“sois, apenas, como neblina que
aparece por instante e logo se dissipa...”
(Epístola a Tiago 4:14)
Pernoitaram sobre a mesa, aquelas bolotas vermelhas, deixadas em uma vasilha de ágata. Algum sortilégio noturno, algum miasma, perpassou-lhes as polpas carnudas, e eis que amanheceram assim, bolorentas e maceradas. Aquele viço apetecível, aquela aparência rubra e suculenta se esvaiu. Um sopro letal deve haver na noite, no sereno. Algo imperceptível, que necessita das horas silenciosas da madrugada, para atingir o cerne vital das frutas, das flores... de tudo...
Contemplá-las, ao desjejum, nessa manhã introspectiva, traz à alma um estranho pesar. Há pouco, no lavabo, o espelho deixava entrever os inúmeros fios brancos que em mim despontam, que desapontam. Sinto-me frágil infrutescência, pênsil e pingente, feito fruto maduro. Atravessei, sem perceber, as noites frias desses últimos cinqüenta anos. Alguma substância elemental me vai atingindo o âmago da vida. Uma informação incrustada em minhas moléculas diz, em código: és finito.
Agora os sonhos ainda estão por sonhar, e as gavetas estão prenhes de projetos. O vento, vindo da Sé, balança as frondosas mangueiras do Horto Del Rey. Levanta a poeira na estrada que vai dar ao Sítio das Quintas. Os dolbermans do casarão ao lado apóiam-se na muralha, e espiam os garotos que jogam bola. Aqui, parece que o tempo não passou e as crianças ainda brincam na rua. Bola de pé, bola de meia, bola de gude.
Os galos já descansam de suas saudações ao dia de hoje. Já há mangas maduras caídas ao chão. E as pessoas já vão passando, apressadas em cumprir os seus deveres, os seus desígnios...
Olinda acorda aqueles que dormiram e encontra os notívagos que buscam a manhã. Os ateliês da Cidade Alta abrem as janelas e deixam que a brisa lhes sopre a tinta fresca das telas. À mesa, o artista solitário fita as acerolas murchas no vaso. Seus pensamentos vacilam como as asas de uma mariposa fatigada, depois de lutar a noite toda tentando desprender-se das teias de uma aranha. Mais do que as idéias, vacilante está o seu corpo franzino. Suas juntas rangem como velhas cancelas. Pronuncia algumas palavras ao acaso. Saem de sua boca pássaros flácidos, que esvoaçam a custo, rente ao chão.
Encanecido. Um ser cansado e encanecido exala o cheiro fúngico dos velhos alfarrábios...
Sedentário. Só e sedentário. Desistiu das coisas mais comezinhas – desistiu da ação.
Hoje quedou-se a meditar diante da terrina de ágata. As acerolas, ontem vermelhas e macias,...antes suculentas e saudáveis...ah,...o tempo...
...o tempo é um estranho escultor de máscaras mortuárias...
Recolhe os seus pincéis... a paleta treme entre seus dedos. Cores desbotadas, boninas, tons crepusculares, uma monocromia em pálidos tons de vermelho... pintava uma natureza-morta...
A sombra passageira de uma nuvem encobre os pardieiros da cidade. Exausto, deita-se mansamente sobre o assoalho. Balbucia uma prece sem sentido... então, uma profunda e melancólica agonia o faz desfalecer...
***
concluído em 06.12.05, com este conto olindense.
Eurico - 2005
Horto del Rey, Olinda.
Fonte da imagem:
OLINDA CINZA
9 comentários:
"O presente é a sombra que se move separando o ontem do amanhã. Nela repousa a esperança."
( Frank Lloyd Wright )
Abraço.
Meu Deus, que conto lindo.
E é de Olinda!!!! Tão bem escrito que estava quase a desfalecer junto com o autor. Esse tempo vai indo, destruindo algumas coisas, mas edificando outras.
Belíssimo!
Beijos, Eurico!
Mirze
Escrever bonito assim é até falta de respeito com quem não sabe rimar amor e dor!
Rsrsrsrsr
Bjs meu querido amigo!
Olá Eurico
Apesar de muito bem escrito, é um conto triste, mas realista.
Abraços,
Maria Luiza (Lulú)
"..o tempo é um estranho escultor de máscaras mortuárias..."
que verdade neste dizer...bom etsar aqui para te dar boa noite, bom dia e desejar boa semana.
Carmen.
admirável, sob o ponto da escrita e também do muito de sentido filosófico que se desloca ente as palavras. Ano que vem completo 50 anos e vou reler/rever também as acerolas,
abraço
Lindas palavras que correm esvoaçantes sobre os anéis de nossas promessas, de nossos quereres de infinitude. Mais tarde, olhando nossas reminiscências vemos as acerolas que ferveram com a quentura imposta pelo tempo. Mas ainda vale acendermos mais um dia em nossas células e crer em dias mais, em novas acerolas...
Caro Eurico,
Deixei para fazer esse comentário ao final do Livro Sete Saltos Mortais, mas o faço agora e o do Livro, depois.
Impressionante tua abordagem sobre o tempo e nossa relação com ele. O conto é belíssimo em expressividade, vida e dor. Li e reli algumas vezes, comovida com a construção de um texto que nos arrebata pelo tempo perdido e, em mesmo movimento, alavanca-nos para o despertar. Ainda que forte e denso, há nele doses concentradas de vitalidade, sutilmente abordadas por ti, num acorda-maluco, que tu ainda estás vivo! Termina de ler isso e vai pra tela pintar! É triste, é genial, é doloroso, é encantador - pelo que a vida impõe em tudo que advir enquanto estivermos por aqui.
Achei fantástico, poeta cultor de prosa lírica.
Grato, gente, pelos comentários.
Ando meio afastado, mas será por pouco tempo, prometo-lhes...
A vida, apesar de tudo, vale muito a pena!
Abraços fraternos.
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