Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, agosto 26, 2010

L'Ultima Pluvia (evocações de um Recife Antigo, Nº 5)




















Quando veio a grande guerra,
Francesco Vita foi fabricar cristais, na Bahia.
A Soledade não mudou.
Continuou, serenamente, a fabricar sua agridoce gasosa de maçã.
Todos já sentiam o prenúncio de tudo.

Anos depois houve a Intentona.
Não precisava ser vidente.
Bastavam os olhos de ver.

Meu pai era infante
e ouviu as éguas relincharem, pressurosas, na cavalariça do 14º RI.
Desabavam as chuvas de março.
Esse era um sinal dos tempos.

O rádio protestava contra as reformas de base.
Breve, um novo arcebispo chegaria a Olinda.
Esta vila libertária seria vigiada de perto pela Opus Dei.

Quando digo que oiço coisas, ninguém acredita...
Oiço a tempestade desabar.

A Fratelli Vita seria comprada pelos ianques.
Os Renda & Priori perderiam o mercado das balas tutti-frutti.
A macarronada daria lugar ao americano.
Logo os brotos da geração Coca-cola
iriam mudar de hábitos,
e a cidade do gabardine
tornar-se-ia blue jeans.
Já não se pedia o grapette,
e a goma de mascar já se mudara em chiclets.

***


Certa vez um estudante me disse que o curso Clássico
do Ginásio Pernambucano iria ser extinto,
para que se formassem técnicos para as empresas estrangeiras.

Eu disse isso a meu padrinho, Contador do Governo do Estado.
E ele me disse:
Menino, nunca mais repita isso!
Quer ser preso?

Eu deixei de parlare in pubblico.
E só oiço.

Mataram um padre no canavial da Várzea do Capibaribe.
O novo bispo fechou os seminários criados por Dom Hélder.
E houve uma grande passeata por Deus, pela Família e pela Pátria.

Tudo estava consumado!

Hoje quando vejo as grandes favelas urbanas
sitiando a cidade,
o rio moribundo e fétido,
os espigões destruindo o casario colonial,
eu me recolho a um canto...

Oiço trinarem os últimos pássaros ,
abarrancados cá na mata dos Brennand.

E oiço, apenas oiço:
Ultima pluvia, questo il loro nome.


Essa chuva há de passar...




Fonte da imagem:
Ruínas da fábrica dos Fratelli Vita, em Recife.
(clic de Kelly Cristina, em 17/09/2010)

4 comentários:

Claudinha ੴ disse...

Contundente relato, poesia histórica!
Estilo que me remete aos meus tempos na minha querida Ouro Preto. Clássico!
Um beijo.

lula eurico disse...

Grato, Claudinha,
mas essas são apenas elucubrações de um convalescente ocioso. rs

um abraço carinhoso, amiga.

lula eurico disse...

Hoje, 17/09/2010, ganhei da Kelly essa foto fresquinha, ainda com a luz dessa tarde. São as ruínas da Fratelli, em Recife, Ali, na Soledade, pertinho da Universidade Católica.

Salute a todos!

lula eurico disse...

Uma explicação:
nessa série "Evocações de um Recife Antigo" eu fiz poemas para as diversas colonias que habitam a cidade: italianos, judeus, libaneses, portugueses, etc.
Eis o motivo de aqui estar o L'Ultima Pluvia...

Abç