(ouvindo uma sonatina para flauta e violão de Radamés Gnattali)
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada em sua forma irredutível,
já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima, essencial; um início; um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa desejar de menos cruel: vida
em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções, o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.
Carlos Drummond de Andrade
in, A Rosa do Povo
Fonte da imagem:
Vida Menor
7 comentários:
Eurico!
Tudo que você escreve e traz me encanta. Este em especial bateu forte em meu peito.
Beijos, poeta!
Mirze
Isso é - por mais que lido e relido - sempre um assombro!
Beijos,
Parafraseando Deleuze: Há um território para a vida também, há uma procura do território da vida, onde se possa viver.
Instância mínima, pressuposto básico bem antes de paradigma.
um abraço, Eurico.
A Rosa do Povo é um livro essencial, há um Drummond transfigurando a história dos homens,
abraço
Belezas de que precisamos, belezas que semeiam outros modos de ver e viver a vida.
beleza pira
Gostaria da alcançar a "vida menor", mas é tão difícil quanto tentar se encaixar na "vida maior".
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