Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, março 24, 2012

ATROPELAMENTO (vertigem lúcida no 12º andar)



















poema dedicado a Friedrich Wilhelm Nietzsche (in memoriam)

Podem confinar-me.
Sim, hoje estou pronto para ser levado ao asilo.
Há duas loucuras profundas em mim:

A primeira é doar todos os meus parcos bens aos pobres
E ir morar às ruas, com os pedintes e bêbados.

A outra, a mais difícil e quase inexequível,
Aquela que só raríssimos loucos alcançam,
A que verdadeiramente dá-me vertigens lúcidas:

Ir arrancando de mim
cada coisa produzida pelos homens;
Roupas de grife,
Tênis da moda,
Meias-soquete,
E esse agasalho de lã sintética;
Despir-me assim de uma vez, de tudo.
Lançar fora, mais do que franciscanamente,
Não somente os bens da terra;
Mas, expulsar de mim tudo o que me representa:
Opiniões.
Conceitos.
O meu nome.
Lançar fora a minha formação intelectual.
A língua com que escrevo esse poema.
E até mesmo o tema desses versos,
esse inútil clamor, em meu imenso deserto.

Estou debruçado à janela do 12º andar.

Arquitetado na área de um antigo sítio,
esse edifício em que habito
é a fruta mais perfeita da imbecilidade humana.
Fruta de casca dura e insípida.
Fruta de que não se pode desfrutar
nem o sabor, nem a carnação, nem nada.

Lá no pátio brincam crianças.
Lá no pátio riem crianças.
Ainda as há...a brincar
Pois os portões estão guarnecidos por uma sentinela.
Estão protegidas por grades, as crianças que brincam no antigo pomar de jaqueiras.

Ao longe, um pequenino vulto cruza a avenida.
Tomo dos binóculos.
Agora contemplo melhor.
É um pequenino cão das ruas.
Ah, meu pequenino irmão!
Vejo-te, ampliadas as tuas chagas, teus carrapatos,
Com esses óculos de longo alcance.
Mas não te alcança a minha alma, tão pós-modernamente cartesiana.

Ouço os sorrisos dessas crianças...
No entorno, os carros, feia fumaça,
Homens gritando, qual britadeiras,
Uma roda viva?
Uma roda à morte.
A roda enorme do caminhão que transporta o lixo.
O caminhão que tritura o lixo dessa cidade feita de lixo.
A roda enorme do caminhão...
Ouço um ganido...
Mortal ganido.
E a gritaria dos transeuntes...

Ai, não suporto mais essa vida!
Nu dos sentidos,
Livre das normas,
Desço correndo pelas escadas desse edifício,
(Hoje me levarão para o hospício.
Mas o que importa que façam isso?)
Invado a rua, assim, despido,
Tomo-te aos braços, bicho ferido.
Tomo-te aos braços, enlouquecido.

Todo o sentido teleológico, em mim desaba:

há duas patas esmigalhadas
sobre a calçada.

Fulo da vida, nego a mim mesmo, crísticamente.
Nego isso tudo:
Prédios, fumaça, caos, britadeiras.
Pois essas patas sob essas rodas
são um libelo contra a cultura, minha cultura.
E esses dois olhos com que me fitas
com tal candura,
são aforismos de Zaratustra,
são marteladas
contra essa Ordem filha da puta!
Assim te entendo, aqui, nu e louco;
Assim te entendo nessa hora angusta.
Mas não me entendo nessa Babel:

Tu representas os seres mudos e indefesos da criação?
És, nos meus braços, meu semelhante, como a novilha dos indianos?

Cachorro louco, feio, fedido, faminto, sujo e estropiado,
irmão dos homens abandonados, que vivem ao léu,

És um holocausto, tosca oferenda,
que, transtornado,
hoje, ergo aos céus.


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Fonte da imagem:
Quem é o irracional da foto?




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Cliquem em
Resenha Poética para lerem algo referente a esse atropelamento das minhas idéias.





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Reedição de postagem, só pra dizer que estou, relativamente, bem. rsrsrs

4 comentários:

zhubenedicty disse...

Lindo, Eurico, abs.

Unknown disse...

às vezes penso também eu em me despir até das palavras, usar meu corpo apenas para transportar o destino dos gestos, ouvir, ouvir, ouvir até desaprender a falar,



abraço

Rejane Martins disse...

Vertigem lúcida faz lembrar o trabalho minucioso de um entalhador de madeira na ocupação de sambladura para sinos.
Sons que sinalizam e se completam em tua resenha poética. Sempre bom te reler, Eurico!

Unknown disse...

AI que lindo, Eurico!

Eu também há tempos tenho essa idéia. É tudo tão cruel e injusto.
Se tivesse a certeza da morte, pois só ela salva, já o teria feito.

Absurdamente lindo.

Ainda bem que existes,

Beijo

Mirze