Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, agosto 29, 2010

De Tigres e de Cães (evocação dolorosa)


















Cruz do Patrão - Recife - PE
(imagem recolhida no Google)



Duas vilezas,
das mais torpes crueldades,
estão guardadas na intra-
história dessa cidade:

...os tigres,
esse era o nome que se dava aos escravos
que carregavam na cabeça
os vasos dos excrementos
dos seus senhores, nojentos.
A amônia e a uréia
desse fedido xixi
que escorria dos barris
marcavam nas costas negras,
listas brancas, e assim,
os escravagistas, tão vis,
chamavam tigres, a esses
humildes carregadores,
desses primevos brasis.


...e os cães,
coitados, que, inocentes,
comiam carne de gente
de pele negra, enterrada,
em covas rasas na areia,
lá na Praia dos Milagres,
ou sob a Cruz assombrada,
que fica no cais do porto,
guiando o patrão dos barcos,
quando da atracação.
Decerto, a maior vileza
dos que se dizem cristãos,
mas, capazes, Deus o sabe!,
de infâmias sem perdão:

enterrar à flor-da-terra,
os corpos dos seus escravos,
Cruz credo! e os cães, coitados,
famintos, desses despojos
faziam sua ração.

***

Essa era uma história não-dita,
dessa metade maldita,
de nossa Mauritzstad.
Se não fossem as notas de viagem,
de certa Maria Graham,
turista anglo-saxã,
talvez não viessem à tona
essas verdades malsãs.

***

Oiço os gemidos...
Escutem!
Almas penadas uivando,
ou são ganidos de um cão?
Não passem nunca de noite,
por trás do Forte Brum.
Por lá, de jeito nenhum!
Por essas horas que são,
juro que oiço gemidos,
entrecortados de açoites,
junto da Cruz do Patrão!




Notícias sobre Maria Graham

9 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Foucault dizia que esta é a história real. E eu me pergunto o porque de haver tanta escatologia nos porões da história.

Este teu texto é um documento, Eurico e você está poeta e historiador. Estou adorando este teu momento de profusão de idéias e produção literária. (este tema daria uma bela dissertação de mestrado, viu?) Anime-se!

abraçamigo, bom domingo e boa semana.

C@uros@ disse...

Meu inspirado poeta Eurico, eu fico profundamente entristecido com essa crueldade contra meus ancestrais. Meu coração fica partido e a alma sofrida pois, nós os negros, ainda sofremos por causa da cor de nossa pele...lamentável. Parabéns pelo seu lindo trabalho, muita paz, harmonia e mais inspiração em sua vida.

forte abraço

C@urosa

Anônimo disse...

Assunto serio e pesado meu amigo, mas que tem ser tratado.
Bjs.

Ilaine disse...

Ah, meu poeta! Que triste quadro nestas rimas.
Beijo

lula eurico disse...

Amigos, amigas,
sou da terceira geração
de uma família de escravos forros,
pelo lado paterno.
Luiz Eurico de Melo, o avô negro que me deu
o nome e do qual herdei
parte de sua biblioteca de autodidata.
Portugal me entra no sangue
pelo avô materno,
padeiro de profissão.
Mas não lhe renego o pão. rsrsrs
Sofro essa dor na pele,
mas isso tb me impele
a ser melhor e mais justo.
Melhor que justo, fraterno.
Que a raça humana é uma só.
As outras são pigmentos,
uns mais claros, ou mais escuros,
pra pele aguentar o Sol.
Trato o tema com a certeza
de que não mais vai suceder.

E agradeço a leitura.
a
Aliás, fiz 7 poemas, anteriores a este.
Aliás, 8 poemas.
Todos falam de um Recife imemorial,
mas tratado sob a lente
distorcida de um poeta,
cuja mente
está imbuída desses tais mistérios órficos...rsrsrs


Abraços, abraços, abraços...

Marco Alcantara disse...

Eurico tu tem o dom da palavra.

Eis que um fã seu se declara aqui.

As ruas de Recife ainda fedem, a pobreza cheira mal. Jogamos agua para limpar ou jogamos a sujeira debaixo do tapete.

As senzalas viraram palafitas.

Um Abraço grande irmão!

lula eurico disse...

Marco, amigo e irmão querido,
vc é um fã que tem de mim toda a admiração. Ou seja, tb sou teu fã rsrsr

Abraçamigo e fraterno.

Canto da Boca disse...

Aí está o papel do historiador, do poeta - do homem - : desmistificar e revelar todas as histórias que nos contaram a partir da ótica oficial, mergulhar nos escritos dos cronistas do poder. Recontar as histórias - escabrosas -que ficaram registradas nos porões e nas memórias.

Camarada Eurico, pode apostar que o prazer foi partilhado, merecemos um café com mais tempo e sem show do Ney Matogrosso logo a seguir, um café sem hora para terminar. Em dezembro vou dar um pulo nas Olandas e marcamos.

Abração!

Paula Barros disse...

Eurico, já estive na Cruz do Patrão a noite, um passeio promovido pela Prefeitura, é bem interessante. E você trouxe um pouco da história que se conta.

abraço