Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

segunda-feira, julho 06, 2009

Bosquejos (ouvindo D'un Cahier d'Esquisses - Claude Debussy)






















Porque agora vemos por espelho, em enigma,
mas então veremos face a face;
agora conheço em parte,
mas então conhecerei como também sou conhecido.
...............................................................1 Cor 13:12




Ninguém, nunca jamais, viu qualquer coisa inteira.
As coisas são metades, como, à noite, a lua.
Não é possível apreender totalidade alguma...

Senti isso, em certo dia, ao me embrenhar num bosque.
Depois de um caminhar inútil, por clareiras,
Restou-me então, do bosque,
essa impressão de coisa impenetrável:

Algumas árvores mais próximas
ou em perspectiva,
Até onde a vista humana pode ir. E só.

E descobri então que
Os bosques nos escapam sempre.
Os bosques que pensamos ver
são apenas bosquejos, alusões de uma
mata, selva ideal,
jamais vista em sua inteireza.

Um bosque é abstração de manchas,
Coisa sempre in fieri.
Um bosque é fugidia sensação de luz e cor.
A mesma que se tem ao olhar um Manet:
Alusões a vigorosas pinceladas.
Mas sempre alusões.
Assim, um bosque é quase nada.
Metade dele nunca é.

É a mesma ilusão (de ótica) de quem,
no espelho
encontra a face do mistério,
ou seja, a parte dele que se pode ver.
E o que é essa parte que não se pode ver?
Eis a questão!

O ser do bosque é assim,
Face no espelho;
Aquela que se pode ver.
No entanto, o bosque, mancha esverdeada,
É ainda mais que nós.
Somos a outra metade do nada,
Escorços de uma face invisível e azulada.
Eternos quase-nós.


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Para ouvir Debussy, enquanto lê, clique:
D'un Cahier d'Esquisses



Fonte imagem:
Almoço na relva - Édouard Manet


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Concluo (afinal) essa série de impressões debussyanas, com a citação de Giulio Carlo Argan, que encontrei em O Pensador Selvagem (com minhas sinceras desculpas pelas imperfeições dos trabalhos):


"(...)Se o artista se propõe a exprimir a sensação em estado puro, antes de ser elaborada e corrigida pelo intelecto, é porque ele julga que a sensação é uma experiência autêntica, e a noção intelectual uma experiência não-autêntica, viciada por preconceitos ou convenções. A sensação, portanto, não é um dado, mas um estado da consciência; ademais, a consciência não se realiza na experiência vivida e refletida, e sim na experiência que se vive. Identifica-se, pois, com a própria existência."
.............................................................Argan

26 comentários:

Ilaine disse...

O que vemos, ou o que imaginamos ver, ou ainda, o que queremos ver... Há tanto que não enxergamos e que, muitas vezes, é por demais visível. Buscamos o que somos,jamais vemos o bosque em sua inteireza. Somos incompletos.

Eurico, eu fico filosofando aqui com você... Será que faz sentido o que escrevi. Também... quem manda fazer poemas assim!!!

Abraço daqui, grande poeta

Anônimo disse...

"Ninguém, nunca jamais, viu qualquer coisa inteira.
As coisas são metades, como, à noite, a lua.
Não é possível apreender totalidade alguma..."
Amei o post Eurico!
Bjs e um ótimo dia.

lula eurico disse...

Ilaine, faz todo sentido o que escreves. Escreves sobre o que tu podes ver. A visão é um sentido individual e solitário. E é a primeira porta pra realidade. Há sentido em ver algo? O sentido é o que nós fazemos com esse algo. Mesmo quando nós nada fazemos com ele. Viver é dar sentido às coisas, como um sobrevivente de um naufrágio que precisa dar braçadas em mar alto. Estar vivo é o sentido fundamental. Por isso sempre faz sentido o que fazemos. Posto que o que fazemos é viver.

Foi bom ter vc de volta a esse convívio de corações e mentes. Surpreendo-me com o que se pode desfrutar nessa rede.

Abraçamigo e afetuoso.

Paz e fraternidade.

lula eurico disse...

Grato, Fatima.

