Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, julho 04, 2009

O MERCADO (ouvindo Mouvement - Debussy)



(um itinerário impressionista, com Debussy)



Flores, flores, flores!
Buquês de flores,
Róseas, lácteas,
rubras, violáceas.
Baldes com flores,
ramalhetes empilhados,
laços de fita e as mãos hábeis
da florista, embalando uma corbeille.

Rua Estreita do Rosário,
Direita e do Livramento,
apinhadas de feirantes.
Mais em frente,
eis o Mercado
do bairro de São José,
com sua armação de ferro,
trazida pelos ingleses,
e a multidão de barracas,
nesses becos labirínticos,
barracas, gente, barracas,
panelas dependuradas, pencas delas!
Cachos brilhantes de garfos, de colheres,
caçarolas, frigideiras, caldeirões.
Um leão vermelho e azul
ruge, com o dorso colado
na bacia de alumínio.
Pingentes, penduricalhos,
que quase nos batem à testa:
grelhas de pão, abridores
de lata, tábuas de carne,
pilões de bater cominho.
Caminho entre os tabuleiros,
quiosques de calças jeans,
chinelos, brim, alpercatas,
sombrinhas, chapéus, coleiras
cordas, correntes pra cães,
ferragens, fumo de rolo;
De repente, explode um mundo
de cores em degradê
amarelo, nos meus olhos:
melões, cajás, mexericas,
cajus, bananas e pêras.
O marrom dos sapotis;
Umbus e verdes caquis,
até pêra encontro aqui.
O vermelhão das maçãs.
Ás vezes até romãs.
E o branco das tapiocas
da preta velha sentada,
sob o arco do mercado.
É essa a loja! Encontrei!
BANHOS-OFERENDAS-ERVAS,
Um bazar religioso.
Estatuetas dos santos,
dos caboclos, dos eguns.
Seres de um mundo impalpável.
Empório de elementais,
farmacopéia esotérica,
de uma medicina mágica:

Tem semicúpio aromático?
Semi-o-quê?
Tem não, dotô!
Banho-de-ervas, dá no mesmo.
Ah, isso eu tenho!

Sinhá Nana crê nessas coisas.
Não descreio totalmente.
Como não crer, se nas ruas
desse Recife volátil
cruzam comigo ciganas,
yabás-malabaristas,
balconistas-iorubás,
pretos-velhos-motoristas,
garçonetes-pomba-gira,
donas-de-casa-bantus.

Salve a sincrética fé:
malungo, nagô, malê,
rastafari, quilombolas.
filhos do Congo e d’Angola.

Vendedores de sapatos?
Camelôs?
É muito pouco!

Nós somos é a realeza.
Reis e rainhas da coorte
de um imenso maracatu.
Canta a nação Pernambuco,
por trás de pentes ,agulhas
retrós-de-linha, bonés.


Alarga-se esse cenário.
Tem fendas o imaginário,
no lado escuro da mente
Sinhá Nana crê, piamente,
na mente. A força da mente
que fez um dia um carrasco
de cor negra, homem de brios,
negar-se ao enforcamento
do heróico Frei Joaquim
do Amor Divino Caneca.
Havia uma força telúrica
na mente daquele algoz.
Um gesto, um rápido gesto
de mão e ele passaria
anônimo. Nem estaria
nesses versos. E só seria
um carrasco, apenas isso.
Mas esse negro era o povo.
E tinha os medos do povo.
Fez a vontade do povo,
(quem se atreve a matar padre,
a não ser a ditadura?)
o algoz, e mesmo sem nome,
ficou na história do povo,
Povo mascate que vende,
nas ruas, quinquilharias.
Que canta com pandeirinhos
ciganos, no pastoril;
Que dança as danças de África
e o toque dos caboclinhos.
Sinhá Nana, é dama do paaço
na sexta-feira encantada.
Os garis são da embaixada
da Irmandade de Homens Pretos.
Pipoqueiros são ogãs,
e vêm tocar no Rosário.
E eu, sustentando o pálio,
sou serviçal da cabeça
daquela preta agachada,
sob o arco do mercado.
De dia, ela faz tapiocas,
de noite é a bela rainha
de um Recife imaginário.

Eis nossa mãe!
Bença, mãe!


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Para ouvir Mouvement, de Debussy, enquanto lê, clique:
                                       

Com os meus agradecimentos a Rejane, regente de realejos
e guardiã de pérolas, do blog REJANEANDO,   pelos links de Debussy.


Fonte da imagem:


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13 comentários:

Anônimo disse...

Oi querido!
Tem homenagem para vc lá no meu blog.
Que beleza de poema heim?!!
Bjs.

Euza disse...

