Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

segunda-feira, agosto 17, 2009

Canudos às avessas...




















Numa época de engajamento em política estudantil, e de literatura com propósitos ideológicos, escrevi o poema que abaixo transcrevo, e que foi baseado numa observação feita por Ariano Suassuna, na qual ele vaticinava que as grandes favelas urbanas estão sitiando as cidades brasileiras, quase num Canudos às avessas:

CIDADE SITIADA



"Cai o orvalho na face do escravo,
Cai o orvalho da face do algoz
Cresce, cresce seara vermelha
Cresce, cresce vingança feroz”
................(Castro Alves)
 


Sobre as colinas ao teu redor
O ódio cresce
E te espreitam as tuas vítimas,
Enquanto danças na orgia
Do selvagem capital
Te embriaga o vinhoto
O CO2
A fumaça.
Tocaiam os enjeitados: negros, mulheres, crianças...
― Tu danças e o tempo passa...
o tempo passa e tu danças...―

Breve, a cruenta vingança
Dos operários famintos,
Das putas mais sifilíticas,
Dos trombadinhas lanzudos
(descenderão de Canudos?)

Breve, ó mãe dos burgueses ricos,
Uma legião de nanicos
Vinda do alto-sertão
Fará a grande invasão:
Desce o Arraial dos Palmares
Que agora habita nos morros de tua periferia,
Desempregados e loucos (já escuto seus gritos roucos!),
Os quilombolas modernos,
Zumbis saídos dos mangues ― sem-terras vindos do inferno
Virão ceifar-te com sangue,
Armados até os dentes: enxadas e picaretas,
Peixeiras e canivetes
Foice e martelo...marrêtas.
Saquearão teus mercados, teus bancos, tuas mansões,
Farão trincheiras em teus templos, alucinados de fé
E enlouquecidos de fome derribarão teus quartéis.
..................................................
Um Condor gritou nas praças.
É tempo de ouvir sua voz:
Se calas a voz do povo...

―POETAS, GRITEM POR NÓS!




@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

Eurico
(poema-vaticínio de 1988,
1º Lugar em Concurso Literário da Faculdade de Filosofia do Recife)

Fonte do texto:
O meu, ainda inédito, livro Ser/tão profundo - Mangue interior.

Fonte da imagem:


@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

9 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Ser_tão profundo resulta em um poema como este que me deixa tonta...
Lá vem a cidade descendo...
Barulho de gente subindo e descendo...
Ser_tão assim...E as cidades crescendo e se cruzando...

Abraços meu amigo.
Há braços...

lula eurico disse...

Mai,
VC acertou em cheio. O livro vem do sertão para o litoral, num esquema meio Morte e Vida Severina. Interessante que este poema já é da segunda parte: Mangue interior.
Há no blogue o poema Ilha-sem-Deus,(morei no Pina, por 15 anos)que é tb da minha fase manguebeat, ou de poemas da maré, com inspiração em Josué de Castro.

Abraço fra/terno.

Memória de Elefante disse...

Ouvi o grito do Condor aqui!
Gostei profundamente!
Abraço

Anônimo disse...

Sou devota do Ariano Suassuna.
Eurico,
que poema amigo! Muito forte e profundo como comentou a colega.
Vc sempre ótimo!
E a recuperação? A mil maravilhas espero.
Bjs.

lula eurico disse...

Oi, Memória,
é verdade, o grito de Castro Alves, que esqueci de citar nos marcadores.

Abraço fraterno.

lula eurico disse...

Oi, Fátima,
esse poema vem da leitura de uma entrevista do Ariano, em um dos jornais daqui. Nessa época eu era amigo de jovens estudantes que pregavam a revolução socialista. Logo iria cair o muro de Berlim e a URSS se espatifaria...
Mudei. Não tenho vergonha de mudar. Não posso ser pacifista, e pregar revolução armada. É um contrasenso. Os mortos de 1917, na revolução russa, devem estar estremecendo nos túmulos. Uma guerra fratricida, que hoje tem seu ideário esquecido. Só serviu para colocar no poder uma elite militar e burrocrática.
Deus nos livre. O caminho lento do aperfeiçoamento democrático é melhor. Socialismo com liberdade, e pelo voto secreto. Esse é o caminho que restou aos que ainda sonham com as reformas de base, como eu.

Abraço fraterno.

Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Eurico

Belo trabalho poético, merecedor de todas ás glorias.

Efigenia Coutinho
Escritora

Ilaine disse...

Eurico!

Belíssimo poema. Mereceu mesmo o prêmio e... muitos outros!

Abraço, com carinho

Rejane Martins disse...

Oi Eurico,
Esse sonho de 2009, sumo e semente lá atrás, pra mim, pra ti e pra um monte de gente, felizmente, ainda segue brilhando na retina dos que não esquecem lança e guitarra. Busco o Brasil por/de todos os cantos, num quase Canto Geral de Vandré. Aqui, sob o ângulo do brasileiro Eurico, encontro boa parte da letra e a beleza do sopro do oboé da Cantiga Brava.

O que sou nunca escondi,
Vantagem nunca contei,
Muita luta já perdi,
Muita esperança gastei.
Até medo já senti,
E não foi pouquinho não.
Mas, fugir, nunca fugi,
Nunca abandonei meu chão.