Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, outubro 04, 2008

O Artista e seu Chapéu


























Esta edição do Eu-lírico
é dedicada aos inventores silenciosos, aos
que trabalham sem ruído, amassando
o verbo com a ponta dos dígitos,
(mesmo os que usam apenas o índex);

Aos que, verbofágicos, assentam-se
à ceia dos comedores de palavras para degustar
o peixe mitológico
e arquetípico.

Aos incendiários, aos que atritam
palavras coruscantes.
Aos que ousam parir
e dão à luz os seus filhotes, nas cavernas neo-modernas.
Aos roubadores do fogo,
os que expõem suas vísceras aos abutres:

Esta edição do Eu-lírico
é pra vocês

Poetas tribais e ideoplásticos
que vivem sob a unção da Palavra!

(transcrição do pósfácio do Eu-lírico nº 7 jul/ago 1995)


***********************************************

SALMO XXIV - O Artista e seu Chapéu


Ó chamas esfaimadas, velozes, inexatas
como uma língua de lava. Ou rio,
um imenso rio, fumegante enxurrada.
Seu rastro incandescente: o léxico brasil,
palavras fumarentas, falidas e tisnadas,
na língua de estupor de mães desesperadas:
Herodes, ó Herodes!
Romãs ensangüentadas.

(E pode traduzir-se o orbe
em árias, aquarelas, valsas, odes?)


Agulhas de tricô/espasmos nucleares
Aidéticos de trem, luar/Louis Pasteur
Tropel, trovões, tzar/ Tristan Tzara
e a degenerescência que tão clara

Vincos do nada
Ecos vazios
Alvo e absurdo
Demolidor. Cinzel. Nuncas e tudos.

VENDE-SE UM NEXO ÍNDIGO BLUE EM ÓTIMO ESTADO

Chamas na sala, bicos vorazes, mães, lavaredas.
Tenor, gibi, maçã cansada e em relativa ordem

(E ouso perguntar se o mundo pode
traduzir-se...pode?!
em árias, aquarelas, valsas, odes?)

Eurico
(poema transcrito do zine Eu-lírico, edição nº 7)

***********************************************

Comentário ao Salmo XXIV
(por Carlinhos do Amparo)


As palavras são objetos plasmáveis, ideoplásticos, musicais.
Apalpadas, moldam figuras;
Sopradas, produzem voz;
Atritadas, soltam centelhas, chamas incendiárias.

O artista, em seu ofício, debruça-se sobre elas : desmonta-as,
reinventa-as, dá-lhes novo ser. Busca, como o pintor materista,
esmagá-las sobre o suporte. Joga-as umas contra as outras.
Seu intento?
Que elas centelhem. Que tragam de dentro sua luz.
E que essa luz alargue os limites da realidade.
Que nos faça adentrar a instância da Arte.
No mundo absoluto.
Na Poesia.

Neste Salmo XXIV - O Artista e seu Chapéu, o poeta atinge
as palavras em seu âmago. Elas emergem, vulcânicas, ab/surdas,
para reconstruir o mundo, voz flamígena.
O poema busca angustiadamente seu nexo.
Mas o nexo da poesia é o indizível.

Pode a palavra poética traduzir o mundo?
O poema é atravessado por essa antiga questão, como se essa
fosse a sua própria razão de ser: a única coisa que faz sentido
no mundo estranho e hostil em que se dão os poemas.

Mas ouso perguntar se o mundo pode
traduzir-se (pode?!)
em árias, aquarelas, valsas, odes?


******************************************************

Quero dedicar essa postagem,
apesar de ser uma transcrição de 1995,
ao Mestre Luís de la Mancha
vate da voz incendiária!


A capa daquela edição do fanzine,
inspirada no célebre chapéu com velas de Van Gogh,
deve-se ao pintor Eugenio Paxelly,
poetartista-plástico neo-barroco!

27 comentários:

Dauri Batisti disse...

