Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, novembro 16, 2008

TRIPÉ: um apontamento esférico



























O tripé que sustenta a Super-8 parece um louva-a-deus. Sua cabeça miúda aponta para o cais da Aurora:
O rio calça as botinas do lixo e da lama brotam pneus, flores inúteis. A vazante desnuda o Capibaribe. Jazem, nesse leito enegrecido, pequenas balsas e baiteiras, encalhadas feito capivaras moribundas. O velho rio, agônico, bebe o vômito que escorre pela boca das sarjetas.

Seres entrópicos é o que somos.
Erguemos túmulos às margens dos rios e os batizamos: Cidades.
Ajoelho-me sobre o pequeno inseto. Suas patas dobráveis inclinam-se sobre o cais. Sinto-me um lepidóptero. Minhas palavras, asas enlameadas. O rio escorre de minha boca, trompa espiralada, em sons inaudíveis, desce de minha alma, larva de tungstênio, cruza a Cidade, crisálida, casulos miseráveis, povo ribeirinho, mangue, o rio escorre de mim. Vem do mar e volta ao mar, dentro de mim: abissal é o eu-profundo. E o rio, este que aqui escorre esfereográfico, é o rio nascido de minhas entranhas. Seu nascedouro: um lago vulcânico em algum lugar de meu interior. Não é mais o rio que vejo (que via) sentada nas pedras do cais. Este é o rio sinuoso das minhas correntezas mais fundas. Sinuoso e enganador como as palavras que invento. Invento? Caminhando à margem (do rio?) ouço, quase mediunicamente, a voz, a fricativa voz da brisa recifense. Sussurra-me uma mensagem ultrafanica. O rio escorre hac hora da boca do Tempo: oiço vozes que não invento. Frases de vento. Inolvidáveis correntes que fluem de um rio invisível. Psicografo?

Foi em meados de 1972 que li A Queda, de Camus. Um livro agudo como uma adaga. Percorri com o Juiz-penitente um cais imaginário. Fitávamos, peripatéticos, aquelas águas turvas e agonizantes (do Sena ou do Reno?). Teço, hoje, esse cais de palavras. Pode haver uma relação distante e atravessada entre as águas do Capibaribe, que hoje escorrem enlutadas, e o monólogo do Juiz-penitente?

Do cais da Aurora o rio revisita, em sua língua morta, o cântico universal da dor humana.
Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas, / Serras e almas, ó Tempo! / e, em mudas cataratas. / As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa... / Todas ferem, passando: e a derradeira mata.
As águas poluídas da minha alma turva e impenitente amaldiçoam as cidades erguidas sobre a lama dos homens. Através dessa olho-de-peixe, os diques lodosos me chegam distorcidos, imagens baças, circulares. A vida me vem enviesada, distorcida, circular. A lama. O lixo. A lama. Tento revelá-la nessa fraseologia em preto-e-branco.

O rio corre para o mar enlameado. Vejo um rosto lamacento no espelho que trago entre as mãos. As horas passam fluviais e atravessam essas páginas amareladas. Amarelentas, passam as horas. A maré, lenta, conta e reconta suas enchentes, suas vazantes. A maré lenta: um relógio lunar.
Lembro de uma frase que costumava ser escrita nos mostradores dos relógios antigos: Vulnerant omnes, ultima necat...
O rio, moribundo, aguarda a sua hora, a derradeira, agonizante. Abraçada ao louva-a-deus, recito Bilac:
E bendita, que, sobre a minha cova aberta, / Pairas, última, ó tu que matas e libertas!
********************************
Img do encontro dos rios no Recife, no estuário, chamado,
impropriamente, Bacia do Pina:
********************************
Nota do Editor:
TRIPÉ é um dos capítulos de BÓSTRIX N'ÁGUA (apontamentos esféricos),
uma espécie de romance virtual, um e-book,
experimento de narrativa digital que venho montando há alguns anos.
Publiquei alguns textos desse romance em postagens anteriores, aqui.
Esse trecho é dedicado à amiga Jacinta, que me honrou com a citação de
uma pequena passagem no blog Florescer, e eu decidi postar
para contextualizar aquele fragmento.
*************************************************
P.S.: a voz narrativa é de uma personagem feminina,
a cineasta e fotógrafa Marília Spencer.
*************************************************

18 comentários:

Jacinta Dantas disse...

