Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

terça-feira, junho 10, 2008

SER/TÃO PROFUNDO


A Euclydes da Cunha
Deve habitar em mim, inserta,
uma geografia euclydeana: sylva horrida.
Insolações recrestando capoeiras, dias imóveis,
cactos brasis, e a erosão eólia da planície;
Um sertão que me perpassa, paragem desolada,
pélago extinto e sem água...
Uma estrada poenta e causticante.
Caatingas estonadas e a secura extrema dos ares.


Não há lu(g)ar, pungente ou não, como esse de meu ser,
tão raro lume,
arquivado num olhar imaginário...
Alimária quase extinta, ruminando por monótono horizonte,
deambulo, vulto arcaico,
pelas dunas de um pérpetuo mar lunário...

Minh’alma roça a flora estiolada e as areias exsicadas do deserto.
(répteis, sutis, escondem-se nos desvãos das pedras...)
A cidade mais próxima fica a léguas de mim
e em vão procuro um juazeiro, em cuja sombra me proteja Deus
dessa flor única e intensamente rubra,
que cauteriza o céu com suas pét’las de (ultra)violeta incendiária.

Eu também saio de mim à mesma hora
a cumprir órbitas automáticas e iguais,
em meio à solidão sem língua ou nexo.
Caminho sem gibão e sem certeza
se é a vida essa vereda, solamente
um sertão n’alma nômade, silente,
retirada de sítios ancestrais.

Ereto na planura alvinitente
revelando a solitária flor,
Sou um mandacaru despido que resiste.

Ser tão profundo.
Endógeno sertão.

Essa impossibilidade de alçar vôo.
Casulo ôco e imponderável de mariposa natimorta.

Em qualquer parte de mim dardejam rádios espinescentes
e há a mesma aridez dos areais,
charcos ressecos, leitos de rios evaporados...
Léxicos de sequidão também euclydeanos.
Eu mesmo um ser tão só... verbo desidratado,
galhada sem folhas de planta esturricada,
(in)maginando um sertão que não se vê...
(Recife, 14.03.06,
Dia da Poesia)


3 comentários:

DiAfonso disse...

Grande LULA!

Eis que, por seu poetar, assomam palavras de ancestral e abscôndita existência! SER/TÃO PROFUNDO: deambulante, vulto arcaico, verbo desidratado... Não há o que comentar, caro e estimado poeta!

Abração!

Dauri Batisti disse...

Lindo. Não há o que comentar, como já foi dito aqui.

Rejane Martins disse...

O vinho do aperitivo do almoço... não, não é!
Um sujeito qualquer... não, não é!
Um poema desidratado de ser... não, não é!
Um poema que proteja dos'eus... não, não é!
Então, o que é? Um Poeta, o dono do dia, o dono da Poesia.