E bom dia pra vc tb.
Ah, tenho irmã e 4 sobrinhos em São João do Manhuaçu. Minha mana é profesora aposentada e exemplo de dedicação. Percorria mais de légua, a pé, para dar aulas. Foi homenageada pela população da cidade quando se aposentou, ano passado.
Quem diria... e ontem nós dançávamos ao som dos Fevers, Renato e Creedence. Minha mana deu uma guinada na vida. E foi bom pra ela e pros mineirinhos.

Abraçamigo, Fatima.
E muita paz.

Jens disse...

Confesso minha insuficiência para apreender a totalidade do bosque. A beleza de algumas árvores simplesmente me enfeitiça.

Um abraço, Eurico.

lula eurico disse...

Jens
Esse teu bosque está me cheirando a um harém. kkkkkkk
Creio que nem o rei Salomão, do alto da sua sabedoria, resolveu o problema de como abracar a totalidade das concubinas e esposas que teve.

Abraço fraterno.

Diego Viana disse...

Gosto muito desses diálogos entre artes, a confrontação e a sinestesia. Acho apaixonante!

lula eurico disse...

Grato, Diego. É isso, minha tentativa de unir os discursos (semióticos?) da música, da pintura e do texto, talvez baldada, mas, creio eu, não de todo infrutífera, também acena para a busca da compreensão de mim mesmo, do ser em que habito, de minha vida, não apenas biológica, mas biográfica, histórica. É isso.
Grato pela tua visita.

Dauri Batisti disse...

Eurico,

estou nuns dias mais cheios, logo lerei com tempo cada escrito desta tua fase.

Meu Brother, já posso dizer que fiquei muito lisonjeado com o que você diz, ao chamar seus trabalhos de daurinianos... imagine..

Tenho verdadeira admiração pelo modo com que lapidas tuas palavras e como introduz erudição sem pedantismo nos seus escritos.

Acredito que uma diferença sua básica para a grande maioria dos que escrevemos nos blogs, é que você, além de escrever, introduz-nos no mundo da cultura.

Não bastam nossas palavras soltas e o laconismos dos nossos textos. É preciso ir além da sonoridade, do rítmo e das imagens bonitas. É preciso saber o que se diz. Você sabe. Em quem lê também passa a saber, por mérito seu. Por isso que - sem necessidade de angariar simpatia - sempre disse que aqui eu aprendo tantas coisas.

Vi estes dias o filme "Still Life" de Zhang Ke jia, premiado diretor chinês, e me senti bem ao ver que ele introduz alguns elementos surrealistas na história "realista" de pessoas procurando pessoas. É mais ou menos isto que quero quando me afirmo não-poeta. O poeta se define, digamos, facilmente. O não-poeta - que escreve poemas - parece quebrar certos limites das definições, e abre outros territórios para as minhas andanças. Sei lá. Também não sei bem.

Por enquanto obrigado.

Volto.

Um abraço.

Éverton Vidal Azevedo disse...

Eu vejo que você conclui a série magistralmente. Sim, este é um (mais outro) poema pra guardar. Pra carregar no bojo da vida.

"Ninguém, nunca jamais, viu qualquer coisa inteira".

Esse poema amplia nossos horizontes, inclusive os verticais, nossa relaçao com Deus, enfim.

E que interessante Eurico. Você se correspondia com Artur. Isso é fantástico.

Boa semana!
Inté.

lula eurico disse...

Grato, Dauri.
Mereces sim , a minha singela homenagem, que não está no conteúdo dos poemas da série, e sim, na atitude dauriniana com que me coloco diante da palavra.
Sei lá eu se percebi bem teu processo criativo, mas, ao saber do Kerouac, comecei a vislumbar o movimento das séries, algo implícito nelas, a estrada, um motivo recorrente.
Não sou crítico literário e nem pretendo ser, por isso só me apetece o processo criativo dos poetas/escritores.
Grato por me teres nessa conta. Não sou pedante, não por mérito meu, mas por não ter nada de que me gabar em coisas da erudição. A única coisa de que me gabo é q consigo trabalhar com pouca informação, às vezes com flashs das coisas. E isso pq sei selecionar e combinar coisas com rapidez. Se há poesia nisso, é disso que cuido. Por isso repasso pistas das minhas leituras novas e antigas, para não me sentir um fabricante de colchas de retalhos. Sou um quase intelectual "naif", se é assim que se escreve. rsrs

Abraçamigo.

lula eurico disse...