A erudição se expõe tão suave aqui neste blog. Não há arroto, há beijo.
O conhecimento e a arte forjando poesia. PARABÉNS!!!

lula eurico disse...

Ai de mim, amigo Dauri, um bibliodidata não alcança a erudição jamais...rsrsrs Mas alcanço a generosidade dos amigos, e isso me basta.
Abraçamigo, agradecido e fraterno!

Dora disse...

Eurico. Quem me dera acompanhar essa erudição(como disse o Dauri), penetrando-lhe o verdadeiro sentido!
Fico na superfície, apanhando o que aflora, já que não atinjo o abismo oceânico de sua exposição.
Na verdade, há muitos vocábulos para se gastar na tentativa de comentar sua postagem: "O Salmo XXIV- O artista e seu chapéu".
Consigo ver a intenção do poeta que pretende mergulhar nas palavras do nosso léxico( o português, originado do latim), palavras essas que "emergem vulcânicas" e não dão conta de traduzir a realidade de forma leve: em "aquarelas, odes...", etc.
O poeta seria como Van Gogh que colocava velas acesas no chapéu, para enxergar e pintar as estrelas, à noite?
E o Salmo XXIV que conheço é como uma oração de lamento e, ao mesmo tempo, de fidelidade a Deus...
Não consigo fazer a ligação dos elementos poéticos.
Fica aborrecido com minha inaptidão? Beijos muitos!
Dora

lula eurico disse...

Não, não há relação alguma entre eles, Dora. É que em 1995 eu escrevi uma série de Salmos Apócrifos, que iriam ser convertidos em estandartes para uma caminhada poética pelas ruas d'Olinda. Não deu...o projeto ainda está na gaveta rsrs.
Dora, há em mim uma criança que deseja dizer algo e só consegue balbucios. Esses gugus e dadás infantis estão nesse salmo apócrifo. Há mais dadás do que o permitido aí. Que o diga o Tristan!
Abraçamigo e fraterno, Poeta.

Ilaine disse...

Querido amigo!

Silenciosa leio e releio estas palavras e me perco em seu universo que, decididamente, é grande demais para o meu entendimento.Estou pasma.

"Dora, há em mim uma criança que deseja dizer algo e só consegue balbucios. Esses gugus e dadás infantis estão nesse salmo apócrifo. Há mais dadás do que o permitido aí. Que o diga o Tristan!"

São balbúcios? E dadás? Então, não cresça mais, meu querido.

Eurico! Sim, a foto no post lá no Baú é de NOSSA Olinda. É uma das fotos que tirei. Este mar belo tem em sua grandeza algo de distante. Distante de mim. As fogueiras estão incendiadas.

Beijo, poeta maior!

Canto da Boca disse...

Graças aos céus, aos deuses, às deusas, a Deus, aos poetas, aos loucos, aos transgressores, que "Há mais dadás" permitidos aqui, do que Idi Amin Dada, que um dia foi, ali e jamais há de ser outra vez... Que o espaço Eurilírico seja sempre de liberdade e autonomia(s); que o requintes poético seja o nosso credo número 1; que o talho seja sempre na alma a crescer belezas, a expandir poesias, lirismo, e quem sabe uma pitada de melancolia? Que esse chapéu de VanGogh; do genial professor Pardal; o coco de Chaplin; o chapéu preto do Pessoa; o chapéu do Jonh Lennon; do Sherlock Holmes; do Richard Blane - personagem de Humphrey Bogart em Casablanca -; do Indiana Jones; do Virgulino Ferreira; do Chapeleiro Maluco do Alice no País das Maravilhas; o chapéu do embolador nas ruas e esquinas da vida; o chapéu dos camelôs da arte mundial, seja qual for, a cabeça que o usa, que seja para a alegria, poesia, celebração e proteção e nunca para a opressão... E como um mantra, quero recitar todos os salmos para jamais calarem as doces palavras das Bocas!
Meu vizinho de cidade e pensamentos, vá desculpando a ausência, vai ser mais-ou-menos assim, por alguns enquantos. A vida urge e ruge na urbe portucalense. Mas vou desafiando e desfiando brechas para vir aqui te ler e sentir.
Carinho e abraço cheios de chuva (aqui está diluviando), d ´além mar!

lula eurico disse...

