Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, agosto 16, 2009

SER/TÃO PROFUNDO (reedição de poema)


A Euclydes da Cunha
Deve habitar em mim, inserta,
uma geografia euclydeana: sylva horrida.
Insolações recrestando capoeiras, dias imóveis,
cactos brasis, e a erosão eólia da planície;
Um sertão que me perpassa, paragem desolada,
pélago extinto e sem água...
Uma estrada poenta e causticante.
Caatingas estonadas e a secura extrema dos ares.


Não há lu(g)ar, pungente ou não, como esse de meu ser,
tão raro lume,
arquivado num olhar imaginário...
Alimária quase extinta, ruminando por monótono horizonte,
deambulo, vulto arcaico,
pelas dunas de um pérpetuo mar lunário...

Minh’alma roça a flora estiolada e as areias exsicadas do deserto.
(répteis, sutis, escondem-se nos desvãos das pedras...)
A cidade mais próxima fica a léguas de mim
e em vão procuro um juazeiro, em cuja sombra me proteja Deus
dessa flor única e intensamente rubra,
que cauteriza o céu com suas pét’las de (ultra)violeta incendiária.

Eu também saio de mim à mesma hora
a cumprir órbitas automáticas e iguais,
em meio à solidão sem língua ou nexo.
Caminho sem gibão e sem certeza
se é a vida essa vereda, solamente
um sertão n’alma nômade, silente,
retirada de sítios ancestrais.

Ereto na planura alvinitente
revelando a solitária flor,
Sou um mandacaru despido que resiste.

Ser tão profundo.
Endógeno sertão.

Essa impossibilidade de alçar vôo.
Casulo ôco e imponderável de mariposa natimorta.

Em qualquer parte de mim dardejam rádios espinescentes
e há a mesma aridez dos areais,
charcos ressecos, leitos de rios evaporados...
Léxicos de sequidão também euclydeanos.
Eu mesmo um ser tão só... verbo desidratado,
galhada sem folhas de planta esturricada,
(in)maginando um sertão que não se vê...
Eurico
Recife, 14.03.06,
Dia da Poesia)


6 comentários:

Anônimo disse...

Em mim habita um ser Ceciliano (Celía Meireles), rs...
Lindos versos e belíssima imagem!!!
Beijos

lula eurico disse...

Su, obrigado.

Esse é um poema "fabricado" a partir de um glossário euclydeano que fiz ao ler o "Os Sertões". A linguagem daquele clássico é tão cheia de verbêtes cultos, que li com o Aurélio do lado. Então tive a idéia de uma poema-collage, ao modo como os pintores fazem em certos quadros, em que colam na tela elementos materiais relativos ao tema. Fiz isso com o vocabulário euclydeano.
Interessante que uma amiga disse que teve de ler o poema com o dicionário do lado, também... rsrsrs
Mas a idéia era preservar certo aura de Os Sertões em meu Ser/tão profundo. Creio que poderia ser melhor, mas... grato pelas tuas palavras.

Abraço fraterno.

Ah, esta é uma reeedição do poema, por ocasião do centenário da morte do Euclydes da Cunha.

Unknown disse...

Lindo, Eurico! Conhecerei mais Euclydes esta semana, a "globo" fará semana sobre ele.

Abrs!

lula eurico disse...

Que bom, Yvvi. Como estou convalescendo de cirurgia, pretendo assistir. Fim de semana a TV Cultura mostrou um belo documentário, feito aí, no Rio, terra natal do Euclydes, por neto dele.

Abraço fra/terno.

Paula disse...

E viva o Sertão!!!

Abraço, amigo!

Rejane Martins disse...

Eu li, depois fui pra imagem reler, ruminar.