Poeta querido!
Quero falar das sensações que me ocorrem ao entrar aqui.
Vc, seu blog, sua poesia sempre mexeram muito comigo. Um tanto por me desafiarem, outro tanto por me satisfazerem. Mas só agora fica claro. É cultura demais, meu amigo! Esta mistura de erudito com as lembranças, com o cotidiano nem sempre bonito deste nosso país... tudo isso emoldurado pelo seu olhar crítico e pelo lirismo do poeta!
Eu sei, não tou dizendo coisa com coisa... rs... deve ser a saudade, né? É bom estar aqui!
Beijo, poeta! Grandão.

Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Eurico, coisa linda:

Alarga-se esse cenário.
Tem fendas o imaginário,
no lado escuro da mente


Um Bardo das letras poéticas.
Com admiração,
Efigênia Coutinho

lula eurico disse...

Oi, Fatima, irei já lá.

Abraçamigo.

lula eurico disse...

Euza, como faço pra responder. Lá no Palim?
Bem, respondo aqui. Tb estou com saudades. Mas uma saudade que te entende o gesto. Andei pensando que vc nos ensina em tudo o que faz. Hoje preocupo-me com o crescimento da quantidade de amigos blogueiros, entende. Fica difícil visitar a todos eles. Mas faço uma escala... rsrsrs
Sim, sobre este poema. Cultura? Ai,ai,ai. Sou um ledor compulsivo e só isso. Se eu fosse disciplinado, se eu conseguisse ficar sentado num banco de faculdade... rsrsrs talvez sistematize as coisas. Mas tenho um cotoco, rsrsrs que não me permite ficar sentado a ouvir aulas maçantes.

Bem.
Um beijo, Euzinha.

lula eurico disse...

Grato, Efigenia. Vc é muito genewrosa comigo. Vindo de vc, que faz lindos sonetos e poemas, é um elogio com respaldo.

Grato.
Muito grato!

Elcio Tuiribepi disse...

Oi Eurico, primeiro a aula, a cultura, o comum e dentro dele o incomum, o cotidiano e fora dele o inusitado...ah..sei lá...show de bola. Vi seu comentário sobre ficar sentado num banco de uma faculdade...e tens um tanto de razão, mas por outro lado, como voltei a estudar, tenho conhecido alguns professores que valem a pena e transformam suas aulas, suas disciplinas em algo muito gratificante tano para ele quanto para os alunos também, quando existe uma interação, um compartilhamento e formas novas de ensinar e aprender a coisa flui para um caminho cheio de gratas surpresas, mas você tem razão, tem uns que...abafa o caso...rsrs
Que através de sua leitura você possa continuar a nos oferecer o melhor que tens dentro de ti, o inusitado cotidiano, e que este cotoco seja eterno...Um abraço na alma

lula eurico disse...

Abraço tb pra ti, Elcio. Cultivas tb um inusitado pé de versos. Chego já por lá!

Paula Barros disse...

Eurico, mas uma viagem, mais um passeio, li primeiro Eu e Alice e agora vou voando pelo nosso lindo e encatador Mercado, repleto de histórias, de gente, de penduricalhos....

Faz é tempo que estou para ir ao Mercado para bater fotos, e quero ir num domingo, mas vazio e ainda não fui. Lembrei, aumentou a vontade.


Excelente. abraços

Éverton Vidal Azevedo disse...

Que poema gostoso! Rápido como uma pedra rolando. Um recife. descriçao de fé, de pessoas, objetos do mercado. Gosto mesmo dessa brasilidade. Uma aula de cultura.

A "fase Debussy" está rendendo!

Sueli Maia (Mai) disse...

Ah! Amigo, não posso demorar a voltar aqui porque acabo ficando aqui de tanto que me fico e fico e vou ficando até acabar.
Sabe, Eurico, rever Recife caminhando contigo através de tuas palavras é volitar e reentrar no mercado popular repleto de cheiros, ao som de Debussy foi de uma ousadia que só quem sabe, poderia fazer.

Beijo você, amigo e me acanho diante da beleza do que senti e ouvi.

lula eurico disse...

Que é isso, dona Mai? Que acanhamento é esse, em sua própria casa. Esse blogue é teu e deixe-se de coisas, óxente! rsrsrs

Mas foi ousadia, foi mesmo, ousadia de menino, ando meio treloso feito uma criança. Culpa da Alice... rsrsrs

Rejane Martins disse...

Puxa Eurico, Além de um poema brasileiríssimo e lindo, acabas de realizar meu sonho: sempre quis ser regente de realejo (zambembe que fosse!) e guardiã de pérolas - mas pra serem partilhadas. Ufa! Consegui!