CANTEIRO DE OBRAS:

quarta-feira, julho 28, 2010

Ranhuras no ventre da baleia



“Agora, erramos, orgulhosos e tristes, de ato vão em ato vão,
modelando vasos fechados e cortando lanças circulares,
não mais portadoras de aguilhão.
Uma besta espantosa, de índole recurva,
nasceu do cansaço universal e impera entre nós:
come voraz a cauda e engole a própria garganta.
Criações e atos perecem: sua respiração, interna, letal.”
********************** (Osman Lins, in AVALOVARA)


Nos últimos dias, venho sentindo a sensação de estar criando um inútil objeto estético. Não há como escapar desse sintoma neurótico, sendo cidadão de um mundo niilista. Poderia alguém viajar no ventre duma baleia sem ser digerido pelas secreções de suas vísceras; sem se corromper, sem sucumbir ante a volumosa força das entranhas do cetáceo?
Sempre acordo tomado pela angústia de ser parte de uma civilização que agoniza lentamente. Sento-me, todas as manhãs, diante dessa máquina e modelo uma estranha máscara mortuária. Folheio Osman Lins e deparo-me com a imagem desse animal autofágico. Somos contemporâneos de uma sociedade entrópica. De um organismo que se despedaça. Uma máquina programada para destruir a si mesma...
Enquanto modelo essa máscara, ouço ao fundo a voz roufenha e gutural de Chico Science: "...do caos à lama/da lama ao caos...". Pela janela, vejo a Ilha-sem-Deus. Invade-me as narinas, a maresia do ar. Meus cinco sentidos, as portas da minha alma, repentinamente alertas para essa apreensão lírica do mundo. Um lirismo arrebatador, como um súbito acréscimo da receptividade disto que me circunda. Percebo, apavorado, uma dilatação dionisíaca do real. Eis que o grande Pã me sufoca! Sinto-me diante da perspectiva de ser devorado pelas mandíbulas dessa alimária espantosa, que estertora, enquanto que me arrasta no seu ventre. Do fundo da alma me chega uma oitava de Camões:

“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da Terra tão pequeno?”

Não sei por que insisto nesse tema. Minha psicanalista, ao ler a
ELEGIA PÓS-MODERNA, poema que eu acabara de escrever, aconselhou-me para que me ocupasse com amenidades.
— Ninguém se interessará por essas coisas, Poeta, ponderava ela.
Foi o bastante: abandonei seu consultório e nunca mais voltei lá.
Conforta-me constatar, ao ler Osman ou Roger Garaudy, essas duas grandes almas, que, desde 1968, eles também estavam debruçados sobre o mesmo tema... Nesse tempo, o Green Peace mal dava os primeiros vagidos...
Estaríamos todos criando uma obra inútil e sem sentido?
Pouco me importa! Arranharei, com unhas afiadas, o ventre verde-oliva desse anfíbio. Creio ser esta a única atitude possível a quem navega nessa bizarra embarcação.

***



Fonte da img.:
Jonas chega a Nínive


***

N. do A.:
o texto acima é fragmento de meu romance Bóstrix n'água.

17 comentários:

  1. Caro amigo, se é um trecho de seu romance, imagino o que não nos mostrou. Sua psicanalista errou feio, você fez o que eu faria, o que me desse vontade. Num mundo niilista, o que é de um poeta que tem os cinco sentidos ativados pela maresia? Resposta? Não sei, mas sei que muita gente há de ler e gostar e se ver em seus poemas. Porque o Poeta é aquele que sabe transmitir sensações de maneira única e universal.
    Um beijo.

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  2. Esse poeta, Claudinha, está oculto no texto. Chama-se Jorge Cabral. Ele é o personagem-narrador do romance Bóstrix n'água. Recortei este fragmento de uma de suas falas.
    Bem, creio que ele se parece muito comigo hehehe, mas não sou eu rsrsrs

    Grato pela visita, sempre amável.

    Abraço fraterno.

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  3. Olá meu caro amigo poeta Eurico, que bom voltar aqui e ler os seus maravilhosos e reflexivos textos, como sempre, muita qualidade e inteligência. Aproveito a oportunidade para agradecer os seus gentis comentários lá no dimenor.

    forte abraço

    C@urosa

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  4. É totalmente sem palavras! Confesso que so o titulo da postagem me chamou pastante a atenção e ao ler, vi que era muito mais do que eu esperava.

