Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, setembro 14, 2006

Demarcação da Poesia nº 1



Meu canto é que nem um filete d’água
minando a pulso de um lajeiro.
É assim, arrastado, gutural,
canto monossilábico, melopéia pungente,
arrancada da pedra que sangra no reino de meu peito.
Canto esse meu canto agoniado, esse relincho, esse mugir,
essa infralinguagem,como a linguagem dos bichos
que tanjo em meu sertão profundo..
Vou cantando e tangendo esse gado invisível,
por entre espinharas sibilantes e seixos esbraseados.
Meu canto germina feito um cardeiro em minha alma de abrolhos,
na solidão e no silêncio,
durante as léguas tiranas dessa caatinga interior.
Dessa terra rachada e sem húmus, exsurge um léxico raquítico,
vocábulos mínimos que se alongam, tristes aboios, mugidos,
na minha garganta rouca e ressecada.
Com a morte em minhas lembranças e a dor em minhas andanças,
canto uma agonia fechada, solitária,
universo parco de cabras e pedras,
quase sem palavras com que se cantar.


Eurico
in: Ser Tão Profundo/Mangue Interior

Um comentário:

Rejane Martins disse...

Eu leio tuas demarcações, Eurico, (e algumas salvei pra ler muitas outras vezes) e fico impressionada com o poder que elas têm; um travo na garganta e umas palavras soltas que me vêm à cabeça, (minhas, não do poema) e organizam-se paulatinamente... denso, bonito e necessário.
Agradeço-te, por tudo, por tanto!