Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sexta-feira, julho 03, 2009

A ESTUFA (impressões ao ouvir Le vent dans la plaine - Debussy)


























Isso tudo era um imenso arrozal experimental,
em que se vinha passarinhar.
Do alto desse barranco,
via-se o movimento verde da plantação
a ondular, feito uma vasta cabeleira.

Dois pequeninos riachos cruzavam a campina lá embaixo.
E, nos tempos das enxurradas,
Meninos desatinados
Desciam rio abaixo, em simulacros de jangadas
Feitas de troncos de bananeira.
Rio abaixo, éramos todos mocinhos destemidos
dos filmes americanos,
descendo corredeiras perigosas, a conquistar o oeste.
Eles também, os ianques, devastaram a natureza
Eles também, como nós
Inventaram as metrópoles
E empurraram os pobres pros guetos.
Eles, somos nós.
Somos todos da mesma estirpe de devastadores
E nem sei se há mais tempo
para tomarmos consciência disso que fizemos a nós mesmos.

Agora sopra o ventania
sobre a cabeleira de amianto
dos milhares de casebres.
Já não há plantações experimentais.
Mas há uma dolorosa estufa humana
Onde se cultiva a fome
A miséria
E a violência urbana.

Hoje os rios correm entre arruados tortuosos
Levando dejetos pelos becos estreitos.
É nessas vielas fétidas,
Que, vez ou outra, se ouvem tiros
E em que, quase sempre,
encontramos menores assassinados.
São as vítimas precoces dessa estufa.
Eis o resultado do que fizemos a nós...

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Para ouvir Debussy enquanto lê, clique:

Le vent dans la plaine

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Fonte da imagem:

FAVELA

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4 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Lennine tem uma letra em que ele escreve algo assim chama 'lá vem a cidade' e ele diz que a cidade vinha vindo feito um incêndio... E assim cidades engolem os arrozais, cidade engolem a vida, os homens, a simplicidade.

Eu sei q viajo e sei q sou hiperbólica e ser menos é sempre um bom exercício de ser qualquer coisa de não ser...
E contraditoriamente pelejo e vou pelejando...
Sou uma bicha besta mesmo dessas q choram à toa e q faz loa com palavras que quebra.
Mas uma coisa não se quebra q é a admiração pelos amigos e, para mim, ainda q sejam virtuais ou amigos d'infância...

Carinho,

lula eurico disse...

Vc é a melhor amiga d'infancia do mundo!!!
Seja sempre desse jeito.

Beijo.

Ilaine disse...

Cidades são, muitas vezes, uma selva de violência humana. Nelas já não há "passarinhar, nem o verde da plantação, a ondular..."

Amigo querido, tenha um final de semana muito feliz.

Beijo

Jens disse...

Eurico, ao ler o poema, lembrei de uma observação do Millôr Fernandes: "o homem é o cancêr da natureza". Cada vez mais me convenço que ele tem razão. O mundo muda, mais para o mal do que para o bem. Lamentavelmente, a cada dia passa o passado fica melhor.

Um abraço.