Grato, Éverton,
bondade tua, Poeta.
Vc tem razão, "Deus é o outro lado da laranja", dizia Ortega y Gasset. Eu digo, diferente:"só Deus vê os dois lados da laranja, ao mesmo tempo."

O poema é sobre a visão. Esse é realmente o tema. O resto é o que vai acontecendo ao ouvir os sons incríveis do Caderno de Esboços, do Claude Debussy.
VC já leu o Dauri?
Leia.
Ele tb me inspira muito.
Admiro a coragem que ele tem de trabalhar a página em branco. Faz isso pq pode. Os poemas dele prescindem da imagem. Prescindem da ilustração, entende. O poema ocupa todos os planos visuais, latentes e patentes. Não são esboços como os meus. São a coisa concreta a explodir na página.

Leia o Dauri no http://essapalavra.blogspot.com

Além disso ele é da nossa tribo espiritual. Um irmão.

Abraçamigo e fraterno.

Éverton Vidal disse...

Eurico,

Obrigado pela indicaçao ao blogue do Dauri. E também gosto de Ortega, um amigo me indicou ano passado, mas nao mergulhei de cabeça ainda, enfim.

E Mai é sua amiga de infância é? Olha que legal. Quanto a Jacinta, se for a Dantas do Florescer eu já "conheço". É?

Um abraço.

lula eurico disse...

Oi, Éverton
É sim, a Jacinta, moça com nome de flor. Pessoa linda! Lá no seu blogue sempre refloresço.
Fiz ponte entre vc e o Dauri. Gosto disso, dessa comunhão virtual.
Ainda não tive o desprazer dos desencontros, que, creio eu, devem acontecer aqui. Tenho tido sorte com as amizades blogueiras. Ainda bem, pq tenho pouco tempo e taí uma coisa q detesto desperdiçar: tempo. Graças a Deus, tenho sempre uma intuição ao clicar nos blogues. Sempre acerto com gente cordial, fraterno e do bem. rsrsrs
Graças...

Abraçamigo, jovem poeta.

lula eurico disse...

Em tempo:

Amigos, sempre escolho um dia na semana para visitar os blogs que sigo. A lista está crescendo e, por vezes, minha coluna vertebral, não aguenta comentar em todos. Até pq penso antes de escrever, viajo mesmo, em alguns. E isso leva tempo. Mas vamos combinar que ninguém se agastará comigo se eu demorar a dar uma lida no seu blogue. Afinal, mesmo no mundo real, não temos tempo pra visitar a todos os amigos, né mesmo?
Mas tenho muita consideração por todos vocês. Sem acepção de pessoas. Dos diletantes aos profissionais. Leio todos.

Um abraço afetuoso e fraterno em todos os blogueiros da minha lista.

Canto da Boca disse...

Eu gargalhei gostoso, como deve ser uma gargalhada, com a tua interação lá na belEuza, o que não é de admirar.
E venho correndo te contar isso e me deparo com tantas outras belezas, e o moço da Bahia, se faz presente (sem comparações, apenas lembranças), com a sua letra, "meia lua inteira..."

E o vizinho sempre fazendo Arte!

Um cheiro e carinho amigo...

;)

lula eurico disse...

Bela lembrança. Nem havia notado esse eco do Caetano no texto. Mas o que escapa àquele moço genial, filho de Nosso Senhor do Bonfim.
Gosto demais dele e vez por outra deve ecoar intertextualmente um pouco dele aqui.


Eu ri do Cabeção.
kkkkkkkkkk
Deve ser muito bem humorado, o teu macrocéfalo, né?


Um xero, vizinha.

Canto da Boca disse...

Eu admito a genialidade do filho de Dona Canô.E curto!

São essas coisas da intimidade, que acabamos por deixar público(a). O consorte (e a sorte é par), faz mestrado em Engenharia Matemática, o cabra é um gênio, e eu o apelidei carinhosamente de "Cabeção", ainda carregada de sentidos daquela máxima de que quem tem cabeça grande é inteligente, o que é mesmo coisa do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, eu fui, vim, pelo caminho da metáfora, e damos risada com isso...

Cheirao!

lula eurico disse...

Não pela inteligencia, mas na escola eu era chamado por uma modinha que se referia ao tamanho da minha caixa craniana. Era uma marchinha onomatopaica, alusiva aos taróis da banda marcial,que dizia:
"tão pequenininho
da cabeça grande".