Puxa vida, como é bom pro nosso ego publicar aqui...rsrsrs Fico envaidecido, Boca querida, com as tuas palavras. Você foi longe na descrição dos chapéus. É isso! Eu uso chapéus de todo tipo.Um para cada estado de espírito. Faltou o do Chico Science na tua lista né? Também uso o dele. E os afros, etc... Esse foi um dos motivos do poema. O outro foi no ateliê do amigo Eugenio Paxelly, que era no Amparo, em 1995(hoje está no Janga) quando tivemos a idéia da caminhada poética, um livro ilustrado em estandartes, ou como em mastros de procissões, um cortejo. Diversos artistas pintariam as bandeiras e sairíamos pelas ladeiras...ah, que pena...não aconteceu...ainda.

Um beijo do lado de cá do oceano Atlãntico.

lula eurico disse...

Ilaine, querida, quanta generosidade nesse teu imenso coração de mãe e de gaúcha. Sou um pequeno poeta, com 1,69m de altura. Fico mais alto quando uso chapéu...rsrsrs Mas ainda tenho muita, muita estrada pela frente para querer ser um Poeta. Óxente! Vixe Maria! Quem sou eu menina. Mas esse poema atinge o seu objetivo se fizer alguém pasmar, estranhar, indagar dele o seu nexo. Ele busca dizer (como sempre em poesia)o indizível. Assemelha-se a pintura abstrata...de um mau pintor rsrs Se te trouxe admiração, alcancei, em ti, o alvo esperado. Uns ecos do dadaísmo, uns balbucios, nada mais do que isso, amiga Ilaine, queridíssima.
Ah, não quero deixar de ser criança nunca...Sem criança não há invenção, nem novidade, nem poesia..
Abraçamigo, bem nordestino e fraterno, visse?...

Loba disse...

Eurico!
Vc me conhece e sabe que já sou inibida por natureza frente aos seus versos. Hj a inibição alcançou graus altissimos! Como se não bastasse a dupla Eurico/Carlinhos, juntou-se a ela estes belos comentários de quem sabe ler/sentir/degustar a poesia.
Que posso eu dizer/fazer senão reverenciar este espaço?
E deixar beijos encantados! Aos poetas do post e a todos que contribuem para toda esta lindeza!

lula eurico disse...

Deixe disso, Lobinha, vc não precisa bater pra entrar na casa espaçosa que criei aqui no Eu-lírico. Se achegue! Pensei que vc não viria! Já estava enciumado, ao navegar pelos blogs e te encontrar a comentar sem vir até aqui rsrsrs
Pra vc esse chapéu é uma cartola de onde saem columbas, palomas, a esvoaçar, ternamente alvas, sobre um céu avermelhado como o teu blog... Pra vc, Loba Romana, não posso ser hermético e me abro num sorriso, franco e transparente...
Quem dera só por um minuto a tua copiosa verve, plural, cálida, humana...
Tiro o chapéu do artista pra vc...
Seja sempre muito bem chegada nesse sítio lírico! Você é da minha tribo ancestral.
Abraçamigo e carinhoso!

dade amorim disse...

Puxa, Eurico, que blog bacana!
Já gosto muito daqui.
Beijo e não desapareça.

lula eurico disse...

Grato, Adelaide. Prometo ir te ler mais vezes!
Um beijão!

Loba disse...

Meu poeta querido! Vim pra agradecer seu comentario - pq vc sempre me encanta e se faz companheiro!
Chego aqui, leio sua resposta e me desmancho! Este mundo dos blogs é mesmo surpreendentemente delicioso! Em que outra situação eu poderia me sentir acarinhada por alguém geograficamente tão longe de mim? Mas temos asas, né? E nossa alma não é pequena! rs...
Um beijo hiper agradecido!!
PS. ando completamente perdida no tempo e no espaço. Demoro, mas jamais deixarei de vir!!!

