Uma Epígrafe
"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]
quarta-feira, agosto 11, 2010
Sobrevôo
Um vôo há de revelar-se lírico e livre.
Volitam os anjos.
Adejam as borboletas.
Voejam os pássaros.
Esvoaçam as plumas...
Já um sobrevôo é coisa técnica,
de espécie árida e cabralina.
Serve para exercícios pouco poéticos.
Por isso não se deve voar sobre populações flageladas.
A hora é grave e exige um sobrevôo.
Mesmo que observemos a extensão da dor através de binóculos
e bem assentados em poltronas ejetáveis,
a dor cinematográfica nos comove,
mas não nos alcança, ainda...
(Quem sabe se, seguindo antigo conselho egípcio,
construíssemos nossas moradas longe dos aluviões...)
Ontem, víamos apenas as queimadas, lá embaixo.
Pequeninos animais assustados a correr do fogo;
Depois, viriam imensos canaviais, encravados em nossa alma,
junto com a nossa orgulhosa tradição colonial;
A felicidade do açúcar, do melado, da rapadura...
Surgiriam então belos vilarejos ao longo dos rios.
Casinhas enfileiradas feito centopéias.
Praças da Matriz,
Ruas do Comércio:
bóias-frias felizes a consumir parabólicas.
(Como haveríamos de pensar em remorso pelo fim das matas ciliares?)
Agora os técnicos sobrevoam a tragédia anunciada...
Imagens de um infeliz clichê, em que não há nenhum lirismo.
Há a constatação histórica do óbvio.
E o óbvio não é poético:
Ergueram-se túmulos às margens dos rios,
e os batizaram:
Cidades.
(poema de 06/07/10)
Fonte da imagem:
http://wings.avkids.com/Book/Nature/Images/wright_glider.jpg
Pós-escrito em 11/08/2010:
E eu que pensava que estava viajando na maionese, vejo que há muito tempo os urbanistas sabem que se deve respeitar o rio. O CREA_PE vai ajudar a reflorestar as margens do Rio Una, em Palmares, Barreiros e outras cidades erguidas sobre as matas ciliares. Leia aqui, ou em http://www.creape.org.br/.
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12 comentários:
A segunda vez sempre é com mais detalhes, em qualquer situação. Se a gente vê um filme uma vez, na segunda é tudo muito mais claro, muito mais visível e compreensível.
Profundo e com uma grande mensagem.
Beijos
Esta sua lucidez cabralina, essa obviedade corrosiva, essa acidez que nos devora feito soda cáustica, é uma tsunami diante da nossa omissão.
Falar do rio que transborda, todo mundo fala, mas falar das margens que comprimem o rio, só se dá a perceber quando a tragédia acontece/u, como nos diz Brecht.
Havemos de ter consciência e saldar nosso débito com as matas ciliares algum dia?
Forte e provocante poema-denúncia, Vizinho!
Abraço fraterno.
;)
Vc, viajar na maionese?
Com tanta lucidez!
Impossivel.
Bjs.
Extremamente lúcido. De uma clareza assombrosa.
Avistei tudo como quem voa em voo duplo. No sobrevoo, fiquei a imaginar a paisagem que a poesia sugere, a paisagem de ontem e o tanto que seria possível preservar, apesar do necessário desenvolvimento.
Sobre o voo: é lírico como tu.
E saiba que Tu nunca viaja na maionese, Eurico.
cheiros de infância.
...traigo
sangre
de
la
tarde
herida
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...
desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ
TE SIGO TU BLOG
CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...
AFECTUOSAMENTE
EU-LIRICO
ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE CACHORRO, FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER Y CHOCOLATE.
José
Ramón...
Um vôo descrito de forma belíssima na primeira estrofe. Depois o sobrevôo... E quando haverão de realmente pousar? Eurico, que grito!
Beijo, meu poeta
É Eurico, devemos reeducar nossos olhos para sobrevoos além do óbvio.
Um abraço poético e obrigada por este poema reflexão.
Carmen Silvia Presotto
O voo x sobrevoo, muito interessante.
E apesar dos pesares estamos crescendo em consciência ecológica, apesar dos falsos alardes e dos aproveitadores, tem coisa boa acontecendo.
salve, eurico... diga lá, moço, tudo bem contigo?
desde aqui te leito sobrevoando no rés-do-chão dos sonhos futuristicamente não futuristas; de técnicas de biodiversos afetos.
saudações,
luis de la mancha
Oi, Eurico
Todos sabem, mas não fazem nada, não fizeram. Não priorizam. É lastimável!
Você, consegue sempre trazer a realidade de forma mais leve, mesmo que seja uma realidade dura, cruel, triste.
E quanto ao seu comentário, fiquei me achando. rsrs Obrigada.
beijo
É isso e ponto. Folgo em saber que ainda existem pessoas como tu, preocupando-se e denunciando gentes.
Muito bom te ler!
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