inimigo. Cito isto por te saber estudioso da Bíblia.
O ateísmo de Nietzche era um mal disfarçado amor pela humanidade, que queria ver transformada radicalmente, numa transvaloração da própria cultura. Se é isso mesmo que entendi...
Bem, pena que o caminho da vontade
de poder não era o mais indicado e... deixa isso pra lá, que não sou versado nessas coisas...
Abraço fraterno
E estou quase bom. Retirei um pequeno nódulo inguinal. Basta ficar quieto que vai sarar logo.
Apaixonante e arrebatador. Foi a primeira coisa que veio à cabeça.
Me "empresta" para postar no meu blog.
Claro com os devidos créditos.
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