Rapaz!
não imaginava que a frase que eu gostei, e fiz questão de deixar em destaque no meu florescer, fizesse parte de um todo tão maior. Gosto disso: da problematização que chama a atenção, que provoca e faz pensar. Pensar em minhas inquietações, no quanto esquecemos que, com a irmã água, já passou da hora de retomarmos o diálogo e refazermos os laços - água e gente...é lindo.
Beijos

lula eurico disse...

Isso, minha irmã das águas, é isso mesmo. Esforço-me pra provocar, pra fazer pensar. Afinal a vida surgiu da água. E o que estamos fazendo com os nossos rios?
Se consegui mexer com vc com uma ilação que fiz naquele comentário...fico feliz. É essa a meta a ser atingida. Só temo que nem todos sejam sensíveis isso como vc.

Loba disse...

Nossa, que belo texto! Tenho uma admiração profunda por quem sabe provocar usando a beleza poética para desnudar nossas inconsciências!
Sãomuitos os rios que pedem socorro. Mas osmos poucos a saber escutá-los.
Parabéns, poeta! E que venha logo o livro inteiro, hein?
Beijo!

lula eurico disse...

Nesse caso de escrever em prosa, tenho um outro mestre, não na qualidade, mas na morosidade, o Ariano Suassuna, que passou uma década para publicar A Pedra do Reino. Eu vou bater o recorde dele, e já passei dos dez anos com meu Bóstrix N'água. Preciso inclusive dominar a editoração gráfica, aqui na web, para concluir esse jogo de armar. Mas em breve ele vai sai...
Bjo grande, menina Loba.

lula eurico disse...

digo, vai sair...

Sueli Maia (Mai) disse...

Muito, muito bom.
Camus.... Outra vez.
Voltarei, sempre.
Abraços.

Sueli Maia (Mai) disse...

Olá Eurico,
de novo, fantástico!
Sempre que volto, revejo minha terra.
Muito bom este espaço.
Abraços,

* hemisfério norte disse...

gostei do texto
obrigada

-
p.s. - na visita a recife gostei muito de ver Francisco e Ricardo brennand. gostar é pouco...ameiiii
-
bj de Portugal
a.

Dauri Batisti disse...

Lindo texto. Mais, vou me repetir, arte. Pura. Meu amigo, parabéns.
Um forte abraço.

Ps. Fico honrado quando comentas meus "poemas". Obrigado.

dácio jaegger disse...

Eurico, é bom demais quando se depara com textos inteligentes que mexem fundo com nosso querer. Querer que o mundo estivesse melhor, o que merecemos. Querer que no particular, as artérias que irrigam nossos campos e cidades não estivessem tão cheias de êmbolos e toxinas. Querer que os manda-chuvas mandassem menos tempestades de desmandos e desatinos. Querer que o canto pudesse celebrar os não estertores. Saio encantado. Perícia. Qualquer dia Eva surgirá no noticiário . Abração

lula eurico disse...

Pois é Dácio, tb gostei do teu texto no Palimpnóia. Muito bom e bem humorado. Apesar de tudo vale a pena estar na luta e sorrir é preciso, mesmo que seja de nossa própria fraqueza de machos...rsrsrs

J Araújo disse...

Muito interessante e traz muitas informações importantes.

Abraço

Ester disse...

Eurico,

você faz do texto um ato de amor
alguma coisa que transcede,
excelente!


bj

ACÍBEL - Blog oficial disse...

Descobrimos o seu blog e já gostamos!!!
Até!!

Jacinta Dantas disse...

E ae compadre,
já estou com saudade de te ler. Você faz falta, sabia?
Beijo

Dora disse...

Caro poeta-prosador. Essas águas do Capibaribe parecem nascer de um ventre humano, e não da nascente fluvial. Há uma simbiose gente-rio perpassando pela lama e pela poluição, num lamento agônico da voz feminina.
É como Jacinta traduziu: um diálogo. E eu o ouço, à beira de um rio agonizante, que responde com a visão do desleixo e do desamor humanos, ecoando no choro das águas.
Pungente o texto. Revelador de uma culpa que é de todos nós...
Abraços.
Dora

lula eurico disse...

Bom te ver, Dora. A espera do teu regresso valeu a pena.
Grato pela visita e pelo comentário.

Rejane Martins disse...

Sabe, Eurico, quando resolvi entrar no mundo dos blogs, não o fiz por acaso; fiz com o intuito de encontrar humanidade também em espaço virtual. E mesmo considerando a dificuldade de achar (entre as mais diversas personas), nunca perdi a esperança. Cada vez que venho aqui tenho certeza de que não errei, pela grandiosidade do que encontro.