CANTEIRO DE OBRAS:

quarta-feira, abril 27, 2011

ATO DE CONTRIÇÃO (memória, em três gavetas)

Salvador Dalí - 1936


























1 (Vodu)

De há muito que vem sendo entretecida
essa urdidura, pespontada em vincos sensíveis,
lembranças,  gritos remotos, palavras-farpas.

Sim, existem, palavras-farpas,
feito alfinetes acutíssimos,
(injunções, diriam os médicos da alma)
que marcam dentro, desde a mais tenra infância;


2 (Sulcos)

De há muito que entrevejo essas ranhuras,
dolorosas dobraduras, na tênue
película em que se (a)gravam
os danos d'alma.

Existir é como a terra sulcada,
a eira,
que  (con)sente,
os rasgos do arado,
resolvendo em adubo, os detritos,
curando a aridez do solo.
Dessa terra lavrada desabrocham grãos.
Fruteiras também brotam do monturo.


3 (Contrição)

Claro que já pensei em amarrar rojões nos rabos dos gatos.
em atirar pedras nos santos,
por vezes, pensei até em morrer de tanta tristeza, sem saber por quê.

Não morri.
Mas, trancado em meu quarto, tinha surtos poéticos.

(Naqueles dias aziagos, lembro de que havia uma capela,
onde se ia recitar um incompreensível Ato de Contrição.
Percebia-se alguma poesia no olhar das catequistas.)

Não morri, tenho quase certeza disso.
E estou quase sempre mentalmente sadio.
Mas quando em surto,
cometo poemas inúteis e sem sentido, como este,
que mais parece uma afiada faca japonesa.





Eurico,
com a ressalva de que aqui fala um eu-lírico, rsrs


Fonte da imagem:
http://rita.com.sapo.pt/imagens/girafa_em_chamas.jpg

15 comentários:

  1. Eurico, meu poeta moderno e contemporâneo!

    Imagino o fio da faca japonesa!!!!!

    Um ato de contrição, redime qualquer um, desde que confessados os pequenos delitos humanos.

    De "VODU" nada entendo, mas acho que estou "vodida" também!

    Excelente poema!

    Beijos
    Mirze

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  2. Parece que... não sei se digo certo, mas parece que... há mais vida em seus escritos, ou mais vazamento de vida; antes, você escrevia belissimamente em ductos, agora você deixa extravazar dos ductos rompidos a vida que flui e reflui pelas palavras. Não sei se me explico bem, são impressões, o que sinto. Lindo este ato de contrição.

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  3. Ah, Mirze, sob certo aspecto estamos todos "vodidos". rsrsrsrs

    Mas creio que devemos resolver de alguma forma essas coisas...

    Grato sempre pelos elogios.
    Bondade tua.

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  4. Sabe Eurico, boa parte de mim morre todos os dias e, ao te ler, tenho quase certeza de que sobrevivo - quando encontro tuas imagens, estas ranhuras, estas dolorosas dobraduras.

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  5. Dauri, irmão querido,
    sim, vc tem razão, aliás, vc é um desses estudiosos da alma, no sentido de psique, né?
    Bem, estou sim, mas não é de hoje. Talvez eu esteja compreendendo, afinal, que sentir é algo tão importante quanto pensar.
    Mas sempre escapava, em um poema ou outro, esse extravasamento de vida.

    Grato pela tua presença no meu fazer literário.
    Sabes que te considero como um dos melhores escritores desse lado da rede.

    Abraço fraterno.

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  6. Vc é um gênio meua migo!
    bjs.

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  7. Rejane,
    dobraduras do tempo, digo, da duração, digo melhor ainda, dobraduras de existir.
    Fico muito contente a cada vez que aqui te leio.rsrsrs
    Bom te ter por perto.

    Abç fra/terno

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  8. Fátima, querida amiga das Minas,
    se soubesses quantos dias passei com esse poema revolvendo-se aqui, essas pa/lavras que, a princípio me travaram. Foi uma luta e quase não vem a público.
    Mas, foi mais transpiração, mais peleja interior, do que talento.

    Vc é é muito generosa comigo.
    Fico grato, embora não concorde com o adjetivo. rsrsrs

    Abraço fra/terno.

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  9. Eurico, gracias por tua "liturgia poética", cortas momentos, aproximas tempo com tua linguagem em construção..

    Beijos, carinho.

    Carmen.

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  10. Quantas imagens para guardar!!! Muito legal mesmo! Abraço

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  11. "cometer" poemas parece mais coisa de leigos. vc é sempre faca afiada - às vezes alfinetando o mundo e suas injustiças, outras sulcando a si mesmo, outras perseguindo a poesia. poeta é sempre assim, sempre revolvendo sentidos e sentimentos.
    beijo

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  12. As ranhuras da alma, o grito preso, a vida...seu escrito me levou pelo viver.

    beijo

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  13. Palavras farpas... Ah, Eurico. Para escrever poemas assim , só você mesmo. Teus vocábulos são tão bem escolhidos e muito diferentes. Tudo é especial. Continuo falando de ti para meus filhos. O Matheus também pergunta quando não conto nada de novo.

    Abraço, com carinho de nós todos

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  14. Afiadíssimo, camarada Eurico. Não concordo com tua avaliação sobre a inutilidade deste poema. Não seja tão duro consigo mesmo; por vezes tuas confissões poéticas contribuem para que possamos entender a nós mesmos. Este é um caso.

    Um abraço.

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  15. Um beijo meu amigo, e passo aqui para saber se estás bem e te desejar um ótimo final de semana.

    Carmen.

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