Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

segunda-feira, novembro 03, 2008

Recife (miragem cianótica)




Ave maldita,
ave sem plumas.
Feiúra cabralinamente bela
:
asas pardacentas sob um céu aberto e azul.

Em ninhos de miséria e maresia
sob pontes e marquises,
a eclosão famélica de infantes e pardais;

Agora, o ar irrespirável do rio moribundo
:
O bairro antigo e sem vida.
Os arrabaldes com nomes de engenhos de fogo morto.
E essa aristocracia decadente e depressiva.

Um lastimável niilismo.
Crepúsculo dos ídolos
e dos jovens em queda livre
do alto do prédio das Ciências Humanas.

Poetas marginais com cirrose...
Com overdose.
O estreito beco da fome, da sede...
e da morte...


Embora, um fim de tarde em mar azul e transitório...
na exatidão aquática dos versos,
azuladamente, o mar,
miragem cianótica;
azuladamente, amar
em porto provisório...

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Eurico

(fotopoema estático e sem data)

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Fonte da img.:
moreda.files.wordpress.com/2007/03/recife-ceu-azul.jpg

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15 comentários:

Dauri Batisti disse...

a beleza aqui é cert. mesmo assim em sofrimentos sobre a cidade cianótica, vida e morte, fogo rio morto, tudo transitório, até os poetas. Doeu ler, terá doído ao escrever.

Abraço.

lula eurico disse...

Mozart também sofreu pra compor essa bela missa...Mas "o poeta é um fingidor, consegue fingir que é dor a dor que deveras sente..."
Abraço fraterno, amigo Dauri, meu irmão das letras.

Elcio Tuiribepi disse...

Esta citação é do Fernando Pessoa? Bom...seja de quem for, esta repleta de razão, as vezes para escrever é necessário entrar num mundo que as vezes nem é mesmo seu...que seja transit´ria sempre toda a dor, mesmo não sendo nossa...grande abraço...valeu a visita...

lula eurico disse...

Sim Elcio, é do Pessoa, no poema Autopsicografia. Aqui há ecos de diversos vates: João Cabral, Drummond, Pessoa e, especialmente do poeta azul, o recifense Carlos Pena Filho.
Abraçamigo e fraterno.

Jacinta Dantas disse...

Letras que me fazem tremer, refletir, sentir e me perguntar qual é minha contribuição para sair desse círculo depressor.
Que poemaço rapaz!
Beijos

lula eurico disse...

Grato, Jacinta. Muito grato. Entendo a tua empatia e isso já me faz reflorescer...

Ester disse...

Seu blog não se parece com nada que eu tenha visto anteriormente, que bom!
Palavras cortantes como navalha que leva a reflexão profunda, é tudo de que precisamos,

saudações,

Dora disse...

Uma visão de Recife, sem oxigênio, sem vitalidade. Decadência. Até na poesia...Mas, sempre há o mar azul que, numa das suas marés, pode refazer o berço dos que decaíram.
Eu não conheço Recife e fiquei perplexa com essa descrição...Imaginava uma outra, digamos, mais sadia...
Beijos, poeta.
Dora

lula eurico disse...

Dorita, talvez as lentes embaçadas dos meus óculos vejam essa cidade como sendo antivital e antipoética. Há outros Recifes por aqui, sim. No entanto, há sim esse que aqui descrevo.Temos perdido muitos jovens poetas, que sucumbem diante do ácool e de outras drogas, fazendo pose de artistas e se consumindo no tédio e no vício. É preciso separar a arte do estereótipo do porra-louca. Prefiro os mineirinhos que nem o Drummond, vida pacata, sem sobressaltos, mas a alma em ebulição.
Beijos.

Loba disse...

Poeta, poeta!
Que poema cortante! Esta visão cianótica não seria a saudade lancinante de um certo sítio?
Mas não há como deixar de dizer: apesar da dor, existe a mais pura poesia!
Beijo!

lula eurico disse...

Obrigado, Lobamiga, por elogiar esse poema da boca suja. É preciso dizer essas coisas, por que nós, os habitantes das cidades riberinhas, matamos os rios, excluímos nossas crianças, ou seja, cometemos pequenos infanticídios, e depois nos lamentamos de que os jovens estejam apáticos, sem ideais...
Esse poema deve sim, nos ferir, ferir a nossos contemporâneos. Que cidades deixaremos para os nossos netos?
Ah...o sítio do meu compadre Carlinhos. Faz tempo que não vou por lá. Mas já está sendo contaminado: mataram uma menina carnaval passado, entre as árvores frondosas. Estupro seguido de morte. Pode? Em pleno sítio histórico d'Olinda?
Muita paz, Lobamiga.
Abraçamigo e beijo nos netinhos.

Carlinhos do Amparo disse...

Pois é, compadre, apesar de que prefiro o Recife mítico, o do poema Mitopoese: o Unicórnio, de um post antigo daqui, a essa cidade agonizante, nesse poema sem verbos e sem vida.
Apareça no Sítio d'Olinda. Lá tem água fresca e sombra. Vão te fazer bem...rsrsrs
Abração!

Jacinta Dantas disse...

Ei Eurico,
estou passando para desejar um final de semana com muita poesia. Também é para dizer que gostei do comentário que vc deixou. Menino, a imagem que tenho do sermão da montanha é qualquer coisa assim de...mágico.
Jesus, sempre falando do hoje, do viver o passo quando esse está sendo. Isso é lindo.
Abração

lula eurico disse...

Pois é, compadre, eu também prefiro as matrizes míticas da realidade à realidade em si, crua e sem véus, mas...ela é o que encontramos de imediato, é a nossa circunstância e "se não salvamos a ela não salvamos a nós", dizia Ortega y Gasset. O poema que falas agora tem um marcador aqui. Basta clicar em mitopoese.
Abraço fraterno.
Breve apareço lá no Sítio.

Sueli Maia (Mai) disse...

Olá Eurico, obrigada pela visita. Gostei imenso de tudo o que li e vi aqui. Textos e imagens garimpados, diamantes de maior quilate.
E escolhí teu especial poema, porque também a mim, a cianose dessa mátria-terra também aflige. Foi bom esse encontro. Não te perderei de vista.
Abraços-mamelucos....