Luis Eustáquio Soares disse...

salve, poeta, de eus-liricos que são delírios de lírios nos rios dos cios. agradeço a referência carinhosa e,como num potlatch, numa traca simólica impossível, devoro as metamorfoses dos verbos de sua potência poemática, cada vez mais linha do horizonte no caosmológico abraço às estrelas, porque eu-lírico é pra brilhar...
meuabraçoafetuoso,
luis de la mancha

lula eurico disse...

amigos,uma pane no pc vai me tirar do ar por uns bons dias. Mas voltarei com toda força, em breve.

Loba disse...

Oi querido!
Que bom que já resolveu os problemas técnicos!
Agora, só falta nos presentear com mais uma cria desta mente poética, né?
Tava com saudades.
Beijão

Canto da Boca disse...

O cheiro chegou numa boa hora, tou mortinha d saudades daí, e um legítimo representante desse lugar, me trazer um cheiro, é uma coisa boa por demais, visse?
Tomemos poesia, pois, espero que dê ao menos um aperitivo.
Obrigada por sua companhia e seu carinho... O poeta vai recompor o chapéu coco?
Abraços, Erico!
;)

lula eurico disse...

Pois bem, dona Loba Romana, aguarde as novas crias, em breve, neste sítio poético.
Bjo.

lula eurico disse...

E vc, Boca linda das lindas Olindas, terá sempre por perto esse conterrâneo, com chêros e afagos bem pernambuquinhos.
Outro chêro carinhoso.

Elcio Tuiribepi disse...

Olá Eurico, pasando pelos blogs amigos, cheguei até aqui, boa surpresa esse seu eu-lírico. O título fez com que eu lembrasse de alguns poemas meus que entitulo com "Eus"...por ex: Eu, poema... Eu, água... Eu, folha...e por aí afora...Seu espaço tem um jeito forte e determinado, portanto, lendo sobre um projeto ainda inacabado deixo aqui uma frase do "Fernando, que as vezes nem parece Pessoa" que diz o seguinte:
Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue.
Fernando Pessoa
Sucesso em sua empreitada...pois dá para sentir que coragem é o que não falta...um abraço na alma...apareça.

Dora disse...

Oi, Eurico! Você é um dos blogueiros mais "sumidos" da blogosfera! Sabia? Parece um cometa. Passa, deixa o rastro luminoso e a gente só fica com o risco de fogo, na memória do olhar...
Eita! Eu, que sou do tipo impaciente...rs não gosto de esperar!!!!!!
Venha poetar, moço!
Beijos.
Dora

Estella Maris disse...

Como é feita a distribuição do seu zine, qual o preço e e m qual estado é veiculado??

Bjs

lula eurico disse...

Né nada disso, Dora! Foi uma pane no meu pc, que quase perco contos, poemas, romances inacabados. Foi um susto grande. Fiz o tal up-grade e estou de volta.
Abraço fraterno.

lula eurico disse...

Stella, posso te mandar cópias gratuitamente, mas não edito o zine desde 1996, creio eu. Migrei pra internet e foi o fim do zine-collage.
Abraçamigo e fraterno.

Estella Maris disse...

ah Legal, então vc colocou tudo neste blog, entao vou dar uma lida por aqui mesmo, ah coloquei o teu link no meu site se importa??

Rejane Martins disse...

SALMO XXIV - O Artista e seu Chapéu
Eu venho ler outras coisas... e elas nunca são antigas, nunca estão atrás, nunca estão mortas, sempre latentes, sempre batendo forte no coração. Tua escrita se fez assim.

lula eurico disse...

Ah, Rejane,
vir aqui e reler esses comentários me deram uma baita saudade dos amigos.
Ainda bem que tenho vc, minha amiga.
E agradeço por teus comentários.
Eles me instigam sempre a produzir.

Abraço fra/terno.