Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, fevereiro 22, 2014

VÁRZEA CULT/RURAL (ou, por que não somos manguebeats?)

A oeste do estuário do rio das Capivaras, quase duas léguas à montante das ilhas que se formariam no lugar chamado de Arrecifes dos Navios, as águas mornas e lentas do rio foram deixando grãos de terra, de barro, do húmus da mata ciliar, dando origem a um solo de aluvião, argiloso e escuro: o massapê. 

Nessas férteis vargens, o rio ainda potável encontraria outros afluentes e mananciais que desciam dos morros do Camaragibe, regando os pomares nativos, em que o aborígene encontraria as condições favoráveis para a vida tribal. Águas doces, peixes em abundância, antas, pacas e outras caças miúdas. Essa fartura propiciaria o crescimento natural da população de silvícolas.

Essa seria a situação encontrada, ainda no século XVI, pelos lusos invasores, que, levariam a madeira do pau-brasil e deixariam a monocultura da cana de açúcar e pequenos cultivos de mandioca e feijão. Depois viriam os batavos, com sua crença e cobiça, buscando aquele precioso açúcar dos canaviais. Eles se foram e logo os banguês se multiplicaram, viraram engenhos, depois usinas e foi crescendo um próspero arrabalde de senhores escravocratas.

Várzea do Capibaribe, eis o nome da freguesia nascente, nesse encontro paradisíaco do rio perene com a viçosa mata atlântica, situada bem antes daquela curva à jusante, na encruzilhada dos caminhos dos Caetés (Apipucos).

 Ali, pela distância e pela altitude, não chegaria a salinidade das águas do mar, que, contidas pela muralha de pedras da barra, espraiavam-se no estuário, formando várias ilhas, na faixa litorânea. Por isso, nessas terras, o rio das Capivaras era o mesmo que saíra do interior, caudaloso e cristalino.

A Várzea, então, já era uma povoação bastante conhecida pelas águas límpidas de seu rio, pelos banhos medicinais, pelas casas de veraneio, os passeios na mata, os sítios e quintais de cercas vivas. Uma povoação que oscilava entre o rural e o urbano; entre as copas altaneiras das árvores frondosas e as chaminés das grandes olarias; ora, nas trilhas de barro massapê, abertas nos canaviais, ora sobre os trilhos dos trenzinhos de carga, importados da Europa pra tombar as generosas safras do melhor açúcar do Brasil.
Logo, logo, chegariam os bondes e as maxambombas, com as novidades e o progresso dos comerciantes da planície do Recife.
Aquela gente sossegada, a mesma gente que um dia havia sepultado os heróis dos Guararapes, que descansam seu sono eterno no piso da sua Igreja Matriz, um dia também veria o nascimento e o ocaso das usinas, o fausto e a decadência dos barões do açúcar, aqueles sobrinhos e netos do famoso Francisco do Rego Barros, o Conde da Boa Vista. 
Veria ainda mais:
veria o sumiço das pequenas casas de farinha, dos velhos e pachorrentos carros de boi, e, mais recentemente, a criação e a extinção da tecelagem e a venda, aos estrangeiros, da poderosa fábrica de vidros dos Brennand.

Por falar em Brennand, a chegada das fábricas e a construção das vilas de operários  anunciavam a mudança de velhos costumes rurais. Era a revolução industrial chegando e mudando a paisagem. A partir daí, pouco restaria daquele antigo arrabalde, hoje bairro. De pé, ficaria apenas o pequeno arruado do Engenho do Meio, espremido entre os prédios da UFPE, a centenária Matriz de Nossa Senhora do Rosário, reformada em meados de 1970 e a lendária jaqueira de Sá Feliciana, citada no interessante livro, Várzea, Lembrança de um Tempo que se foi, escrito por um de seus filhos ilustres, o médico, Marcos Ferreira Sobrinho, varzeano da gema. (Em tempo: a jaqueira centenária foi salva do machado pela professora Maria Antonieta Ferreira, já agora nos anos 2000, que, junto com seus alunos, esclareceu aos construtores do Conjunto Residencial Morada Nova, sobre o crime ambiental e histórico que seria derrubar aquela vetusta árvore varzeana, ameaçando-os com os rigores da lei. A professora Antonieta é irmã mais nova do escritor, Dr. Marcos Ferreira.)

 Ah, os varzeanos... Os herdeiros legítimos do antigo povoado. Gente cheia de orgulho de seu bairro quatrocentão. Famílias inteiras de netos, bisnetos e tetranetos daqueles habitantes mais antigos. Povo festeiro, bairrista, (como de resto é todo o povo recifense), culto, religioso, com costumes singulares, que ficam entre o rural e o urbano.

