Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

segunda-feira, junho 16, 2008

Dora também fazia ranhuras mitopoéticas

Boneca

A boneca de feltro
parece assustada com o próximo milênio.
Quem a aninhará nos braços
com seus olhos de medo e retrós?

O signo da boneca é frágil
mais frágil que o de pássaro.
Confia. Assim passiva
o vento brincará contigo
franzirá teu avental dirá
coisas que entendes
desde a aurora das coisas:
foste um caroço de manga
uma forma de nuvem
ou um galho com braços
de ameixeira no quintal.

Não temas. Solta o
corpo de feltro. Assim.
Para ser embalada
nos braços da menina que houver.
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Elegia dos Golfinhos

Viu (porque só ver podia)
sem interferir: eles feriam
o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada
protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado
para as latarias de consumo. Tudo servia
aos velhacos: matemática, um navio branco— noivo da Morte —, redes atiradas
sem círculo perfeito e nefasto perto do cardume.Tiros ecoavam no ar, encapelando
a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.
Aprisionados, eles se contorciam em desespero.
*
Lamentem-se os coros sagrados de Netuno
acorram Nereidas, Anfitrite em lágrimas com
seus cavalos marinhos em torno das malévolas mandalas
de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas
formas desfeitas, não vês que o rei Midas
tudo transforma agora no ouro do negócio?
Os golfinhos tranqüilos começam a morder.
Ah, cascata iridiscente no limiar da morte
em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,
o usurpador, o peixe voltado para a esquerda, involutivo.

Mercância vil contaminando cabeças
e corações! Vociferem as pitonisas
de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!
São os golfinhos os novos educadores
com sua graça natural, com sua dança
que a morte não detém. Eles propõem música.
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Nota do editor:
Dora Ferreira da Silva (1918-2006)
Poeta e tradutora, era viúva de Vicente Ferreira da Silva, um de meus filósofos de cabeceira.

Conheçam a mitopoética da Dora lá no Sítio d'Olinda. Imperdível!
*

9 comentários:

RENATA CORDEIRO disse...

Adorei os poemas. Como há gente nesse mundo que passa despercebida. Pode estar ao nosso lado, ser extremamente valorosa, mas como saber? Meu amigo, estou doente, mas estou cansada de falar disso. O bom é que tirei licença do trabalho e posso ver muitos filmes e fazer resenhas para vcs. Fiz nova postagem. Passe por lá e se julgar que merece comentário, por favor, o faça. O mesmo vale para o post anterior, Stardust, um filme muito bom, negligenciado pelas pessoas.
wwwrenatacordeio.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Um abraço empático,
Renata

Anônimo disse...

bom dia!
gosto muito do sua pagina!
sou adm. do blog “o fogo anda comigo”(thefirewalkswithme.blogspot.com).
o blog tem como ideal um SARAU AMPLIFICADO onde TODOS divulgam suas ideias e, o principal, poemas.
gostaria de ser um parceiro seu!
OBRIGADO!
ofogoandacomigo@yahoo.com.br

Luis Eustáquio Soares disse...

salve, poeta, querido amigo, bela homenagem, de nuvem e de viagem, de quem investe na imagem, de um mundo sem criadagem.
te saúdo
meu abraço,
luis de la manha.

Canto da Boca disse...

Adorável o poema da Dora, resgatei tantas imagens da minha infância. E grata por nos possibilitar conhecê-la.

Já cá estou, em Olinda, nas minhas tão íntimas ladeiras, olhando tudo como se fosse de novo a primeira vez. Curtindo a família em todas as formas. E peço desculpas pela ausência.
Abraço.
;)

i disse...

Dora e Vicente foram, ou melhor, ainda são, dois grandes orgulhos do patrimônio intelectual brasileiro!

Anônimo disse...

Boa noite!neste sarau amplificado, proclame poesia!este é um espaço livre para a arte que produz, gostas, ou quer dvulgar!Vimos arte em seu blog!Contamos com seu apoio!Divulgue e frequente o espaço!aguardeo retorno.Abraços!silas
thefirewalkswithme.blogspot.com

Luis Eustáquio Soares disse...

eis, amigo poeta, que o lirismo de ismos sismos são pétalas ao vento, das homenagens das viagens sem paragens..
meua abraço,
luis de la mancha.

RENATA CORDEIRO disse...

Lindos poemas da Dora. Não se se vc está a par, mas terça fui operada de câncer no útero, mas hj estou em casa. Fiz um post a todos, mesmo aos que nada sabiam.
Apareça por lá,
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Não precisa ler a "Última Cena" se vc não for ver o clip, pois é muito longa.
Um beijo afetuoso da Rê

RENATA CORDEIRO disse...

Meu amigo empático, por que me abandonou num momento tão difícil da minha vida. Acabo de ser operada de câncer no útero. Preciso reerguer-me. Fiz um post sobre Cidadão Kane, dedicado ao nosso querido vampiro, o Ravnos, e há mais coisas lá de que vc vai gostar, como retratos feitos a mão. Apareça:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Um beijo,
Renata Maria Parreira Cordeiro