Se algum dia, ao guiares por uma avenida,
Peixes inesperados
pairarem por sobre tua cabeça
Se os edifícios, de repente, se tornarem bambuzais...
E sons de cristais liquefeitos
surgirem como estranhos algoritmos
Invadindo-te o labirinto...
Se, de súbito, sentires um frêmito
Em teu córtex cerebral
Se pequeninos filamentos piscarem em tuas órbitas
Se uma subitânea Andrômeda arremeter contra a Terra
Se sob teus pés sumir o chão...
Creias, já não és mais teu.
Canta, pois, ave fugaz,
Que estarás livre de ti.
Canta e dança como quem ouve Debussy.
Desliza por um tobogã de brumas.
Salta com os carneirinhos nas nuvens de algodão.
Já não és mais teu!
Todas as tuas posses
Teu cadastro de pessoa física
Teu veículo-passeio
Tua pertença e teu nome
Tudo que te fazia ser teu
Toda essa simbologia que te dava nexo
Nesse dia, já não será mais.
Já não serás.
Folga, pois, ave liberta,
Trinta raios rodeiam a roda
Mas só o vazio do eixo a faz rodar.
Rejubila-te!
Tu serás um vaso vazio.
Os entraves e os entreveros;
As avenças e as desavenças;
Tudo sumirá.
As coisas todas derreterão sob uma luz quântica.
Tudo avançará sereno para o nada.
Esvaziado serás livre.
E eterno.
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Reedição de poema antigo,
com especial dedicatória à amiga Rejane Martins
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Deixo para meditação dos leitores o Poema XI, do “Tao te King”,
tradução de Emmanuel Carneiro Leão:
Trinta raios rodeiam um eixo
mas é onde o raio não raia
que roda a roda.
Vaza-se a vasa e se faz o vaso.
Mas é o vazio
que perfaz a vasilha.
Casam-se as paredes e se encaixam portas
mas é onde não há nada
que se está em casa.
Falam-se palavras
e se apalavram falas,
mas é no silêncio
que mora a linguagem.
É o Ser que faz a utilidade.
Mas é o Nada que dá sentido.
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Encontrei no Entre Textos a seguinte glosa do Rogel Samuel:
"Os raios seguram e convergem na roda, mas não a são. No vazio do vaso é onde encontramos a água, posta em vasilha. A roda roda no vazio dos seus raios, o vaso envasa no vazio de seu bojo, entre as paredes há o espaço de nossa casa, as palavras se costuram na linha do discurso, em continuidade: mas a linguagem não tem som, tem sentido, e o que é expresso se encontra no seu conteúdo – no vazio do vaso da fala, na poesia da linguagem, o seu silêncio."
Fonte Poema XI e da Glosa:
http://www.45graus.com.br/entre-textosp.php?id=24672
Fonte da imagem:
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=465768
7 comentários:
"...é no silêncio
que mora a linguagem" - aos seus olhos o eterno é colorido e movimentado! Eu tenho uma visão mais slow motion... rs. Beijus,
E em toda essa falta de mim mesma, serei tudo em meu corpo , em minha alma.beijos achocolatados
Olá meu bom amigo poeta Eurico, que maravilha! É o que eu acredito ser a liberdade eterna...parabéns pela qualidade dos textos e poesias, todos inteligentes e sensíveis.
forte abraço do leitor,
c@urosa
Caro Eurico, agradeço muitíssimo a dedicatória de um poema forte, cuidadoso e contundente como esse.
Caso minha postagem de hoje tenha sido motivadora, penso que ela nem foi pra tanto, foi apenas resultado de um momento lúdico de uma tarefa simples. Busco alegria diariamente, com as palavras e com alguns fazeres cotidianos. Nos meus planos, apenas uma boa cota de ar, água, riso e liberdade, não pretendo eternidade... ufa! quase que me assustei! :)
Li e relerei teu poema, mas aproveito pra comentar minhas primeiras impressões de tua postagem: sob meu ponto de vista o significado de um quase tudo vem de todas as instâncias e tempos, das presenças e das ausências. Não me agrada pensar as coisas como excludentes umas das outras.
Obrigada pela deferência mais uma vez.
Amiga Rejane,
trata-se de um poema antigo,
de uma inocente brincadeira com o conteúdo do Tao.
Também não me ocupo com as dualidades, e o poema não teoriza sobre isso. Apenas brinca com a visão insólita do Taoismo, que nega muito do que sustenta nossa compreensão ocidental do mundo e das coisas. Esse Uno do Tao se parece com o que tu pensas.
E apesar do poema, não sou adepto de nenhum credo.
Sou de todos e de nenhum. rsrsrs
esse hino ao vazio é pura epifania, revelação, súbito alvorecer
abraço
MUITO BOM!
Não sei se é verdade, se já morri ou não, mas às vezes quando dirijo, vejo peixes pulando no asfalto.
Emmanuel Carneiro Leão é meu livro de cabeceira.
Talvez seja isto.
Beijos
Mirze
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