Mas, a modernidade chegaria, como de fato chegou, ao velho subúrbio açucareiro. E com ela muito daquele paraíso escondido a oeste do Recife, se perdeu. O rio assoreado e poluído, continua em seu curso milenar. Mas já não serve pra banhos, e beber da sua água, nem pensar! Já não há escravos, nem moendas, nem a nobreza escravocrata, mas agora há outros senhores mais sutis, que se apoderam dos desejos e sonhos de uma sociedade que se rendeu ao consumismo, ao individualismo, ao capitalismo sedutor, desses tempos modernos.

No entanto, mais uma árvore frondosa e bela seria plantada em suas terras, naquilo que foi o Engenho do Meio da Várzea, uma árvore cheia de sabedoria: a Universidade Federal de Pernambuco. A Várzea rural via nascer em suas terras uma outra Várzea, inovadora e intelectual.
Desse encontro dos saberes populares arraigados nessa gente ribeirinha e inteligente, com o saber acadêmico da nova vizinha, surgiriam novos olhares, novos costumes, novas formas de convivência. O arrabalde centenário agora seria um moderno bairro universitário, com repúblicas de estudantes em trânsito, vindos de todas as partes do Brasil e até, do mundo. Muitos deles logo iriam fixando morada e trazendo as famílias. Assim, a face desse subúrbio começaria a mudar muito rapidamente. Enquanto isso, os próprios jovens nativos também ingressariam nos cursos superiores, e a troca dessas experiencias e desses saberes seria outro tipo de húmus, outra seiva a irrigar de novas e boas energias o bairro da Várzea, que ainda guardava o aspecto meio rural, meio urbano.
Aquele jeitão sossegado de vila do interior, ganharia outras conotações, com chegada dos estudantes com suas ideias políticas, com as artes cênicas de vanguarda, com os festivais de musica estudantil. Daí então, mesmo sem deixar de ser aquela gente provinciana, a população varzeana seria de vez contaminada pelo vírus do saber acadêmico. 

A Várzea deixaria de ser apenas mais um bairro tradicional do Recife, com velhos casarões coloniais, como Casa Forte, ou Poço da Panela, ou outros bairros ribeirinhos. Tampouco seria a velha Várzea dos brincantes e folguedos populares, sempre à sombra benfazeja da paróquia do Rosário. Aquela Várzea campesina, operária, sub/urbana e semi/rural, desde os anos 60, iria se tornando culta, letrada, rebelde e engajada. 

Essa marca, esse diferencial, esse traço peculiar da convivência acadêmica é tão forte quanto a vizinhança com o rio, com a mata, com os Brennand...
Desse convívio de estudantes universitários com o espaço meio provinciano, eu diria que nasceria uma Várzea "cult/rural", com todas as prováveis conotações que permite um neologismo. Creio eu, que, ao correr das décadas de 1960 a 1990, essa cultura varzeana, entre popular e erudita, findaria por fazer dos varzeanos, um grupo mais próximo do pensamento dos círculos acadêmicos do que das novidades que estavam acontecendo lá embaixo, na planície do Recife, com repercussões nos outeiros das Olindas. A UFPE era uma espécie de barreira de recifes que dificultaria a chegada do ecos dos tambores manguebeats, dos coruscantes insights de Fred Zero Quatro e Chico Science. 

Cá na boca da mata, e longe dos manguezais,  estávamos mais próximos de Tonheta, brincante armorial, mais próximos das cordas do Sagrama, talvez dos sons do Quarteto Romançal. Se essas produções dos armoriais rolavam na Proext e no CAC, aqui bem pertinho, a Várzea estava até fisicamente mais perto do Ariano que do Science.

Pode ser essa uma pista das razões de a Várzea ter sido até mais psicodélica e tropicalista, nos anos 1970, do que manguebeat, em nossos dias. Além disso, os hippies e tropicalistas estavam bem mais perto do bucolismo varzeano. Por sua vez, os armoriais buscavam as raízes da cultura popular nordestina, tão evidenciadas, na Várzea de então.
Enquanto isso, os manguebeats tomaram um caminho diferente e optaram pelas idéias pop, massificadas pela grande mídia.

A Várzea, portanto, afinou-se mais com acordes melódicos do rock da Ave Sangria e com o som elaborado do Quinteto Armorial, nos anos 70, do que com as alfaias da Nação Zumbi, em meados de 1990.
Seria esse um dos motivos de não sermos manguebits? Sinceramente? Sei lá!

No entanto, que tal seguirmos o modus operandi do Chico e do Zero Quatro e intentarmos uma fusão, um mix dessas correntes tão distintas? 
Que tal uma coisa manguearmorial? 
Romances de cordel em whatsapp? 
Parabólicas no cume da palmeira imperial? 
Guitarras distorcidas na ciranda? 
Um côco que roda no astral? 
Sambadas de uma “jurema quantica"? 
Um cortejo de brincantes surreal? 
Um bonde com asas-delta, meio pop? 
Os muros grafitados com cajus brennandianos?
Enfim, uma Várzea ao mesmo tempo urbana e rural, 
uma Várzea pop, 
uma Várzeatown?
Uma Várzea cult/rural?


 Lula Eurico
 22/02/2014 

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