    Vim por aqui me enche de alegria, na verdade textos poeticos me enchem de alegria e fazem minha alma de forma muito agradavel respirar de forma mais pura!

    Enfim, gostei demais do texto =)

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  5. C@aurosa,
    seja bem-vindo.
    Há qto tempo, né?
    Bom te ver e vc merece os elogios, é claro.

    Abraço.

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  6. Jackson,
    meu jovem amigo,
    fico grato por tuas palavras.
    É de jovens como vc que o planeta precisa.
    Ainda há tempo!

    abraço.

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  7. Eurico,

    Sou "discordante" por natureza, e vocè nao sabe o quanto me esforço pra nao ser chato, ácido ou nao-acessível rsrs. Claro... discordâncias sao naturais e devem sempre existir, mas eu me impressiono com a afinidade que encontro aqui.

    desde os tempos de faculdade Batista alguma coisa acendeu aqui em mim, enquanto o povo estava naquela de protestantes x romanos, caiu um aficha aqui e eu vi que o mal maior é esse monstro que de tao visível se tornou invisível, esse monstro-era.

    E desde lá a minha poesia, meus textos, minha vida, tenho direcionado a arranhar o interior desse bicho. E às vezes me sinto o cara mais inútil da terra e até rio de mim.

    É a vida.

    Valeu pelo texto.

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  8. Li o texto no sítio. Ia fazer perguntas mas é melhor acompanhar a série que vai vir.

    Vi um parentesco com Ortega, em outras coisas que andei lendo. E isos me chamou mais ainda a atençao.

    Abraço!

    (O romance "Bóstrix n'água" foi publicado aqui?)

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  9. Taí Éverton,
    tou pensando em publicar aqui, o Bóstrix.
    Na realidade, roomance é um rótulo que eu dei, por falta de outro nome pro gênero. O texto é um hipertexto. E, de repente, ao fazer links aqui, para o os poemas, eu vi que o blog pode ser a solução que procurava para publicar o meu intermináaaavel 'Bóstrix nágua'...rsrsrs

    Pode discordar, home, óxente! rsrsrs
    Nem tudo aqui vai ser verdade. Sou tb um bicho muito contraditório. kkk

    Abraçamigo e fraterno.
    Valeu.

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  10. Texto lindo, de profundidade incomensurável...
    Que bom que o encontrei, Eurico!
    Virei sempre!
    Grande abraço

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  11. Grato, Zélia,

    bondade sua, mas seja sempre bem-vinda. A casa é nossa!

    Abraço fraterno.

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  12. Muito bom mesmo!
    Bjs cheios de sodade do cê!

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  13. A personagem deu costas à psicanalista pois ela acertou, e tanto acertou que a análise foi concluída. Na verdade a continuidade de suas reflexões se fecundaram naquela problematização dos seus rumos que a psicanalista apresentou.

    rsrsrs, bem, digo isto só para apresentar outro lado e para fugirmos do binarismo.


    abração, amigo.

    Belo texto.

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  14. Dessa ranhura tão aguda escorreu a palavra-seiva.

    Como é bom ler você!

    Um graaaande abraço!

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  15. Dauri, meu caro,
    gosto desse teu jeito esférico de ver as coisas, ou seja, de girar o objeto e ver o outro lado possível.
    Creio que tens razão, se estivermos ao lado do divã, e não deitados nele. rsrsrs

    Mas, gosto de saber que ela me ajudou ao acenar com um escape para a angústia. Ninguém aguenta questionar sempre... rs algum gozo há de haver na existência.

    Cultivo uma flor chamada Esperança...

    Abraço cordial.

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  16. Brisa, venha sempre soprar por aqui...rs

    Abraço cordial.

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  17. Grande LULA,

    Tem mensagem para vc no Terra Brasilis. Acesse:

    http://profdiafonso.blogspot.com/2010/08/selo-de-ouro.html

    Grande abraço!

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Grato pelo comentário. Receba o meu abraço fraterno e volte sempre!