Nota inicial (sobre a figura acima):
Quem conhece o carnaval de Olinda, há de lembrar do calunga chamado de Homem da Meia-noite, um quase-totem ambulante, que é carregado nos ombros pelas ruas da cidade alta, na madrugada do sábado para o domingo de carnaval. Percebam, pois, pela tapeçaria acima, o que há de Ibéria em nossa carnavália.
Pois bem:
Eu dizia, na postagem anterior, que o Recife é uma cidade profundamente ibérica. Pode isso parecer ululantemente óbvio, sabendo-se que todo o país já foi um dia Reino de Portugal e Algarves. No entanto, comparando a nossa capital com outras grandes cidades do Brasil, por suas manifestações culturais, ficará evidente o quão mais portuguesa do que as outras é a nossa Arrecifes dos Navios.
Há poucos anos, movido de compaixão pelos menores de rua, um desembargador humanista e comprometido com a nossa cidade, resolveu fazer um resgate dessas crianças abandonadas, através da música. Lembrem que na Bahia, já faz algum tempo, os timbaleiros, os percussionistas, já tinham feito o mesmo com o projeto Olodum, tendo alcançado excelentes resultados na assistência aos pequeninos "capitães da areia". No Rio de Janeiro, de há muito se ouve o samba dos Meninos da Mangueira, inclusão social e divertimento ao mesmo tempo. Portanto, duas importantes expressões de cultura negra, uma baiana e outra carioca, ambas atuando em prol da inserção dos menores na vida social.
Bem, mas o que fez o nobre magistrado recifense para resgatar os infantes de nossas ruas?
Fundou a mais bela e virtuosa banda sinfônica infantil já vista em nossa cidade: a Orquestra Criança Cidadã, dos meninos e meninas do Coque. O Coque é uma antiga comunidade de carvoeiros, hoje favela urbana, com população carente e alvo de muita violência. Lá foi criada uma maravilhosa orquestra de pequenos virtuoses.
E aqui faço um alargamento da minha frase inicial: o Recife é bem mais do que ibérica, é profundamente européia.
Os meninos do Recife não batem em latas, em surdos, nem em timbales. Os violinos e cellos da Orquestra da Criança Cidadã enchem nossa alma de melancólica ternura. Isso é o Recife. Querem algo mais europeu? Os resultados são tão bons quanto os da Bahia e do Rio, diga-se de passagem. Mas, a forma de estruturar a ação é solene, racional e erudita: um desembargador e um maestro da sinfônica, juntos, lideram a excelente empreitada pelas crianças, nesse Recife europeu.
Maracatu |
Agora, volvamos os olhos para a nossa maior expressão de cultura afro: o maracatu. Embora o ritmo das suas alfaias faça ecoar pelas nossas esquinas o mais visceral elemento negro, o que vemos nas ruas? Um majestoso cortejo, reis, rainhas, duques, duquesas, damas do paço e bonecas de cera, trajando a luxuosa indumentária das cortes européias. Eu sei, eu sei. Era a forma de resistência dos agrupamentos negros, que tinham no sincretismo religioso uma válvula de escape para sua própria concepção do sagrado.
Também, sei: O maracatu veio das Irmandades do Rosário dos Pretos e da festa do Rei do Congo. Mas, por que tão forte no Recife? Não seria a nossa alma ibérica envolvendo o corpo africano? Sei lá!
E mais, tem mais, tem o frevo, o frevo, o nosso frevo veio dos dobrados militares europeus, que, ao ter o andamento acelerado, e deu nessa gostosa e anárquica folia. Chego a sugerir que o passo já estava, embrionário, nos ditos saltos reais, executados por Diogo Dias, como consta na Carta de Caminha. Não lembra o passo (a dança) o saltitar do vira português, em ritmo apressado? Não lembra o passo um saltitar de bailarinos zíngaros?E o jogar de pernas da dança dos cossacos já era o passo?
E as fantasias multicores: dominós, pierrots, colombinas, arlequins, bufões, palhaços. Eis aqui toda a comédia dell'arte. Não é por acaso que o Recife é chamada de a Veneza Brasileira!
Finalmente, chego onde todos sabem que eu queria chegar. Nos maviosos blocos líricos do carnaval pernambucano.
No Rio de Janeiro, a velha guarda é do samba, na Bahia, do afoxé Filhos de Gandhi. Duas expressões puramente africanas.
Em Pernambuco,
a velha guarda é dos blocos carnavalescos líricos:
Em Pernambuco,
a velha guarda é dos blocos carnavalescos líricos:
Ouçam trinar as requintas,
e florear os flautins.
Banjos, violões, bandolins,
em harpejos e dedilhados.
E um coro de vozes álacres,
senhoritas e senhoras a cantarolar modinhas,
feito cantigas de roda,
rondós, marchinhas,
cirandas.
Há algo mais europeu?
Recife tem esse nicho de poesia,
que se mantém muito vivo.
Não aquele Recife dos Mascates,
dos ideais libertários,
mas, o Recife do bom Sebastião, de Capiba.
Recife, de Manuel Bandeira.
Recife, ibérico, europeu.
Recife dos blocos líricos...
Recife, meu.Recife, eu...
Fonte da imagem da tapeçaria:
http://www.academia.brasil-europa.eu/Materiais-abe-73.htm
Outras imagens:
recolhidas do Google.
5 comentários:
O homem criativo não é um homem comum ao qual se acrescentou algo. Criativo é o homem comum do qual nada se tirou.
Abraham Maslow
Quando terminei a leitura senti
uma certa nostalgia [por aqui gostava dos Carnavais em clubes]
Abração
Hey, bom passear pela história e desfilar em teus passos poéticos, um beijos poeta querido e boa semana, Eurico.
carmen.
Muito bom ler, conhecer. Quando vi a primeira imagem logo me lembrei dos bonecos de Olinda.
Quando estive em Santiago de Compostela estava tendo uma festividade de rua, e tinha uns bonecos iguais aos de Olinda, fiquei emocionada.
abraço
Ler-te é como se estivéssemos em Recife - no brasileiro Recife. Bela é a dimensão do escritor que consegue urdir sentimento e verdade sobre sua terra, sobre sua gente.
Brasileiríssimo, Recife, amiga Rejane. Mas diferente. E eu não sei por quê. rsrsrs
O nosso grande poeta é contido, racional. Falo do João Cabral.
Temos o frevo rasgado, decerto. Mas não fizemos para ele um frevódromo grandioso como o sambódromo ou mesmo o bumbódromo de Parintins, entende.
E ainda mudamos o seu andamento, criando o frevo canção e o frevo de bloco, com letras ingenuas e melancólicas. Seria um fado no frevo? O que sei é enquanto a negritude baiana estréia uma dança após outra, cheios de axé e energia, o Recife está cada vez mais lírico, e tem pavor dos trios elétricos. Os mesmos trios que nasceram com o frevo, pelas mãos notáveis de Armandiho, Dodô e Osmar. Veja se pode?
Pode. E deve.
Em nome da diversidade, do estilo de cada gente, pode, ora essa!
E eu, que sou folião dos blocos de pau e corda e enamorado dos grupos de pés no chão, mesmo os baianos dos afoxés ou os ranchos e cordões cariocas, fico mesmo é feliz que aqui seja assim...
Salve o samba!
Salve o trio elétrico!
Mas salve o lirismo dos blocos daqui! hehehe
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