Esse era o jargão que os invejosos cantavam quando eu passava, rodeado das pequeninas donzelas. É que além de fazer versinhos aos olhos delas, eu era o melhor aluno da classe. Isso faz tanto tempo...

Pois dá um abraço fraterno no meu xará! rsrsrs E arremata com mais umas boas gargalhadas, pois quem não ri, e não vê graça em si mesmo, deve correr já ao psicoterapeuta. kkkkkkkkkkkkk

Dauri Batisti disse...

Eurico, amigo,

Não sei exatamente que resultados você esperava com seus poemas nesta série, mas para quem é leitor o resultado é "euriquiano", ou seja, arte. Sugiro que você faça novas experiências assim, e gozaremos do prazer de ler o resultado dos teus passos.

Nos afetamos pelo que lemos uns dos outros e pelo que imaginamos entre nós. Fico feliz em ser uma refência, simples referência, para suas belas experiências com a escrita.

Dauri Batisti disse...

Voltarei a ler, para novas percepções.

lula eurico disse...

Bem, os resultados estão implícitos rsrsrs mas vc falou dos passos: " o resultado dos teus passos"... Taí, foi essa a atitude dauriniana, ao fazer a série: o movimento, a viagem e a estrada e o tempo. Talvez meu "On the road" interior. Ou seja, minha estrada apresentada em flashbacks, evocados pela música de Debussy.
Quanto ao estilo, desse nós não escapamos, amigo Dauri. O estilo é algo entranhado, visceral, radical. Na verdade, eu admiro o teu modo de dizer, a tua voz e o teu timbre. Mas como fazer Djavan imitar Osvaldo Montenegro. Duas vozes inconfundíveis, né mesmo.
Acercam-se porém, de circunstâncias próximas.
Dauriniana é a caminhada, o périplo, o durante, o eu-poético em movimento.
Bem, gosto de falar de processo criativo. Já leste o Pós-escrito ao Nome da Rosa? Pois bem, gosto daquilo, de ler e de escrever sobre processo criativo. Creio até que é o único campo em que um artista deve se intrometer. Jamais eu faria algo como crítica literária. Até o processo, tudo bem. O que passar disso, nem pensar.

Abraço fraterno, meu brother.

Passageira disse...

Meu querido!
Que coisa! Eu sempre me perco aqui! rs... Tou pra ver um bate-papo tão interessante qto este qu acontece na sua cx de comentarios, viu?
Mas o poema falou muito a mim. Ver, perceber, sentir e ficar no quase é o meu momento! Nao poderia ter encontrado um espelho tão bonito nem tão perfeito qto este poema! Que bom que vc existe aqui pra nós!!!
Beijaço! E muito grata por se sentir à vontade na minha casa! rs

lula eurico disse...

Euza, mineiramiga. Vc lembra dos meus primeiros passos de blogueiro. As dicas que vc me deu, os endereços e tal... Esse é o motivo pelo qual me sinto em casa no teu blogue e até no Palim.

Pois é. Estou gostando da prosa que rola aqui. Parece mesa de barzinho. rsrsrs
Barzinho de gente fina, entende. Aqui tem um shopping chamado Paço Alfândega, pelo nome já viu que é chique. E é mesmo. Mas tem uns Cafés interessantes. Neles há um clima bom de prosa. Parece com essa minha caixinha de comentários.

Fica bem.
E leva meu beijo.

Sueli Maia (Mai) disse...

Aulas atrasadas, atenção redobrada.
E não há sacrifício algum porque aqui eu pernoitaria atenta e concentrada a ler teus textos, a aprender contigo, Mestre.
Sabe, Eurico, a Arte de transmitir é tão abençoada que acho que, por isto os Mestres são ícones.
Mas somos amigos de infância e não carece sobrepor títulos porque o carinho de amigo, já tenho e d'amiga, me tens.

Abraços,

lula eurico disse...

Demorou e deu saudade. Acabe com isso de mestre pra lá, mestre pra cá... já me basta o título honorífico de amigo d'infância.
E tua amizade que me faz um bem danado.
Sabes que sou apenas um "leitor voraz que escreve". É só isso!

E só "canto porque o instante existe"...

Um chêro, bem pernambucano!